Por Rodrigo Perez Oliveira, no site Jornalistas Livres:
Na última semana, todos assistimos o desenrolar de um novo capítulo da crise brasileira, talvez aquele que até aqui mais tenha feito a sociedade civil sangrar. Cada vez mais fica claro que golpe é aquele tipo de coisa que custa caro para todos, para golpistas e legalistas.
Os golpistas sofrem por serem golpistas e os legalistas por serem covardes. O golpe não é um evento. É um processo que ainda não terminou.
É óbvio que estou falando da “greve dos caminhoneiros”, que no país inteiro bloqueou as principais estradas e rodovias, causando um gravíssimo problema de abastecimento.
Hoje, quando o movimento dá sinais de esvaziamento, talvez seja possível visualizá-lo com mais clareza e compreender o seu lugar na crise brasileira contemporânea. É isso que tento fazer neste ensaio, reconstruindo a cronologia dos acontecimentos, analisando com cuidado as agendas que foram apresentadas, os interesses envolvidos.
O que o tempo inteiro esteve em jogo foi a disputa pelo Estado. Nesse jogo, os caminhoneiros entenderam o poder que possuem sobre a sobrevivência material da sociedade. De posse desse poder, eles acuaram o governo o golpista, estrangularam a nação e venceram. Mas não foram os únicos vencedores.
O mercado também venceu, já que Pedro Parente, presidente da Petrobras e grande responsável pelo colapso energético que estamos vendo no Brasil, não teve o nome citado por aqueles que ocuparam as estradas brasileiras.
Sem dúvida, a grande derrotada foi a sociedade brasileira, que perdeu sorrindo, gozando. A sociedade brasileira comemorou a própria derrota, aplaudindo os caminhoneiros, num surto de masoquismo coletivo.
É importante acompanhar com cuidado a cronologia dos acontecimentos, fato a fato, passo a passo. Crônica factual é igual a canja de galinha: sempre ajuda.
Divido a greve dos caminhoneiros em três momentos distintos:
1° momento – O protagonismo da ABCAM
O marco inicial do movimento se deu no dia 18/5, uma sexta-feira, quando a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (ABCAM) fez uma representação ao governo, exigindo o fim dos impostos sobre o diesel e agendando o início da greve para o dia 21/5.
Já há uns bons seis meses que estavam tensas as relações entre o governo federal e a ABCAM. Mas como o governo federal tinha problemas mais urgentes, como salvar o coro de Michel Temer das duas flechas disparadas por Rodrigo Janot, a poeira foi sendo varrida pra debaixo do tapete.
A atuação de Rodrigo Janot na crise brasileira ainda precisa ser estudada com mais cuidado. Não é isso que faço. Não aqui.
Não custa lembrar que a ABCAM apoiou o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma. Ninguém apoia um golpe de Estado se não alimenta expectativas de ganhar algo com o novo regime de poder. O governo golpista de Michel Temer frustrou as expectativas da ABCAM.
No início, portanto, a “greve dos caminhoneiros”, tão celebrada à esquerda e à direita, foi conflito travado entre golpistas.
Percebam, leitor e leitora: a ABCAM, entidade que representa também os donos das transportadoras, protestou contra a carga tributária. Nada mais coerente e óbvio do que patrão protestar contra imposto.
A essa altura, não existia agenda política clara nas reivindicações do movimento. Não tinha “fora Temer”, não tinha “Lula Livre”. Também não tinha “intervenção militar já”. A pauta era pela redução de impostos. Apenas isso.
A ABCAM também não questionou a forma como Pedro Parente vem administrando a Petrobrás. A pauta era liberal e exigia redução de impostos.
Em 19 de maio, aconteceu mais um aumento no preço dos combustíveis, o que azedou ainda mais as relações entre a ABCAM e o governo.
Esse aumento já estava previsto no plano de operação da Petrobrás. Mesmo com uma crise grave, a empresa não mudou o plano. Segundo Pedro Parente, a estatal deve ser autônoma e agir por “motivações técnicas e não políticas”. Como se existisse motivação técnica que não seja também política.
Ou seja, para Parente, a empresa pública criada para controlar um setor estratégico para o desenvolvimento nacional deve obedecer às leis do mercado e não ao interesse público.
