Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
Como é pobre e enviesada a velha mídia brasileira. Há anos, Saúde aparece, nas pesquisas de opinião, como o tema que mais preocupa a população. Exemplo raro de sistema público que propõe cuidado universal e gratuito, o SUS completa em 2018 seus trinta anos, em meio a conquistas notáveis e enormes problemas. Nesse momento preciso, começa um congresso de Saúde Coletiva que se propõe a enxergar, em seus múltiplos aspectos, os impasses do sistema – e a buscar alternativas. O encontro é solenemente ignorado pelos jornais, rádios e TVs hegemônicos.
Ainda assim, distante das grandes audiências, o evento – 12º congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, ou “Abrascão” – avança. Cerca de 9 mil pessoas povoam, desde ontem (26/7), o câmpus da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal centro de pesquisas sobre Saúde do Brasil, na zona norte do Rio de Janeiro. Participam de centenas de debates (veja a programação e um resumo). Nas salas de aula da Fiocruz, há mesas redondas, cursos e comunicações orais, sobre assuntos tão relevantes como as “Tendências do câncer no Brasil”, as “Pesquisas epidemológicas na saúde indígena”, “Relações violentas entre parceiros íntimos” ou “Comunicação e resistência na luta contra os agrotóxicos”. A diversidade e a seriedade dos debates (o autor de cada comunicação científica disponibiliza, no site do evento, o trabalho que originou a atividade) revelam como avançou, em trinta anos de SUS, a pesquisa brasileira sobre Saúde.
Em momentos especiais, os participantes envolvem-se em debates mais amplos, acerca do futuro da Saúde Pública, dos destinos do país, da crise civilizatória em que estamos mergulhados. Enormes tendas armadas no câmpus abrigam conferências como “Desigualdades sociais e estratégicas para superá-las”, “Capitalismo, Direitos e Democracia”, “Desafios de financiamento do SUS” ou “Saúde e Inovação em um novo projeto de desenvolvimento”. Esta dinâmica mista torna o congresso ainda mais atraente. Um pesquisador empenhado no controle da febre amarela pode, por exemplo, expor pela manhã os avanços e limites de um novo tratamento para a doença e intervir, no final da tarde, numa polêmica sobre os subsídios do Estado aos planos de saúde privados.
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Em 20 de julho, quando terminavam os preparativos para o 12º congresso, o presidente da Abrasco, Gastão Wagner, expôs a Outras Palavras sua visão sobre o sentido do evento, no cenário áspero que vivemos. Médico sanitarista, participante desde a juventude do movimento de Reforma Sanitária e escritor de ficção, Gastão recusa-se a sucumbir à onda de pessimismo que às vezes arrasta quem vislumbra as crises do SUS.
Ele construiu um diagnóstico complexo sobre as causas das dificuldades. Apesar de profundamente inovador, o SUS – diz Gastão – não poderia ficar imune às misérias da sociedade brasileira. Uma delas é o privatismo. Construído a partir da Constituição de 1988, o novo sistema público de saúde nasceu contaminado pela grande presença de hospitais e centros de atenção básica privados, que operam em lógica presidida pelo lucro – não pelos direitos. Nos últimos anos, esta situação agravou-se. Surgiram as OSs – “organizações sociais” a quem o Estado tem transferido serviços e equipamentos públicos, e oferecido recursos e flexibilidades (na contratação de pessoal e aquisição de bens, por exemplo) que não concede nem a si mesmo.
Uma segunda marca do passado é o Estado clientalista. Há trinta anos, uma das marcas do SUS foi o ímpeto de decentralização. O país superava uma ditadura que promoveu extrema concentração de poder. Os que resistiam acreditavam em inverter a tendência. O sistema deveria ser municipalizado, de forma que a população pudesse influir sobre ele nas próprias cidades em que mora, com menos mediações. Porém, as prefeituras tornaram-se centros de controle oligárquico e o poder concedido pelo SUS aos prefeitos volta-se frequentemente contra o sistema. Os governantes locais ganharam “autonomia”, por exemplo, para deixar de investir nas equipes de Saúde da Família, ou na vigilância sanitária – enquanto concentram recursos no pagamento de hospitais privados. Os Conselhos Municipais de Saúde, um instrumento que deveria bloquear esta tendência, mostram-se pouco efetivos para tanto.
