Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, no site Tutaméia:
O campo evangélico é heterogêneo e muito complexo. A chamada bancada evangélica, que surgiu com apoio midiático, não fala em nome da comunidade evangélica – ela expressa apenas interesses particulares dos parlamentares.
O campo evangélico é heterogêneo e muito complexo. A chamada bancada evangélica, que surgiu com apoio midiático, não fala em nome da comunidade evangélica – ela expressa apenas interesses particulares dos parlamentares.
É o que afirma Anivaldo Padilha, histórica liderança pelos direitos humanos, em entrevista ao Tutaméia. Sociólogo, membro da igreja metodista e articulador de movimentos ecumênicos no Brasil e na América Latina, ele é um dos fundadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, grupo que surgiu em 2016.
A articulação foi criada a partir de pessoas contra o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff e compromissadas com a democracia. Eram também descontentes com a atuação dessa bancada evangélica.
“Havia a necessidade de fazer uma articulação para dizer claramente para a sociedade que esses deputados ou políticos evangélicos não representam o povo evangélico, não falam em nome dele nem têm autoridade moral para falar em nome dos evangélicos”, afirma Padilha.
O movimento já reúne grupos em vários estados e está crescendo muito pelo país. Tem feito reuniões e manifestações em defesa da democracia. Hoje mesmo, enquanto Padilha dava entrevista ao Tutaméia, outro representante da Frente de Evangélicos, o pastor Ariovaldo Ramos estava em Curitiba visitando o presidente Lula na prisão, levando a ele a solidariedade do grupo.
Nesta entrevista, Padilha trata ainda da diversidade entre os evangélicos e desmonta visões caricatas sobre a religião, que tem muitos adeptos entre os mais pobres.
“Fico preocupado quando vejo a falta de compreensão de setores de esquerda e da mídia em relação a esse mundo. Pessoas falando que há relação entre comunidades evangélicas e o crime organizado, o narcotráfico”, diz.
É possível que haja em alguns lugares, afirma, mas é necessário entender a situação em profundidade, sem cair numa atitude moralista. “Ninguém pergunta por que um evangélico se torna banqueiro”, declara.
Brechas no nevoeiro
Padilha está apreensivo com a situação do país. “Estou vendo um grande nevoeiro. Como em qualquer nevoeiro sempre tem as brechas de luz. O grande desafio nosso é encontrar essas brechas por onde devemos caminhar. A situação está muito complicada”.
Para ele, o golpe atual “é muito mais profundo e mais amplo do que o golpe de 1964”, embora existam semelhanças.
“O de 64 foi um golpe, como o de agora, contra os trabalhadores, a favor do capital, em defesa do grande capital, para recompor sua taxa de lucro e ter controle absoluto do mercado sobre a sociedade.”
Naquele do passado, recorda, as Forças Armadas foram o instrumento para a tomada de poder, interrompendo o processo de reformas de base. Agora, ressalta, foi também um golpe semelhante, para interromper as mudanças que estavam ocorrendo com os governos Lula e Dilma.
Classe dominante sem compromisso com a democracia
Os dois casos, avalia Padilha, demonstraram que “a classe dominante brasileira não tem nenhum compromisso com a democracia, nunca conseguiu conviver com a democracia. Em todos os momentos em que o povo emergiu no cenário político, essa classe dominante deu golpe de Estado.
Desta vez foram mais espertos e usaram as instituições do Estado, o judiciário, polícia federal, ministério público, com apoio enorme dos meios de comunicação”.
Nesse último ponto, o da comunicação, ele identifica diferença em relação a 1964. Naquele momento havia dissidências; agora houve apoio unânime entre os meios de comunicação. “Não é jornalismo; são programas de propaganda ideológica e política. Não há debate; é versão única, pensamento único”.