Isso gerou um problemão para o governo, já que exatamente no momento em que estava acontecendo a negociação com a ABCAM a Petrobrás, agindo por conta própria e obedecendo a “lei do mercado”, aumentou o preço do combustível.
É claro que Michel Temer tentou impedir o aumento, adiá-lo. Provavelmente telefonou para Pedro Parente e ouviu um sonoro “não se meta aqui no meu feudo”. Quando o governo é ilegítimo acaba não sendo respeitado nem pelos aliados.
É irônico que o governo que desregulamentou a Petrobrás tenha se tornado refém das “leis do mercado”. O mercado é ingrato com os seus provedores.
A ABCAM, então, radicalizou sua posição e a greve começou no dia 21 de maio. Ou melhor: até aqui não se tratava de greve. Era lockout mesmo.
2° momento – A horizontalidade do WhatsApp e o protagonismo das bases da categoria
Já no dia 21 de maio foram registrados bloqueios em estradas e rodovias em todo território nacional. Começaram os transtornos: falta de combustível nos postos e produtos nos supermercados.
Percebendo que a situação era grave, o governo decide sentar-se à mesa com aqueles que eram considerados os líderes dos caminhoneiros. Um acordo foi fechado, assinado, suas resoluções publicadas em edição extraordinária do Diário Oficial.
Pra “ajudar”, Pedro Parente autorizou um pequeno desconto no preço do diesel, deixando claro que era uma concessão pontual e que isso não voltaria a acontecer. Afinal, segundo ele, a Petrobrás deve atender às leis do mercado.
Os representantes dos caminhoneiros saíram da reunião dando-se por satisfeitos e prometendo o fim do movimento. O governo veio a público dizer que a situação estava resolvida.
As estradas continuaram bloqueadas e o desabastecimento se aprofundou. O governo ficou com cara de bobo, desmoralizado.
A essa altura, a ABCAM não pautava mais as estradas.
A ABCAM puxou o movimento, mas perdeu o controle sobre ele. A base se autonomizou e aprofundou suas reivindicações: diminuição dos impostos, redução dos pedágios e intervenção militar.
Não dá pra saber se a bandeira da intervenção militar estava sendo levantada por todos os caminhoneiros. Até acredito que não. Porém, é inegável que os grupos intervencionistas foram fortes o suficiente para vincular a greve dos caminhoneiros à narrativa da intervenção.
Parte considerável dos caminhoneiros se achou legítima para exigir a renúncia do presidente da República e reivindicar uma intervenção militar saneadora, assim, sem dialogar com o restante da sociedade.
Enquanto isso, a nação sofria o drama do desabastecimento: pequenos produtores perdendo a colheita, motoristas de uber perdendo a semana de trabalho, escolas e universidades sem funcionar. Hospitais tendo sua rotina prejudicada. A cadeia produtiva parada.
A ABCAM, rapidamente, se manifestou, criticando o clamor pela intervenção militar e solicitando que os caminhoneiros abandonassem essa pauta. Novamente, os caminhoneiros, ou aqueles que estavam no controle do discurso do movimento, deram de ombros.
Pedro Parente e sua gestão privatista, outra vez, passaram batidos, não foram sequer mencionados.
Nesse momento, estava acontecendo, de fato, uma greve relativamente independente do lockout inicial. Mas era uma greve diferente daquela que estamos acostumados a ver no Brasil desde o final da década de 1970. Dessa vez, não existia sindicato, como alguns caminhoneiros falavam, com algum orgulho, em entrevistas à imprensa.
“Isso aqui não é sindicato. Nós decidimos tudo na estrada”.
O país foi paralisado durante uma semana por homens organizados em grupos de WhatsApp.
3° momento – Negociação e refluxo do movimento
Em dia 28 de maio, finalmente o governo conseguiu negociar com as lideranças corretas e, completamente acuado, entregou até as cuecas. O acordo foi assinado e progressivamente os bloqueios foram sendo desfeitos e o abastecimento retomado.
Começou a violência.
Alguns grupos mais exaltados, que, segundo relatórios da Polícia Rodoviária Federal não pertencem à categoria dos caminhoneiros, começaram a atacar os trabalhadores que desejavam retomar suas atividades.
Não é que a violência, em si, seja um problema. Espero que ninguém aqui seja ingênuo o bastante para achar que reivindicação de trabalhadores pode ser feita sem alguma dose de violência.
