Por Paulo Kliass, no site Outras Palavras:
O avanço do calendário eleitoral e a maior clarificação dos campos no espectro político e partidário começam a conferir maior visibilidade às diferentes avaliações da difícil situação por que passa a nossa economia. Além disso, o momento permite a discussão de propostas para a superação da profunda crise que o Brasil vem atravessando ao longo dos últimos anos. Para além da denúncia da injustificada e arbitrária prisão do líder das pesquisas, as eleições permitem a reflexão coletiva a respeito do quadro dramático em que fomos encurralados.
Desde antes da deflagração da operação do “golpeachment” contra a Presidenta eleita, as forças aglutinadas em torno dos interesses do sistema financeiro se aliaram aos setores mais retrógrados do Congresso Nacional com o objetivo de mudar os rumos do País. O foco era retirar Dilma do Palácio do Planalto e abrir caminho para que o comando da economia fosse atribuído a quem pudesse promover a destruição dos avanços que haviam sido conquistados ao longo dos anos.
E assim foi feito. Mais uma vez ficou evidenciado que a economia não tem nada de isenção técnica ou de neutralidade. Afinal, a nomeação de Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, dotados da mais completa autonomia para implementar o programa da economia de um governo absolutamente ilegítimo, foi uma decisão ponderada e amadurecida de Michel Temer. A continuidade da estratégia do “austericídio”, iniciada ainda por Joaquim Levy em 2015, já era esperada por quem tivesse um mínimo de experiência e contato com o assunto.
Porém, o núcleo duro do novo governo foi muito além de um “mero” aprofundamento radicalizado da estratégia de ajuste fiscal a qualquer custo. Temer decidiu por levar a cabo uma política de desmonte do Estado brasileiro e de destruição das bases das políticas sociais estabelecidas na própria Constituição. Para tanto, lançou mão de múltiplas estratégias, que iam desde o contingenciamento draconiano de verbas orçamentárias até reformas constitucionais redutoras de direitos, passando também por medidas de estrangulamento e extinção de programas de governo com foco na inclusão e no reforço da cidadania.
Economia política da desigualdade
A opção de política econômica praticada pelos banqueiros da Esplanada dos Ministérios foi cristalina: favorecimento dos setores do topo da pirâmide e penalização da grande maioria da população. A velha história dos 99% versus 1%, ou ainda dos 0,1%. Com isso, fica evidente que não existe apenas a ”economia” como campo do conhecimento. Os pensadores clássicos desse ramo das ciências humanas e sociais já sabiam disso há muito tempo. Até mesmo os intelectuais mais conservadores usavam um termo que hoje seria considerado comuno-bolivariano pela maioria dos liberaloides de plantão.
Por exemplo, Adam Smith e David Ricardo em suas obras mais famosas tratavam do objeto qualificado por eles como “economia política”. Sim, pois foi apenas no século XX que a tradição anglófona dos liberais neoclássicos fez uma sutil cirurgia e a antiga “political economy” virou apenas “economics”. Na versão para o português, a dominação ideológica fez com que tenhamos ficado apenas com a simplificadora “economia”. Esse reducionismo linguístico é totalmente revelador da opção por eliminar o adjetivo “política”, pois poderia provocar muita confusão no tratamento teórico e nas suas derivações para o uso do instrumental.
Ao se reconhecer a natureza intrinsecamente política da economia, fica mais fácil a identificação da função que ela exerce no processo de organização e funcionamento do modo de produção e da sociedade capitalistas. Entre outros aspectos, o pensamento econômico dominante reproduz e reforça a própria desigualdade, um dos pilares do modelo que campeia em nossas terras.
Mas como nem tudo está perdido para sempre nesse mundo, sobrevive uma abordagem alternativa à dominação ortodoxa e conservadora. As universidades ainda resistem a esse pensamento e as análises críticas do modelo encontram espaço para florescerem. As instituições de pesquisa não aceitam passivamente as receitas de reprodução e validação da injustiça e da exploração.
