Por Marcia Tiburi, na revista Cult:
Falar de democracia no Brasil hoje significa, mais do que nunca, falar de um espectro.
Desde o final dos anos 80, com a chamada Abertura, vivemos dentro de uma espécie de bolha democrática que foi furada pelo Golpe. A partir de então, a fragilidade da redemocratização formal que vivíamos veio à tona e, como aquela energia elétrica que falta, a urgência e a importância de democracia apareceu mais radicalmente. Se de um lado ela é frágil e precária, de outro a democracia é uma forma aberta que requer reinvenção. Como cidadãos, seguimos nessa linha.
Se é verdade que vivíamos em uma democracia de baixa intensidade, em meio a avanços e retrocessos, erros e acertos, pelo menos a vida política brasileira desenvolvia-se dentro dos marcos impostos pelas regras do jogo democrático. Existia democracia, ainda que insuficiente. Hoje, nem isso.
No momento presente, apostamos em eleições, mesmo depois dos 54 milhões de votos vencedores jogados na lata do lixo da história em 2016. Resistir é insistir. O desejo de democracia segue e a utopia de um mundo melhor permanece presente entre nós exigindo atitudes capazes de superar esse estado político, econômico e social injusto.
O caráter excepcional da eleição em tempos de Golpe
Talvez o conjunto das forças de centro-esquerda – ou seja, daqueles que acreditam que o Estado tem um papel ativo e fundamental na redução das desigualdades sociais e na implementação do projeto constitucional de vida digna para todas e todos – parece não ter percebido que a próxima eleição tem um caráter excepcional. Trata-se da primeira eleição presidencial que se dá em um quadro de quebra da normalidade democrática.
Os efeitos de um golpe de Estado, ainda inconcluso, se fazem sentir diariamente. O impeachment da presidenta eleita sem crime de responsabilidade, a implementação de um projeto político derrotado nas urnas e a utilização do sistema penal para perseguir os inimigos políticos dos atuais detentores do poder político, que se confundem com a parcela significativa dos detentores do poder econômico, deixam claro que o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) atua fora dos limites da legalidade democrática para atender interesses que não se confundem com os da maioria do povo brasileiro.
O “Golpe”, portanto, deve ser a categoria de análise da situação política. Não basta afirmar a existência de um golpe, mas, a partir dessa constatação inafastável, perceber as consequências e formular estratégias de atuação compatíveis com esse quadro.
O que está em jogo é, mais uma vez, a democracia. Não só a democracia formal e a importância do voto na escolha dos governantes estão em risco, mas uma concepção de Estado comprometido com a dignidade da pessoa humana, a realização dos valores republicanos e a concretização dos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas.
É justamente esse “comum” que evolve a efetiva participação popular na tomada das decisões políticas e a realização dos direitos e garantias fundamentais da população, que deve unir todas a forças de centro-esquerda e ser posto em oposição ao golpe e aos candidatos dos grupos econômicos responsáveis pela quebra da normalidade democrática.
Princípio Lula
Podemos chamar esse “comum” capaz de aglutinar e promover reações às consequências práticas do Golpe contra a população e a democracia de Princípio Lula. Esse princípio não se confunde com o pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que atualmente está submetido a uma brutal perseguição judicial com finalidade política. O cidadão Lula da Silva é um homem de carne e osso, com seus erros e acertos, que se tornou a maior liderança política do Brasil, um ex-presidente que deixou o cargo com 83% de aprovação, segundo dados do Datafolha.
Já o princípio Lula é um vetor de orientação que exige ações concretas à redução da desigualdade, um mandamento de conduta direcionado a resistir ao projeto neoliberal que quer transformar tudo e todos em objetos negociáveis. O princípio Lula fundamenta a luta de todos aqueles que querem o retorno e o aprofundamento da democracia.