De uns tempos pra cá, quando a classe média conservadora descobriu o caminho das ruas, sendo sempre tratada com docilidade pelas forças policiais, a violência se tornou um elemento de distinção entre as micaretas dos “cidadãos de bem” e os movimentos dos trabalhadores. Se não tem bomba estourando, gás de pimenta no ar, é porque a manifestação não é séria.
Mas a violência que estamos vendo nas estradas brasileiras é diferente, tem outro teor. O governo atendeu a pauta dos caminhoneiros. Esses que ainda estão nas estradas insistindo nos bloqueios querem outras coisas. Querem derrubar o governo.
Bom, querer derrubar o governo golpista eu também quero. Mas não sou inocente a ponto de achar que o inimigo do meu inimigo será sempre meu amigo. Não, de forma alguma.
Também não podemos esquecer que o golpe já conta dois anos.
Há dois anos Michel Temer governa o Brasil, alterando os fundamentos constitucionais do Estado brasileiro e sacrificando os mais pobres.
Já teve PEC dos gastos, já teve reforma trabalhista, o preço dos combustíveis subiu mais de 200 vezes.
Por que só agora, nas portas das eleições, parte dos caminhoneiros tenta derrubar Michel Temer com tanta volúpia?
O golpe não conseguiu construir uma candidatura viável capaz de defender nas urnas a agenda neoliberal imposta pelo governo de Temer. Até apresentador de TV o golpe tentou transformar em presidenciável.
Lula ainda lidera com folga as pesquisas eleitorais e se deixarem será eleito mesmo estando preso, mesmo sem fazer campanha.
A quem interessa a derrubada de Michel Temer a essa altura do campeonato? Justamente agora, quando ele é um cadáver político apodrecendo em praça pública.
Quem quer derrubar Michel Temer exatamente no momento em que o Congresso Nacional aprova uma PEC que regulamente eleições indiretas em caso de vacância da Presidência da República?
Ainda não está claro quem são essas pessoas que estão na estrada ameaçando caminhoneiros e impedindo a completa normalização da situação. Há quem diga que se trata de grupos vinculados à campanha de Jair Bolsonaro, que estariam tentando impulsionar uma candidatura que parece ter chegado no seu limite, ali, entre 13 e 15%.
Por enquanto, não dá pra saber. Mas sou um daqueles sujeitos que acreditam nas conspirações. Afinal, para que exista uma conspiração basta que pessoas poderosas estejam dispostas a conspirar. A ver o desenrolar dos acontecimentos.
Que tá estranho, ah tá….
Deixando as especulações de lado, estou muito convencido de que a crise de abastecimento provocada pelo movimento dos caminhoneiros demonstrou, na prática, que a crença neoliberal no livre mercado é falaciosa. É fictícia.
Os caminhoneiros tiraram do governo a promessa de que o preço nas bombas dos postos será fiscalizado. Nada contradiz mais o princípio do livre-mercado que o controle dos preços.
Fato, fato mesmo, é que não existe livre mercado em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado: os grupos sociais querem Estado máximo para si e, como o cobertor é curto, isso significa impor Estado mínimo aos outros.
Nessa disputa, os caminhoneiros venceram.
O mercado também venceu, já que nenhum dedo foi relado no regime privatista que Pedro Parente vem impondo à Petrobrás.
Perdemos nós, a sociedade brasileira, pois como não existe mágica no orçamento, o dinheiro que vai subsidiar os caminhoneiros sairá da saúde, da educação, da segurança.
É possível resumir, portanto, o resultado da greve/lockout dos caminhoneiros em poucas palavras: Estado máximo para os caminhoneiros e para o mercado. Estado mínimo para o resto da nação.
O mais impressionante é que tudo isso aconteceu com o apoio da classe média conservadora e sob o entusiasmo de partes das esquerdas. A classe média conservadora olhava para as estradas e via ali um movimento saneador, de combate à corrupção. A esquerda via um movimento autônomo dos trabalhadores, um ato de resistência ao golpe.
Ambos os grupos, como já tinha acontecido em 2013, erraram porque têm o péssimo hábito de fetichezar as ruas, porque olham pra realidade e enxergam somente aquilo que querem. Quem enxerga somente aquilo que quer acaba não vendo coisa alguma.
