Por Pedro Estevam Serrano, na revista CartaCapital:
O lamentável ataque ao deputado e candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) nos impele a uma imprescindível reflexão sobre a fragilidade do momento político e social que atravessamos.
Chantal Mouffe, uma das mais importantes teóricas da política contemporânea, observa muito precisamente que, diferentemente do que gostaríamos, a política não é mero debate racional de ideias pelo qual se chega ou se pretende chegar a um consenso. A ação política é também orientada por afetos, paixões e sentidos de diversas naturezas, ou seja, é muito mais ambiente afetivo do que de consenso racional e, justamente por isso, é feita de disputas.
Essa afetividade conflitiva que faz parte da vida política em certos períodos históricos acaba por se fundar em relações de antagonismo, de rivalidade extrema, em que o adverso passa a ser visto não mais como adversário, mas sim como inimigo. Os oponentes deixam de reconhecer no outro, naquele que dele diverge, a legitimidade para existir na sociedade política. Em situações-limite, como nos regimes totalitários, deixam de reconhecer até mesmo sua condição humana, desejando sua eliminação.
Como nos aponta a pensadora belga Chantal Mouffe, a concepção antagônica do conflito político, da disputa entre inimigos, sempre implica um discurso político simplificador da pluralidade naturalmente existente numa sociedade complexa. Procura-se reduzir todas as formas de pensar diferentes e sintetizá-las no inimigo, como se fosse uma coisa só. Assim, o indivíduo que se posiciona ideologicamente como de direita sintetiza todo o universo de diferentes pensamentos associados à esquerda na figura do comunista, do “esquerdopata”, enquanto, do outro lado, as diferentes linhagens de pensamento e atuação de direita são reduzidas na figura do fascista. Esse recurso de restrição e redução da diversidade é utilizado para criar uma caricatura e, assim, facilitar o ataque de uns contra os outros.
Em oposição a esse entendimento antagônico, Chantal Mouffe propõe a visão agonística da disputa política, que pressupõe uma relação entre adversários, e não mais entre inimigos. Neste modelo há uma substancial diferença, pois o adversário é reconhecido como alguém que embora possa nunca chegar a racionalmente consentir com o pensamento de seu oponente, tem a legitimidade de sua existência reconhecida por ele como necessária a uma sociedade política pluralista e complexa, na qual habitam diversas concepções morais, políticas, afetivas, etc.
A disputa política agonística não necessariamente resulta em um consenso ou em uma “verdade” única, mas permite a existência de um common ground, como fala Ronald Dworkin, ou seja, de um conjunto de valores e normas, em especial os direitos humanos, que domestica o instinto antagônico para transformá-lo num instinto agônico, em um mecanismo de disputa entre adversários, capaz de garantir a preservação da sociedade política como meta primária de uma vida civilizada.
Esse common ground, conjunto de valores morais humanísticos e jurídicos mínimos, é essencial para a contenção do antagonismo na vida política, ou seja, para restringir ou até mesmo tentar extinguir a barbárie em prol de uma sociedade politicamente civilizada. O common ground é a base sobre a qual uma sociedade democrática e pluralista erige uma sociedade política. Agir contrariamente a isso significa abdicar da existência dessa sociedade política e abrir margem à prática de todo tipo de violência.
Importante observar que, para que a diversidade de ideias, afetos e concepções conviva de forma equilibrada, não podem existir desigualdades sociais radicais, como ocorre no Brasil. A convivência da extrema riqueza com a extrema pobreza impede a construção de um common ground verdadeiro. Um menor desnível econômico entre as pessoas que integram uma sociedade, torna maior a possibilidade de surgimento desse conjunto de valores humanísticos comuns , traduzidos em direitos do ser humano,que estabiliza e, de certa forma, pacifica a sociedade política. Assim, para que a pluralidade de ideias e pensamentos possa existir no plano cultural e político, é preciso que haja uma maior igualdade no plano econômico.
Por outro lado, pensar a política como conflito, como relação antagônica entre inimigos, esgarça o tecido da sociedade política, resultando, muitas vezes, em episódios de caos e de brutal violência. O infeliz evento ocorrido com Bolsonaro demonstra exatamente isso. Temos assistido nos últimos anos no nosso país a um aumento paulatino da virulência política, da hostilidade furiosa, do trato de quem pensa diferente como inimigo. Por uma dessas contradições da existência, Bolsonaro, um dos que representa justamente essa forma virulenta de pensar a política ( sem aqui excluir setores de esquerda que tem feito o mesmo), tragicamente foi vítima do próprio processo que semeia.
Obviamente há algo extremamente destrutivo nessa concepção da política como arena não do debate civilizado de ideias ou mesmo luta afetiva mediada em busca de decisões, mas das disputas violentas, em que o objetivo é silenciar e até mesmo destruir o outro. Como dizia Hannah Arendt, o ódio nada constrói. Ao contrário, estabelece uma relação de destruição, que põe em risco a própria existência da sociedade política. Por isso, embora devamos reconhecer que a política é constituída de argumentação, mas também afeto, paixão e disputa para que as decisões venham a favorecer nossos interesses, numa democracia é fundamental contemplar a diversidade.