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Por que Gastão segue esperançoso se agora, além das dificuldades antigas, o SUS e a Saúde Pública são ameaçados pelo golpe e pela Emenda Constitucional 95, que congela o gasto social? O presidente da Abrasco parece apostar precisamente em virtudes do sistema que a velha mídia esforça-se em ocultar. As TVs falam, todos os dias, das filas e corredores lotados dos hospitais públicos (atribuindo tais problemas ao SUS, e não à tentativa de sucateá-lo…). Mas omite, por exemplo, que graças aos programas de saúde preventiva construídos pelo sistema, a expectativa de vida dos brasileiros passou de 62,5 para 76,5 anos, em três décadas. E esconde que a mortalidade infantil antes de um ano de idade foi reduzida em mais de 80% no mesmo período – caindo de 69 por mil para 13,3 por mil crianças.
Em 2016, primeiro ano do golpe, este último índice voltou a crescer (para 14 crianças por mil). A crise social espalha-se pelas ruas, a olhos vistos. Pergunta-se: a sociedade brasileira aceitará passivamente a deterioração de suas condições de vida? A hipótese de Gastão em favor do futuro do SUS parece assentar nesta questão central. O programa de retrocessos das elites políticas e empresariais é insuportável. Trata-se de criar, com imaginação política, caminhos para superá-lo. Como revogar a Emenda 95? Como estabelecer um plano para livrar o SUS da contaminação privatista? Como superar as ciladas do poder local, sem resvalar novamente para um centralismo paralisante? Como – tarefa imediata – superar divergências e estabelecer, nas eleições de 2018, uma grande frente de luta que derrote o golpe?
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A presença de 9 mil pessoas no Abrascão é um sinal animador. É – como diz também Gastão Wagner, em nossa entrevista – um esboço de outra política possível. Há trinta anos, a luta pelo SUS demonstra, de forma pioneira no Brasil, que ação transformadora pode ir muito além de partidos e eleições. As reflexões que poderão, num futuro próximo, defender e transformar a Saúde Pública estão sendo debatidas, neste preciso momento, não numa convenção partidária, mas num encontro plural, de 9 mil pessoas.
A comunicação é um processo central, para tornar viável esta política de multidões. Mudar o mundo exige diálogos, sínteses, convergências e acordos. Fazê-lo além de pequenos círculos é árduo, mas viável. Outras Palavras alegra-se de ter lançado, no início deste ano Outra Saúde, um site dedicado à defesa do SUS e à construção do que ele poderá ser no futuro. E anima-se de fazer, no Abrascão, a cobertura do que Gastão Wagner chama de “construção social da esperança”. Fique com a entrevista, em vídeo, e acompanhe, no novo site, nossa cobertura do evento.
Como é pobre e enviesada a velha mídia brasileira. Há anos, Saúde aparece, nas pesquisas de opinião, como o tema que mais preocupa a população. Exemplo raro de sistema público que propõe cuidado universal e gratuito, o SUS completa em 2018 seus trinta anos, em meio a conquistas notáveis e enormes problemas. Nesse momento preciso, começa um congresso de Saúde Coletiva que se propõe a enxergar, em seus múltiplos aspectos, os impasses do sistema – e a buscar alternativas. O encontro é solenemente ignorado pelos jornais, rádios e TVs hegemônicos.
Ainda assim, distante das grandes audiências, o evento – 12º congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, ou “Abrascão” – avança. Cerca de 9 mil pessoas povoam, desde ontem (26/7), o câmpus da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal centro de pesquisas sobre Saúde do Brasil, na zona norte do Rio de Janeiro. Participam de centenas de debates (veja a programação e um resumo). Nas salas de aula da Fiocruz, há mesas redondas, cursos e comunicações orais, sobre assuntos tão relevantes como as “Tendências do câncer no Brasil”, as “Pesquisas epidemológicas na saúde indígena”, “Relações violentas entre parceiros íntimos” ou “Comunicação e resistência na luta contra os agrotóxicos”. A diversidade e a seriedade dos debates (o autor de cada comunicação científica disponibiliza, no site do evento, o trabalho que originou a atividade) revelam como avançou, em trinta anos de SUS, a pesquisa brasileira sobre Saúde.
Em momentos especiais, os participantes envolvem-se em debates mais amplos, acerca do futuro da Saúde Pública, dos destinos do país, da crise civilizatória em que estamos mergulhados. Enormes tendas armadas no câmpus abrigam conferências como “Desigualdades sociais e estratégicas para superá-las”, “Capitalismo, Direitos e Democracia”, “Desafios de financiamento do SUS” ou “Saúde e Inovação em um novo projeto de desenvolvimento”. Esta dinâmica mista torna o congresso ainda mais atraente. Um pesquisador empenhado no controle da febre amarela pode, por exemplo, expor pela manhã os avanços e limites de um novo tratamento para a doença e intervir, no final da tarde, numa polêmica sobre os subsídios do Estado aos planos de saúde privados.