Mas como a realidade é dura, teimosa, outra vez mostrou que nem tudo que reluz é ouro.
Os golpistas sofrem por serem golpistas e os legalistas por serem covardes. O golpe não é um evento. É um processo que ainda não terminou.
É óbvio que estou falando da “greve dos caminhoneiros”, que no país inteiro bloqueou as principais estradas e rodovias, causando um gravíssimo problema de abastecimento.
Hoje, quando o movimento dá sinais de esvaziamento, talvez seja possível visualizá-lo com mais clareza e compreender o seu lugar na crise brasileira contemporânea. É isso que tento fazer neste ensaio, reconstruindo a cronologia dos acontecimentos, analisando com cuidado as agendas que foram apresentadas, os interesses envolvidos.
O que o tempo inteiro esteve em jogo foi a disputa pelo Estado. Nesse jogo, os caminhoneiros entenderam o poder que possuem sobre a sobrevivência material da sociedade. De posse desse poder, eles acuaram o governo o golpista, estrangularam a nação e venceram. Mas não foram os únicos vencedores.
O mercado também venceu, já que Pedro Parente, presidente da Petrobras e grande responsável pelo colapso energético que estamos vendo no Brasil, não teve o nome citado por aqueles que ocuparam as estradas brasileiras.
Sem dúvida, a grande derrotada foi a sociedade brasileira, que perdeu sorrindo, gozando. A sociedade brasileira comemorou a própria derrota, aplaudindo os caminhoneiros, num surto de masoquismo coletivo.
É importante acompanhar com cuidado a cronologia dos acontecimentos, fato a fato, passo a passo. Crônica factual é igual a canja de galinha: sempre ajuda.
Divido a greve dos caminhoneiros em três momentos distintos:
1° momento – O protagonismo da ABCAM
O marco inicial do movimento se deu no dia 18/5, uma sexta-feira, quando a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (ABCAM) fez uma representação ao governo, exigindo o fim dos impostos sobre o diesel e agendando o início da greve para o dia 21/5.
Já há uns bons seis meses que estavam tensas as relações entre o governo federal e a ABCAM. Mas como o governo federal tinha problemas mais urgentes, como salvar o coro de Michel Temer das duas flechas disparadas por Rodrigo Janot, a poeira foi sendo varrida pra debaixo do tapete.
A atuação de Rodrigo Janot na crise brasileira ainda precisa ser estudada com mais cuidado. Não é isso que faço. Não aqui.
Não custa lembrar que a ABCAM apoiou o golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma. Ninguém apoia um golpe de Estado se não alimenta expectativas de ganhar algo com o novo regime de poder. O governo golpista de Michel Temer frustrou as expectativas da ABCAM.
No início, portanto, a “greve dos caminhoneiros”, tão celebrada à esquerda e à direita, foi conflito travado entre golpistas.
Percebam, leitor e leitora: a ABCAM, entidade que representa também os donos das transportadoras, protestou contra a carga tributária. Nada mais coerente e óbvio do que patrão protestar contra imposto.
A essa altura, não existia agenda política clara nas reivindicações do movimento. Não tinha “fora Temer”, não tinha “Lula Livre”. Também não tinha “intervenção militar já”. A pauta era pela redução de impostos. Apenas isso.
A ABCAM também não questionou a forma como Pedro Parente vem administrando a Petrobrás. A pauta era liberal e exigia redução de impostos.
Em 19 de maio, aconteceu mais um aumento no preço dos combustíveis, o que azedou ainda mais as relações entre a ABCAM e o governo.
Esse aumento já estava previsto no plano de operação da Petrobrás. Mesmo com uma crise grave, a empresa não mudou o plano. Segundo Pedro Parente, a estatal deve ser autônoma e agir por “motivações técnicas e não políticas”. Como se existisse motivação técnica que não seja também política.
Ou seja, para Parente, a empresa pública criada para controlar um setor estratégico para o desenvolvimento nacional deve obedecer às leis do mercado e não ao interesse público.
Isso gerou um problemão para o governo, já que exatamente no momento em que estava acontecendo a negociação com a ABCAM a Petrobrás, agindo por conta própria e obedecendo a “lei do mercado”, aumentou o preço do combustível.