Aliás, exatamente por sermos uma sociedade complexa é que demandamos a democracia, ou seja, um sistema que pressupõe o pluralismo e que teoricamente é capaz de incorporar as diferenças e dar conta de contemplá-las. A democracia é o sistema concebido a partir da constatação de que existem conflitos no ambiente social, de que vivemos em uma sociedade que possui interesses distintos e contendas de toda natureza. A função do procedimento democrático é justamente buscar formular decisões a partir de escolhas majoritárias, ou seja, da soberania popular.Ocorre que este procedimento não funciona sem a conformação de um solo comum de conteúdos morais e jurídicos humanísticos, subjetivados pela comunidade.
Voltando ao lamentável crime que vitimou o presidenciável, podemos afirmar que se trata de sintoma nefasto da forma de sociedade política que ele prega – uma sociedade avessa ao pluralismo, na qual não há reconhecimento da legitimidade da existência do diferente, portanto, suscetível ao império da violência.
Acima de qualquer coisa, neste momento, é preciso ter coragem de manifestar publicamente que esse tipo de perspectiva violenta da vida política, de compreensão da política como guerra, só pode levar à barbárie de todos contra todos, e não apenas de um grupo contra outro; afinal, somos todos afetados, de uma forma ou de outra, por essa indisposição para com o diferente.
Assim, o trágico evento que vitimou Bolsonaro pode ter a função pedagógica de nos ensinar que devemos ter mais empatia para com o adversário e reconhecer a validade de sua existência, por mais distante que o tenhamos ideologicamente. Sem isso, sem o reconhecimento do diferente, jamais alcançaremos uma sociedade verdadeiramente civilizada, plural e democrática.
Ao prevalecer o discurso antagônico que simplifica a complexidade da vida social, turvando nossa visão da realidade, todos sofreremos as consequências. A tentativa de reduzir a sociedade, transformando-a em uma coisa só, pura, homogênea, como nos mostra a histórica, resulta em propostas totalitárias supressoras de direitos, que, muitas vezes, instalam o terror justamente sob o pretexto de unificar essa sociedade, pacifica-la por um idealismo homogênico e trazer uma certa ordem. Não nos enganemos. Hoje o inimigo é um, amanhã será outro. Hoje a ovelha devorada é o outro, amanhã sou eu. Um lobo nunca deixa de comer.
Chantal Mouffe, uma das mais importantes teóricas da política contemporânea, observa muito precisamente que, diferentemente do que gostaríamos, a política não é mero debate racional de ideias pelo qual se chega ou se pretende chegar a um consenso. A ação política é também orientada por afetos, paixões e sentidos de diversas naturezas, ou seja, é muito mais ambiente afetivo do que de consenso racional e, justamente por isso, é feita de disputas.
Essa afetividade conflitiva que faz parte da vida política em certos períodos históricos acaba por se fundar em relações de antagonismo, de rivalidade extrema, em que o adverso passa a ser visto não mais como adversário, mas sim como inimigo. Os oponentes deixam de reconhecer no outro, naquele que dele diverge, a legitimidade para existir na sociedade política. Em situações-limite, como nos regimes totalitários, deixam de reconhecer até mesmo sua condição humana, desejando sua eliminação.
Como nos aponta a pensadora belga Chantal Mouffe, a concepção antagônica do conflito político, da disputa entre inimigos, sempre implica um discurso político simplificador da pluralidade naturalmente existente numa sociedade complexa. Procura-se reduzir todas as formas de pensar diferentes e sintetizá-las no inimigo, como se fosse uma coisa só. Assim, o indivíduo que se posiciona ideologicamente como de direita sintetiza todo o universo de diferentes pensamentos associados à esquerda na figura do comunista, do “esquerdopata”, enquanto, do outro lado, as diferentes linhagens de pensamento e atuação de direita são reduzidas na figura do fascista. Esse recurso de restrição e redução da diversidade é utilizado para criar uma caricatura e, assim, facilitar o ataque de uns contra os outros.
Em oposição a esse entendimento antagônico, Chantal Mouffe propõe a visão agonística da disputa política, que pressupõe uma relação entre adversários, e não mais entre inimigos. Neste modelo há uma substancial diferença, pois o adversário é reconhecido como alguém que embora possa nunca chegar a racionalmente consentir com o pensamento de seu oponente, tem a legitimidade de sua existência reconhecida por ele como necessária a uma sociedade política pluralista e complexa, na qual habitam diversas concepções morais, políticas, afetivas, etc.