Economia para muito poucos
Importante exemplo desse movimento é o livro Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, que foi lançado recentemente pela Editora Autonomia Literária. A obra foi organizada por Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi. Além da introdução e da conclusão, seus 15 capítulos oferecem ao leitor um amplo panorama da abordagem crítica da abordagem econômica convencional. Em sua maioria, os autores são integrantes de uma nova geração de economistas e pesquisadores, que não se conformaram com as simplificações de análises e de propostas reproduzidas à exaustão pelos grandes meios de comunicação.
Ao oferecer uma visão crítica dos programas de austeridade, o livro trata dos efeitos perversos do ajuste conservador em áreas tão amplas como educação, saúde, previdência social, direitos humanos, habitação, segurança pública, cultura, sustentabilidade e agricultura familiar, entre outras. A todo instante, a atenção do leitor é chamada para a sua natureza de manutenção e reprodução da desigualdade. Assim, o conjunto dos textos converge para uma análise crítica das recomendações de política econômica dirigida para poucos, na verdade para muito poucos.
Em suas páginas introdutórias, o livro se apresenta de forma objetiva e sem receios de tomar partido na chamada disputa de narrativas:
“O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, sem dúvida, essa é uma das nossas características mais injustas. Apesar da recente melhora, as desigualdades se manifestam em diversos níveis; desigualdade de renda, de gênero e raça, de acesso a bens e serviços e de riqueza, sem falar nas desigualdades regionais e de condições de trabalho. Enfrentar esse problema deveria ser a agenda prioritária brasileira, e a política fiscal tem uma papel central nessa agenda. A Constituição de 1988 prevê diversos mecanismos que deveriam atuar nesse sentido, mas muitas das medidas aprovadas não saíram do papel até hoje, ou não foram totalmente aplicadas. Aquele projeto inclusivo de promoção de uma sociedade mais justa está ficando cada dia mais distante. Cada vez mais, adotam-se medidas que limitam a ação do Estado e promovem cada vez mais uma economia para poucos, justamente para aqueles que hoje se encontram no topo da pirâmide.”
É inegável que os riscos de continuidade de tal opção perversa de política econômica estão presentes. Apesar dos índices de popularidade rastejantes do governo em fim de feira, a capacidade de articulação do financismo não pode ser negligenciada. A grande imprensa não deixa de insistir na tecla da necessidade inarredável desse tipo de ajuste e os partidos nanicos da sopa de letrinhas não hesitam em se inclinar a quem lhes oferecer mais recursos para sobrevivência no mar do fisiologismo.
Essa é uma das razões que reforçam a importância e a oportunidade da “Economia para poucos”. Incorporar mais luz e oxigênio ao debate de temas que são tratados pelo pensamento conservador como óbvios, recheado de soluções fáceis e propostas simplistas. Ainda na introdução deparamo-nos com o alerta:
“Essa nova forma de gestão do orçamento público tem consequências macroeconômicas e distributivas e condiciona a capacidade dos governos de induzir o crescimento econômico e de promover o bem-estar social. Tal mudança profunda na gestão fiscal afeta a vida das pessoas e tem, portanto, importantes impactos sociais. Quais os efeitos da austeridade na ponta? No acesso aos direitos sociais como saúde e educação? Na vida das pessoas do campo? Na preservação do meio ambiente? No acesso à cultura da população mais carente? Como fica o papel do Estado na garantia de direitos humanos básicos? Na redução do déficit habitacional? E como ficam os princípios básicos da Constituição Federal de 1988 nesse contexto de austeridade? Há alternativas a esse projeto?”
A nossa experiência atual e as opções de países que trilharam o mesmo caminho da austeridade apontam para a necessidade de superar esse modelo que reproduz a concentração e a desigualdade. O debate eleitoral se apresenta como mais uma oportunidade para a discussão crítica dos efeitos desse tipo de política econômica, que agrada tanto a tão poucos e que provoca consequências nefastas para a absoluta maioria. As alternativas existem. O que falta é a construção de uma maioria politica com vontade e disposição para implementá-las.