É claro que Michel Temer tentou impedir o aumento, adiá-lo. Provavelmente telefonou para Pedro Parente e ouviu um sonoro “não se meta aqui no meu feudo”. Quando o governo é ilegítimo acaba não sendo respeitado nem pelos aliados.
É irônico que o governo que desregulamentou a Petrobrás tenha se tornado refém das “leis do mercado”. O mercado é ingrato com os seus provedores.
A ABCAM, então, radicalizou sua posição e a greve começou no dia 21 de maio. Ou melhor: até aqui não se tratava de greve. Era lockout mesmo.
2° momento – A horizontalidade do WhatsApp e o protagonismo das bases da categoria
Já no dia 21 de maio foram registrados bloqueios em estradas e rodovias em todo território nacional. Começaram os transtornos: falta de combustível nos postos e produtos nos supermercados.
Percebendo que a situação era grave, o governo decide sentar-se à mesa com aqueles que eram considerados os líderes dos caminhoneiros. Um acordo foi fechado, assinado, suas resoluções publicadas em edição extraordinária do Diário Oficial.
Pra “ajudar”, Pedro Parente autorizou um pequeno desconto no preço do diesel, deixando claro que era uma concessão pontual e que isso não voltaria a acontecer. Afinal, segundo ele, a Petrobrás deve atender às leis do mercado.
Os representantes dos caminhoneiros saíram da reunião dando-se por satisfeitos e prometendo o fim do movimento. O governo veio a público dizer que a situação estava resolvida.
As estradas continuaram bloqueadas e o desabastecimento se aprofundou. O governo ficou com cara de bobo, desmoralizado.
A essa altura, a ABCAM não pautava mais as estradas.
A ABCAM puxou o movimento, mas perdeu o controle sobre ele. A base se autonomizou e aprofundou suas reivindicações: diminuição dos impostos, redução dos pedágios e intervenção militar.
Não dá pra saber se a bandeira da intervenção militar estava sendo levantada por todos os caminhoneiros. Até acredito que não. Porém, é inegável que os grupos intervencionistas foram fortes o suficiente para vincular a greve dos caminhoneiros à narrativa da intervenção.
Parte considerável dos caminhoneiros se achou legítima para exigir a renúncia do presidente da República e reivindicar uma intervenção militar saneadora, assim, sem dialogar com o restante da sociedade.
Enquanto isso, a nação sofria o drama do desabastecimento: pequenos produtores perdendo a colheita, motoristas de uber perdendo a semana de trabalho, escolas e universidades sem funcionar. Hospitais tendo sua rotina prejudicada. A cadeia produtiva parada.
A ABCAM, rapidamente, se manifestou, criticando o clamor pela intervenção militar e solicitando que os caminhoneiros abandonassem essa pauta. Novamente, os caminhoneiros, ou aqueles que estavam no controle do discurso do movimento, deram de ombros.
Pedro Parente e sua gestão privatista, outra vez, passaram batidos, não foram sequer mencionados.
Nesse momento, estava acontecendo, de fato, uma greve relativamente independente do lockout inicial. Mas era uma greve diferente daquela que estamos acostumados a ver no Brasil desde o final da década de 1970. Dessa vez, não existia sindicato, como alguns caminhoneiros falavam, com algum orgulho, em entrevistas à imprensa.
“Isso aqui não é sindicato. Nós decidimos tudo na estrada”.
O país foi paralisado durante uma semana por homens organizados em grupos de WhatsApp.
3° momento – Negociação e refluxo do movimento
Em dia 28 de maio, finalmente o governo conseguiu negociar com as lideranças corretas e, completamente acuado, entregou até as cuecas. O acordo foi assinado e progressivamente os bloqueios foram sendo desfeitos e o abastecimento retomado.
Começou a violência.
Alguns grupos mais exaltados, que, segundo relatórios da Polícia Rodoviária Federal não pertencem à categoria dos caminhoneiros, começaram a atacar os trabalhadores que desejavam retomar suas atividades.
Não é que a violência, em si, seja um problema. Espero que ninguém aqui seja ingênuo o bastante para achar que reivindicação de trabalhadores pode ser feita sem alguma dose de violência.