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Em 20 de julho, quando terminavam os preparativos para o 12º congresso, o presidente da Abrasco, Gastão Wagner, expôs a Outras Palavras sua visão sobre o sentido do evento, no cenário áspero que vivemos. Médico sanitarista, participante desde a juventude do movimento de Reforma Sanitária e escritor de ficção, Gastão recusa-se a sucumbir à onda de pessimismo que às vezes arrasta quem vislumbra as crises do SUS.
Ele construiu um diagnóstico complexo sobre as causas das dificuldades. Apesar de profundamente inovador, o SUS – diz Gastão – não poderia ficar imune às misérias da sociedade brasileira. Uma delas é o privatismo. Construído a partir da Constituição de 1988, o novo sistema público de saúde nasceu contaminado pela grande presença de hospitais e centros de atenção básica privados, que operam em lógica presidida pelo lucro – não pelos direitos. Nos últimos anos, esta situação agravou-se. Surgiram as OSs – “organizações sociais” a quem o Estado tem transferido serviços e equipamentos públicos, e oferecido recursos e flexibilidades (na contratação de pessoal e aquisição de bens, por exemplo) que não concede nem a si mesmo.
Uma segunda marca do passado é o Estado clientalista. Há trinta anos, uma das marcas do SUS foi o ímpeto de decentralização. O país superava uma ditadura que promoveu extrema concentração de poder. Os que resistiam acreditavam em inverter a tendência. O sistema deveria ser municipalizado, de forma que a população pudesse influir sobre ele nas próprias cidades em que mora, com menos mediações. Porém, as prefeituras tornaram-se centros de controle oligárquico e o poder concedido pelo SUS aos prefeitos volta-se frequentemente contra o sistema. Os governantes locais ganharam “autonomia”, por exemplo, para deixar de investir nas equipes de Saúde da Família, ou na vigilância sanitária – enquanto concentram recursos no pagamento de hospitais privados. Os Conselhos Municipais de Saúde, um instrumento que deveria bloquear esta tendência, mostram-se pouco efetivos para tanto.
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Por que Gastão segue esperançoso se agora, além das dificuldades antigas, o SUS e a Saúde Pública são ameaçados pelo golpe e pela Emenda Constitucional 95, que congela o gasto social? O presidente da Abrasco parece apostar precisamente em virtudes do sistema que a velha mídia esforça-se em ocultar. As TVs falam, todos os dias, das filas e corredores lotados dos hospitais públicos (atribuindo tais problemas ao SUS, e não à tentativa de sucateá-lo…). Mas omite, por exemplo, que graças aos programas de saúde preventiva construídos pelo sistema, a expectativa de vida dos brasileiros passou de 62,5 para 76,5 anos, em três décadas. E esconde que a mortalidade infantil antes de um ano de idade foi reduzida em mais de 80% no mesmo período – caindo de 69 por mil para 13,3 por mil crianças.
Em 2016, primeiro ano do golpe, este último índice voltou a crescer (para 14 crianças por mil). A crise social espalha-se pelas ruas, a olhos vistos. Pergunta-se: a sociedade brasileira aceitará passivamente a deterioração de suas condições de vida? A hipótese de Gastão em favor do futuro do SUS parece assentar nesta questão central. O programa de retrocessos das elites políticas e empresariais é insuportável. Trata-se de criar, com imaginação política, caminhos para superá-lo. Como revogar a Emenda 95? Como estabelecer um plano para livrar o SUS da contaminação privatista? Como superar as ciladas do poder local, sem resvalar novamente para um centralismo paralisante? Como – tarefa imediata – superar divergências e estabelecer, nas eleições de 2018, uma grande frente de luta que derrote o golpe?
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A presença de 9 mil pessoas no Abrascão é um sinal animador. É – como diz também Gastão Wagner, em nossa entrevista – um esboço de outra política possível. Há trinta anos, a luta pelo SUS demonstra, de forma pioneira no Brasil, que ação transformadora pode ir muito além de partidos e eleições. As reflexões que poderão, num futuro próximo, defender e transformar a Saúde Pública estão sendo debatidas, neste preciso momento, não numa convenção partidária, mas num encontro plural, de 9 mil pessoas.
A comunicação é um processo central, para tornar viável esta política de multidões. Mudar o mundo exige diálogos, sínteses, convergências e acordos. Fazê-lo além de pequenos círculos é árduo, mas viável. Outras Palavras alegra-se de ter lançado, no início deste ano Outra Saúde, um site dedicado à defesa do SUS e à construção do que ele poderá ser no futuro. E anima-se de fazer, no Abrascão, a cobertura do que Gastão Wagner chama de “construção social da esperança”. Fique com a entrevista, em vídeo, e acompanhe, no novo site, nossa cobertura do evento.
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