O avanço do calendário eleitoral e a maior clarificação dos campos no espectro político e partidário começam a conferir maior visibilidade às diferentes avaliações da difícil situação por que passa a nossa economia. Além disso, o momento permite a discussão de propostas para a superação da profunda crise que o Brasil vem atravessando ao longo dos últimos anos. Para além da denúncia da injustificada e arbitrária prisão do líder das pesquisas, as eleições permitem a reflexão coletiva a respeito do quadro dramático em que fomos encurralados.
Desde antes da deflagração da operação do “golpeachment” contra a Presidenta eleita, as forças aglutinadas em torno dos interesses do sistema financeiro se aliaram aos setores mais retrógrados do Congresso Nacional com o objetivo de mudar os rumos do País. O foco era retirar Dilma do Palácio do Planalto e abrir caminho para que o comando da economia fosse atribuído a quem pudesse promover a destruição dos avanços que haviam sido conquistados ao longo dos anos.
E assim foi feito. Mais uma vez ficou evidenciado que a economia não tem nada de isenção técnica ou de neutralidade. Afinal, a nomeação de Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn, dotados da mais completa autonomia para implementar o programa da economia de um governo absolutamente ilegítimo, foi uma decisão ponderada e amadurecida de Michel Temer. A continuidade da estratégia do “austericídio”, iniciada ainda por Joaquim Levy em 2015, já era esperada por quem tivesse um mínimo de experiência e contato com o assunto.
Porém, o núcleo duro do novo governo foi muito além de um “mero” aprofundamento radicalizado da estratégia de ajuste fiscal a qualquer custo. Temer decidiu por levar a cabo uma política de desmonte do Estado brasileiro e de destruição das bases das políticas sociais estabelecidas na própria Constituição. Para tanto, lançou mão de múltiplas estratégias, que iam desde o contingenciamento draconiano de verbas orçamentárias até reformas constitucionais redutoras de direitos, passando também por medidas de estrangulamento e extinção de programas de governo com foco na inclusão e no reforço da cidadania.
Economia política da desigualdade
A opção de política econômica praticada pelos banqueiros da Esplanada dos Ministérios foi cristalina: favorecimento dos setores do topo da pirâmide e penalização da grande maioria da população. A velha história dos 99% versus 1%, ou ainda dos 0,1%. Com isso, fica evidente que não existe apenas a ”economia” como campo do conhecimento. Os pensadores clássicos desse ramo das ciências humanas e sociais já sabiam disso há muito tempo. Até mesmo os intelectuais mais conservadores usavam um termo que hoje seria considerado comuno-bolivariano pela maioria dos liberaloides de plantão.
Por exemplo, Adam Smith e David Ricardo em suas obras mais famosas tratavam do objeto qualificado por eles como “economia política”. Sim, pois foi apenas no século XX que a tradição anglófona dos liberais neoclássicos fez uma sutil cirurgia e a antiga “political economy” virou apenas “economics”. Na versão para o português, a dominação ideológica fez com que tenhamos ficado apenas com a simplificadora “economia”. Esse reducionismo linguístico é totalmente revelador da opção por eliminar o adjetivo “política”, pois poderia provocar muita confusão no tratamento teórico e nas suas derivações para o uso do instrumental.
Ao se reconhecer a natureza intrinsecamente política da economia, fica mais fácil a identificação da função que ela exerce no processo de organização e funcionamento do modo de produção e da sociedade capitalistas. Entre outros aspectos, o pensamento econômico dominante reproduz e reforça a própria desigualdade, um dos pilares do modelo que campeia em nossas terras.
Mas como nem tudo está perdido para sempre nesse mundo, sobrevive uma abordagem alternativa à dominação ortodoxa e conservadora. As universidades ainda resistem a esse pensamento e as análises críticas do modelo encontram espaço para florescerem. As instituições de pesquisa não aceitam passivamente as receitas de reprodução e validação da injustiça e da exploração.