Nesse quadro, Padilha diz que os golpistas de hoje conseguiram “dar um golpe com uma fachada democrática e que vai diretamente ao âmago dos interesses e dos direitos dos trabalhadores. A ditadura civil-militar não teve coragem de avançar nessa questão. Agora o objetivo é destruir os direitos dos trabalhadores”.
Entrega total e absoluta do país
Diferentemente do que ocorreu em 1964, reforça o sociólogo, “esse golpe de hoje é uma entrega total e absoluta do Brasil e submissão total do Brasil aos interesses do grande capital internacional, principalmente do capital financeiro, simbolizado em grande parte pelos EUA. Em 64, os militares tinham uma visão de país, um projeto nacional, a ideia do Brasil grande”.
Padilha observa que os ataques aos trabalhadores ocorrem em nível mundial e constata: “Hoje é muito mais difícil resistir a esse golpe do que foi em 1964. Lá se conseguia claramente identificar quem estava promovendo; hoje a gente não tem os meios necessários para ajudar a população a discernir quem é quem nesse golpe”.
Forças Armadas submissas aos EUA
Ele traz outras indagações:
“O que me surpreende é que as Forças Armadas sempre tiveram um discurso patriótico e nacionalista –mesmo que seja de direita. Hoje não se vê esse discurso. Parece que as Forças Armadas abdicaram de deu papel de defesa do território nacional e aceitam plenamente ser uma força auxiliar do poder americano”.
Padilha lembra do empenho dos miliares, no passado, no desenvolvimento de tecnologias de ponta. E estranha que, agora, eles não tenham se colocado contra a entrega do Pré-Sal, o uso da base de Alcântara pelos EUA, a venda da Embraer à Boeing, a paralisia no projeto do submarino nuclear.
“Se houve reação interna, isso não respingou para fora. Esse governo golpista está reduzindo as Forças Armadas a um papel absolutamente secundário, como se fosse uma força auxiliar das forças armadas norte-americanas”.
Lula para reconstruir o diálogo
Na sua avaliação, o golpe conseguiu “desmoralizar todas as instituições. É uma crise institucional”. Ao mesmo tempo, diz, há uma percepção, em grande parte da sociedade, “de que Lula seria a pessoa em condições de reconstruir um diálogo nacional que pudesse levar à superação da crise. Hoje não há, além de Lula, uma outra liderança que consiga fazer isso”.
Padilha não descarta a hipótese de cancelamento das eleições. “A classe dominante não tem compromisso com a democracia, nunca teve”, reforça. Assim, caso constate a provável derrota, pode embarcar em um outro golpe, via estabelecimento do parlamentarismo. “Seria um golpe judiciário, para limitar o poder do presidente.
Na sua análise, há atualmente “o fortalecimento de um caldo de cultura fascista no Brasil. Que sempre existiu, estava lá escondido. Mas essa direita perdeu a vergonha, perdeu os escrúpulos, decidiu não esconder mais os seus escrúpulos, ou a falta de escrúpulos”.
Daí a necessidade de formação de uma “frente antifascista. Temos que entender que estamos vivendo uma situação excepcional, que exige atitude excepcionais da nossa parte também”.
Nesta entrevista, Padilha fala da enorme revolução no mundo religioso no Brasil nas últimas décadas. Expõe diferenças e raízes históricas dos grupos em expansão no país.
Declarando-se otimista, ele se diz quase um especialista em golpes no Brasil. Conta que tinha 14 anos quando Getúlio Vargas se suicidou. Soube da notícia por uma edição extraordinária do “Repórter Esso”. Virou para a mãe e disse: “Vou para o Centro”. Ele morava longe, na Vila Medeiros, Zona Norte.
Foi para o Centro para ajudar a empastelar o Estadão e os Diários Associados. “Foi uma revolta espontânea. O povo foi para rua. Foi o primeiro golpe que eu percebi”, lembra.
Agora ele fala novamente em resistência. “Penso nos meus companheiros que morreram. Sinto pena daqueles que mudaram de rumo. Vejo alguns que são traidores de sua própria consciência e de sua própria história”.
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