De uns tempos pra cá, quando a classe média conservadora descobriu o caminho das ruas, sendo sempre tratada com docilidade pelas forças policiais, a violência se tornou um elemento de distinção entre as micaretas dos “cidadãos de bem” e os movimentos dos trabalhadores. Se não tem bomba estourando, gás de pimenta no ar, é porque a manifestação não é séria.
Mas a violência que estamos vendo nas estradas brasileiras é diferente, tem outro teor. O governo atendeu a pauta dos caminhoneiros. Esses que ainda estão nas estradas insistindo nos bloqueios querem outras coisas. Querem derrubar o governo.
Bom, querer derrubar o governo golpista eu também quero. Mas não sou inocente a ponto de achar que o inimigo do meu inimigo será sempre meu amigo. Não, de forma alguma.
Também não podemos esquecer que o golpe já conta dois anos.
Há dois anos Michel Temer governa o Brasil, alterando os fundamentos constitucionais do Estado brasileiro e sacrificando os mais pobres.
Já teve PEC dos gastos, já teve reforma trabalhista, o preço dos combustíveis subiu mais de 200 vezes.
Por que só agora, nas portas das eleições, parte dos caminhoneiros tenta derrubar Michel Temer com tanta volúpia?
O golpe não conseguiu construir uma candidatura viável capaz de defender nas urnas a agenda neoliberal imposta pelo governo de Temer. Até apresentador de TV o golpe tentou transformar em presidenciável.
Lula ainda lidera com folga as pesquisas eleitorais e se deixarem será eleito mesmo estando preso, mesmo sem fazer campanha.
A quem interessa a derrubada de Michel Temer a essa altura do campeonato? Justamente agora, quando ele é um cadáver político apodrecendo em praça pública.
Quem quer derrubar Michel Temer exatamente no momento em que o Congresso Nacional aprova uma PEC que regulamente eleições indiretas em caso de vacância da Presidência da República?
Ainda não está claro quem são essas pessoas que estão na estrada ameaçando caminhoneiros e impedindo a completa normalização da situação. Há quem diga que se trata de grupos vinculados à campanha de Jair Bolsonaro, que estariam tentando impulsionar uma candidatura que parece ter chegado no seu limite, ali, entre 13 e 15%.
Por enquanto, não dá pra saber. Mas sou um daqueles sujeitos que acreditam nas conspirações. Afinal, para que exista uma conspiração basta que pessoas poderosas estejam dispostas a conspirar. A ver o desenrolar dos acontecimentos.
Que tá estranho, ah tá….
Deixando as especulações de lado, estou muito convencido de que a crise de abastecimento provocada pelo movimento dos caminhoneiros demonstrou, na prática, que a crença neoliberal no livre mercado é falaciosa. É fictícia.
Os caminhoneiros tiraram do governo a promessa de que o preço nas bombas dos postos será fiscalizado. Nada contradiz mais o princípio do livre-mercado que o controle dos preços.
Fato, fato mesmo, é que não existe livre mercado em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado: os grupos sociais querem Estado máximo para si e, como o cobertor é curto, isso significa impor Estado mínimo aos outros.
Nessa disputa, os caminhoneiros venceram.
O mercado também venceu, já que nenhum dedo foi relado no regime privatista que Pedro Parente vem impondo à Petrobrás.
Perdemos nós, a sociedade brasileira, pois como não existe mágica no orçamento, o dinheiro que vai subsidiar os caminhoneiros sairá da saúde, da educação, da segurança.
É possível resumir, portanto, o resultado da greve/lockout dos caminhoneiros em poucas palavras: Estado máximo para os caminhoneiros e para o mercado. Estado mínimo para o resto da nação.
O mais impressionante é que tudo isso aconteceu com o apoio da classe média conservadora e sob o entusiasmo de partes das esquerdas. A classe média conservadora olhava para as estradas e via ali um movimento saneador, de combate à corrupção. A esquerda via um movimento autônomo dos trabalhadores, um ato de resistência ao golpe.
Ambos os grupos, como já tinha acontecido em 2013, erraram porque têm o péssimo hábito de fetichezar as ruas, porque olham pra realidade e enxergam somente aquilo que querem. Quem enxerga somente aquilo que quer acaba não vendo coisa alguma.
Mas como a realidade é dura, teimosa, outra vez mostrou que nem tudo que reluz é ouro.
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