Economia para muito poucos
Importante exemplo desse movimento é o livro Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil, que foi lançado recentemente pela Editora Autonomia Literária. A obra foi organizada por Ana Luiza Matos de Oliveira, Esther Dweck e Pedro Rossi. Além da introdução e da conclusão, seus 15 capítulos oferecem ao leitor um amplo panorama da abordagem crítica da abordagem econômica convencional. Em sua maioria, os autores são integrantes de uma nova geração de economistas e pesquisadores, que não se conformaram com as simplificações de análises e de propostas reproduzidas à exaustão pelos grandes meios de comunicação.
Ao oferecer uma visão crítica dos programas de austeridade, o livro trata dos efeitos perversos do ajuste conservador em áreas tão amplas como educação, saúde, previdência social, direitos humanos, habitação, segurança pública, cultura, sustentabilidade e agricultura familiar, entre outras. A todo instante, a atenção do leitor é chamada para a sua natureza de manutenção e reprodução da desigualdade. Assim, o conjunto dos textos converge para uma análise crítica das recomendações de política econômica dirigida para poucos, na verdade para muito poucos.
Em suas páginas introdutórias, o livro se apresenta de forma objetiva e sem receios de tomar partido na chamada disputa de narrativas:
“O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, sem dúvida, essa é uma das nossas características mais injustas. Apesar da recente melhora, as desigualdades se manifestam em diversos níveis; desigualdade de renda, de gênero e raça, de acesso a bens e serviços e de riqueza, sem falar nas desigualdades regionais e de condições de trabalho. Enfrentar esse problema deveria ser a agenda prioritária brasileira, e a política fiscal tem uma papel central nessa agenda. A Constituição de 1988 prevê diversos mecanismos que deveriam atuar nesse sentido, mas muitas das medidas aprovadas não saíram do papel até hoje, ou não foram totalmente aplicadas. Aquele projeto inclusivo de promoção de uma sociedade mais justa está ficando cada dia mais distante. Cada vez mais, adotam-se medidas que limitam a ação do Estado e promovem cada vez mais uma economia para poucos, justamente para aqueles que hoje se encontram no topo da pirâmide.”
É inegável que os riscos de continuidade de tal opção perversa de política econômica estão presentes. Apesar dos índices de popularidade rastejantes do governo em fim de feira, a capacidade de articulação do financismo não pode ser negligenciada. A grande imprensa não deixa de insistir na tecla da necessidade inarredável desse tipo de ajuste e os partidos nanicos da sopa de letrinhas não hesitam em se inclinar a quem lhes oferecer mais recursos para sobrevivência no mar do fisiologismo.
Essa é uma das razões que reforçam a importância e a oportunidade da “Economia para poucos”. Incorporar mais luz e oxigênio ao debate de temas que são tratados pelo pensamento conservador como óbvios, recheado de soluções fáceis e propostas simplistas. Ainda na introdução deparamo-nos com o alerta:
“Essa nova forma de gestão do orçamento público tem consequências macroeconômicas e distributivas e condiciona a capacidade dos governos de induzir o crescimento econômico e de promover o bem-estar social. Tal mudança profunda na gestão fiscal afeta a vida das pessoas e tem, portanto, importantes impactos sociais. Quais os efeitos da austeridade na ponta? No acesso aos direitos sociais como saúde e educação? Na vida das pessoas do campo? Na preservação do meio ambiente? No acesso à cultura da população mais carente? Como fica o papel do Estado na garantia de direitos humanos básicos? Na redução do déficit habitacional? E como ficam os princípios básicos da Constituição Federal de 1988 nesse contexto de austeridade? Há alternativas a esse projeto?”
A nossa experiência atual e as opções de países que trilharam o mesmo caminho da austeridade apontam para a necessidade de superar esse modelo que reproduz a concentração e a desigualdade. O debate eleitoral se apresenta como mais uma oportunidade para a discussão crítica dos efeitos desse tipo de política econômica, que agrada tanto a tão poucos e que provoca consequências nefastas para a absoluta maioria. As alternativas existem. O que falta é a construção de uma maioria politica com vontade e disposição para implementá-las.
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