O ex-presidente Lula, antes de sua prisão, disse que é impossível aprisionar ideias. Ele tem razão. Lula, esse espectro que ronda o Brasil, vai se concretizar na próxima eleição cada vez que o eleitor votar em candidatos radicalmente contrários ao Golpe. Mais do que apenas em Lula, o voto possível do campo democrático será no que ele representa no imaginário popular, ao que podemos chamar de princípio Lula. Esse princípio atravessará o voto de todos os que desejam a democracia. A união das esquerdas, indispensável à defesa da democracia, queiram ou não, passa pela adesão ao princípio Lula.
Não é novidade que para reduzir a pobreza, gerar empregos formais e promover o crescimento econômico, o governo protagonizado por Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma postura pragmática, por vezes conflitante com princípios históricos que levaram à criação do Partido dos Trabalhadores. A questão era e ainda é: vale ou valeu a pena um amplo ciclo de alianças e as tentativas de conciliar na medida do possível os interesses de classes distintas quando isso é necessário a um projeto de governo voltado a atender aos interesses da maioria da população? Intelectuais de esquerda ainda divergem. Os altos índices de popularidade de Lula da Silva, mesmo depois de uma terrível campanha empresarial-midiática contra a sua imagem, parecem indicar que o povo não tem tantas dúvidas ou apego ao purismo doutrinário.
Porém, criticar o Partido dos Trabalhadores à esquerda, tensionando pelo abandono de certo conservadorismo da política macroeconômica ou pela adoção de posturas revolucionárias, era um luxo de tempos democráticos. Hoje, qualquer reflexão séria sobre os rumos do país deve partir da constatação de que o Brasil durante o governo Lula reduziu a desigualdade, promoveu um crescimento econômico bem superior à média das últimas décadas, diminuiu o furor privatizacionista e reduziu substancialmente o desemprego.
Devolver o Estado ao Povo
O Golpe, todos já sabem, deu-se em razão dos acertos e do que havia de compromisso popular no governo petista e não por causa dos erros dos governantes, que não foram poucos. No entanto, para reagir ao golpe, o mais importante é reafirmar e defender os acertos do Partido dos Trabalhadores. Isso não significa que o Partido dos Trabalhadores está livre do dever de formular uma autocrítica. A autocrítica é fundamental para que erros não se repitam no futuro, mas não deve servir para demonizar o passado.
Todo governo é complexo, como produto histórico caracteriza-se por acertos e erros. Não se pode, porém, ignorar que hoje os erros dos governos petistas são utilizados na retórica golpista, acolhida pela esquerda mais ingênua, para ocultar e demonizar os acertos que tanto incomodaram à muitos dos detentores do poder econômico que, no Brasil e no exterior, não tem qualquer compromisso com o destino do país, e à parcela da classe média que se mostrou incomodada com a ascensão social das classes populares.
Hoje, em um momento marcado por uma ameaça concreta à democracia brasileira, não há mais espaço para o narcisismo das pequenas diferenças ou ressentimentos daqueles que, por idealismo, purismo ou vaidade, acreditaram ter sido traídos ou abandonados pelos governos petistas. Diante do crescimento do pensamento conservador e do projeto de destruição do Estado brasileiro, como insistir com idiossincrasias, projetos pessoais de poder ou desejos de reforçar identidades partidárias?
Nesse momento, é preciso que todos aqueles que possam participar diretamente das eleições de 2018 o façam como apoiadores de uma união das esquerdas – e até mesmo como candidatos quando for o caso, o que envolve certa dose de generosidade e sacrifício pessoal em muitos casos. Os rumos da política democrática brasileiradependem da união das esquerdas. Junto ao princípio Lula, não há nada mais importante do que a união das esquerdas nesse momento.
Há uma missão histórica posta às forças progressistas: devolver o Estado ao povo, impor limites democráticos ao poder econômico e concretizar os direitos fundamentais de todos e todas. Os golpistas, em nome do desejo de enriquecer e de lucrar ilimitadamente, implementaram uma espécie de vale-tudo para se manter o poder, impõe-se uma resposta popular que passa necessariamente pelas urnas, embora não se limite a elas.