A disputa política agonística não necessariamente resulta em um consenso ou em uma “verdade” única, mas permite a existência de um common ground, como fala Ronald Dworkin, ou seja, de um conjunto de valores e normas, em especial os direitos humanos, que domestica o instinto antagônico para transformá-lo num instinto agônico, em um mecanismo de disputa entre adversários, capaz de garantir a preservação da sociedade política como meta primária de uma vida civilizada.
Esse common ground, conjunto de valores morais humanísticos e jurídicos mínimos, é essencial para a contenção do antagonismo na vida política, ou seja, para restringir ou até mesmo tentar extinguir a barbárie em prol de uma sociedade politicamente civilizada. O common ground é a base sobre a qual uma sociedade democrática e pluralista erige uma sociedade política. Agir contrariamente a isso significa abdicar da existência dessa sociedade política e abrir margem à prática de todo tipo de violência.
Importante observar que, para que a diversidade de ideias, afetos e concepções conviva de forma equilibrada, não podem existir desigualdades sociais radicais, como ocorre no Brasil. A convivência da extrema riqueza com a extrema pobreza impede a construção de um common ground verdadeiro. Um menor desnível econômico entre as pessoas que integram uma sociedade, torna maior a possibilidade de surgimento desse conjunto de valores humanísticos comuns , traduzidos em direitos do ser humano,que estabiliza e, de certa forma, pacifica a sociedade política. Assim, para que a pluralidade de ideias e pensamentos possa existir no plano cultural e político, é preciso que haja uma maior igualdade no plano econômico.
Por outro lado, pensar a política como conflito, como relação antagônica entre inimigos, esgarça o tecido da sociedade política, resultando, muitas vezes, em episódios de caos e de brutal violência. O infeliz evento ocorrido com Bolsonaro demonstra exatamente isso. Temos assistido nos últimos anos no nosso país a um aumento paulatino da virulência política, da hostilidade furiosa, do trato de quem pensa diferente como inimigo. Por uma dessas contradições da existência, Bolsonaro, um dos que representa justamente essa forma virulenta de pensar a política ( sem aqui excluir setores de esquerda que tem feito o mesmo), tragicamente foi vítima do próprio processo que semeia.
Obviamente há algo extremamente destrutivo nessa concepção da política como arena não do debate civilizado de ideias ou mesmo luta afetiva mediada em busca de decisões, mas das disputas violentas, em que o objetivo é silenciar e até mesmo destruir o outro. Como dizia Hannah Arendt, o ódio nada constrói. Ao contrário, estabelece uma relação de destruição, que põe em risco a própria existência da sociedade política. Por isso, embora devamos reconhecer que a política é constituída de argumentação, mas também afeto, paixão e disputa para que as decisões venham a favorecer nossos interesses, numa democracia é fundamental contemplar a diversidade.
Aliás, exatamente por sermos uma sociedade complexa é que demandamos a democracia, ou seja, um sistema que pressupõe o pluralismo e que teoricamente é capaz de incorporar as diferenças e dar conta de contemplá-las. A democracia é o sistema concebido a partir da constatação de que existem conflitos no ambiente social, de que vivemos em uma sociedade que possui interesses distintos e contendas de toda natureza. A função do procedimento democrático é justamente buscar formular decisões a partir de escolhas majoritárias, ou seja, da soberania popular.Ocorre que este procedimento não funciona sem a conformação de um solo comum de conteúdos morais e jurídicos humanísticos, subjetivados pela comunidade.
Voltando ao lamentável crime que vitimou o presidenciável, podemos afirmar que se trata de sintoma nefasto da forma de sociedade política que ele prega – uma sociedade avessa ao pluralismo, na qual não há reconhecimento da legitimidade da existência do diferente, portanto, suscetível ao império da violência.
Acima de qualquer coisa, neste momento, é preciso ter coragem de manifestar publicamente que esse tipo de perspectiva violenta da vida política, de compreensão da política como guerra, só pode levar à barbárie de todos contra todos, e não apenas de um grupo contra outro; afinal, somos todos afetados, de uma forma ou de outra, por essa indisposição para com o diferente.
Assim, o trágico evento que vitimou Bolsonaro pode ter a função pedagógica de nos ensinar que devemos ter mais empatia para com o adversário e reconhecer a validade de sua existência, por mais distante que o tenhamos ideologicamente. Sem isso, sem o reconhecimento do diferente, jamais alcançaremos uma sociedade verdadeiramente civilizada, plural e democrática.
Ao prevalecer o discurso antagônico que simplifica a complexidade da vida social, turvando nossa visão da realidade, todos sofreremos as consequências. A tentativa de reduzir a sociedade, transformando-a em uma coisa só, pura, homogênea, como nos mostra a histórica, resulta em propostas totalitárias supressoras de direitos, que, muitas vezes, instalam o terror justamente sob o pretexto de unificar essa sociedade, pacifica-la por um idealismo homogênico e trazer uma certa ordem. Não nos enganemos. Hoje o inimigo é um, amanhã será outro. Hoje a ovelha devorada é o outro, amanhã sou eu. Um lobo nunca deixa de comer.
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