Desde o final dos anos 80, com a chamada Abertura, vivemos dentro de uma espécie de bolha democrática que foi furada pelo Golpe. A partir de então, a fragilidade da redemocratização formal que vivíamos veio à tona e, como aquela energia elétrica que falta, a urgência e a importância de democracia apareceu mais radicalmente. Se de um lado ela é frágil e precária, de outro a democracia é uma forma aberta que requer reinvenção. Como cidadãos, seguimos nessa linha.
Se é verdade que vivíamos em uma democracia de baixa intensidade, em meio a avanços e retrocessos, erros e acertos, pelo menos a vida política brasileira desenvolvia-se dentro dos marcos impostos pelas regras do jogo democrático. Existia democracia, ainda que insuficiente. Hoje, nem isso.
No momento presente, apostamos em eleições, mesmo depois dos 54 milhões de votos vencedores jogados na lata do lixo da história em 2016. Resistir é insistir. O desejo de democracia segue e a utopia de um mundo melhor permanece presente entre nós exigindo atitudes capazes de superar esse estado político, econômico e social injusto.
O caráter excepcional da eleição em tempos de Golpe
Talvez o conjunto das forças de centro-esquerda – ou seja, daqueles que acreditam que o Estado tem um papel ativo e fundamental na redução das desigualdades sociais e na implementação do projeto constitucional de vida digna para todas e todos – parece não ter percebido que a próxima eleição tem um caráter excepcional. Trata-se da primeira eleição presidencial que se dá em um quadro de quebra da normalidade democrática.
Os efeitos de um golpe de Estado, ainda inconcluso, se fazem sentir diariamente. O impeachment da presidenta eleita sem crime de responsabilidade, a implementação de um projeto político derrotado nas urnas e a utilização do sistema penal para perseguir os inimigos políticos dos atuais detentores do poder político, que se confundem com a parcela significativa dos detentores do poder econômico, deixam claro que o Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) atua fora dos limites da legalidade democrática para atender interesses que não se confundem com os da maioria do povo brasileiro.
O “Golpe”, portanto, deve ser a categoria de análise da situação política. Não basta afirmar a existência de um golpe, mas, a partir dessa constatação inafastável, perceber as consequências e formular estratégias de atuação compatíveis com esse quadro.
O que está em jogo é, mais uma vez, a democracia. Não só a democracia formal e a importância do voto na escolha dos governantes estão em risco, mas uma concepção de Estado comprometido com a dignidade da pessoa humana, a realização dos valores republicanos e a concretização dos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas.
É justamente esse “comum” que evolve a efetiva participação popular na tomada das decisões políticas e a realização dos direitos e garantias fundamentais da população, que deve unir todas a forças de centro-esquerda e ser posto em oposição ao golpe e aos candidatos dos grupos econômicos responsáveis pela quebra da normalidade democrática.
Princípio Lula
Podemos chamar esse “comum” capaz de aglutinar e promover reações às consequências práticas do Golpe contra a população e a democracia de Princípio Lula. Esse princípio não se confunde com o pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que atualmente está submetido a uma brutal perseguição judicial com finalidade política. O cidadão Lula da Silva é um homem de carne e osso, com seus erros e acertos, que se tornou a maior liderança política do Brasil, um ex-presidente que deixou o cargo com 83% de aprovação, segundo dados do Datafolha.
Já o princípio Lula é um vetor de orientação que exige ações concretas à redução da desigualdade, um mandamento de conduta direcionado a resistir ao projeto neoliberal que quer transformar tudo e todos em objetos negociáveis. O princípio Lula fundamenta a luta de todos aqueles que querem o retorno e o aprofundamento da democracia.
O ex-presidente Lula, antes de sua prisão, disse que é impossível aprisionar ideias. Ele tem razão. Lula, esse espectro que ronda o Brasil, vai se concretizar na próxima eleição cada vez que o eleitor votar em candidatos radicalmente contrários ao Golpe. Mais do que apenas em Lula, o voto possível do campo democrático será no que ele representa no imaginário popular, ao que podemos chamar de princípio Lula. Esse princípio atravessará o voto de todos os que desejam a democracia. A união das esquerdas, indispensável à defesa da democracia, queiram ou não, passa pela adesão ao princípio Lula.
Não é novidade que para reduzir a pobreza, gerar empregos formais e promover o crescimento econômico, o governo protagonizado por Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma postura pragmática, por vezes conflitante com princípios históricos que levaram à criação do Partido dos Trabalhadores. A questão era e ainda é: vale ou valeu a pena um amplo ciclo de alianças e as tentativas de conciliar na medida do possível os interesses de classes distintas quando isso é necessário a um projeto de governo voltado a atender aos interesses da maioria da população? Intelectuais de esquerda ainda divergem. Os altos índices de popularidade de Lula da Silva, mesmo depois de uma terrível campanha empresarial-midiática contra a sua imagem, parecem indicar que o povo não tem tantas dúvidas ou apego ao purismo doutrinário.
Porém, criticar o Partido dos Trabalhadores à esquerda, tensionando pelo abandono de certo conservadorismo da política macroeconômica ou pela adoção de posturas revolucionárias, era um luxo de tempos democráticos. Hoje, qualquer reflexão séria sobre os rumos do país deve partir da constatação de que o Brasil durante o governo Lula reduziu a desigualdade, promoveu um crescimento econômico bem superior à média das últimas décadas, diminuiu o furor privatizacionista e reduziu substancialmente o desemprego.
Devolver o Estado ao Povo
O Golpe, todos já sabem, deu-se em razão dos acertos e do que havia de compromisso popular no governo petista e não por causa dos erros dos governantes, que não foram poucos. No entanto, para reagir ao golpe, o mais importante é reafirmar e defender os acertos do Partido dos Trabalhadores. Isso não significa que o Partido dos Trabalhadores está livre do dever de formular uma autocrítica. A autocrítica é fundamental para que erros não se repitam no futuro, mas não deve servir para demonizar o passado.
Todo governo é complexo, como produto histórico caracteriza-se por acertos e erros. Não se pode, porém, ignorar que hoje os erros dos governos petistas são utilizados na retórica golpista, acolhida pela esquerda mais ingênua, para ocultar e demonizar os acertos que tanto incomodaram à muitos dos detentores do poder econômico que, no Brasil e no exterior, não tem qualquer compromisso com o destino do país, e à parcela da classe média que se mostrou incomodada com a ascensão social das classes populares.
Hoje, em um momento marcado por uma ameaça concreta à democracia brasileira, não há mais espaço para o narcisismo das pequenas diferenças ou ressentimentos daqueles que, por idealismo, purismo ou vaidade, acreditaram ter sido traídos ou abandonados pelos governos petistas. Diante do crescimento do pensamento conservador e do projeto de destruição do Estado brasileiro, como insistir com idiossincrasias, projetos pessoais de poder ou desejos de reforçar identidades partidárias?
Nesse momento, é preciso que todos aqueles que possam participar diretamente das eleições de 2018 o façam como apoiadores de uma união das esquerdas – e até mesmo como candidatos quando for o caso, o que envolve certa dose de generosidade e sacrifício pessoal em muitos casos. Os rumos da política democrática brasileiradependem da união das esquerdas. Junto ao princípio Lula, não há nada mais importante do que a união das esquerdas nesse momento.
Há uma missão histórica posta às forças progressistas: devolver o Estado ao povo, impor limites democráticos ao poder econômico e concretizar os direitos fundamentais de todos e todas. Os golpistas, em nome do desejo de enriquecer e de lucrar ilimitadamente, implementaram uma espécie de vale-tudo para se manter o poder, impõe-se uma resposta popular que passa necessariamente pelas urnas, embora não se limite a elas.
0 comentários:
Postar um comentário