Por Osvaldo Bertolino, no site da Fundação Maurício Grabois:
O reaparecimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) na cena política brasileira, pregando em carta a radicalização pelo “centro” contra os “extremistas” Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, recoloca a questão: ou o Brasil muda de rumo ou a crise se agravará. No fundo da sua litania está a tentativa de recuperar terreno para o projeto de país que ele representa e que guarda uma enorme diferença em relação ao da esquerda. Falta a FHC honestidade intelectual para expor seus anátemas no que toca às questões nacionais - como de resto tem sido a sua prática desde antes de assumir a Presidência da República em 1994.
Naquela campanha, FHC brandiu a "estabilidade" como se fosse a sua grande contribuição à humanidade. Uma inflação de 1,75% em setembro daquele ano e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante. Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC.
Slogan apelativo
Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma "reforma" de cunho neoliberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas. Evidentemente, a presença do PFL (atual DEM) na chapa majoritária era óbvia sugestão de que aquele governo não seria uma "social-democracia". O neoliberalismo que norteou o governo FHC centrou-se no "ajuste" macroeconômico e soterrou importantes mecanismos do Estado que atuavam nas ações sociais e nacionais.
Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos - como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as "conquistas" da "estabilidade" para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego. Era conversa de corda em casa de enforcado, como no provérbio.
Quesitos como o tratamento dispensado à crise bancária - que drenou uma dinheirama do Estado por meio do Proer -, corrupção desbragada, privatizações fraudulentas e repressão aos movimentos sociais - com destaque para a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros e a criminalização dos movimentos que lutam por reforma agrária - também praticamente não encontraram espaços no debate eleitoral. E a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as "conquistas" da "estabilidade" e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.
Gosto amargo
Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.
O projeto neoliberal calibrou o rumo da sua campanha, centrado basicamente na imagem de FHC como o Joãozinho do Passo Certo, e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Era inevitável lembrar das campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva, que em 1989, 1994 e 1998 optou por costurar alianças, cortar o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania e discutir o futuro econômico do país.
Lula não desceu aos subníveis do discurso de Collor, em 1989, e da mídia, em 1994, quando o seu candidato a vice, José Paulo Bisol, foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras - o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar indenização de R$ 1,191 milhão ao ex-candidato a vice de Lula por causa dessa acusação publicada em 1994 -, e se esforçou para forjar um amplo bloco político de centro-esquerda de oposição ao projeto neoliberal.
Fantasias e realidade
Naquele episódio de 1994, ficou claro que o ataque sem escrúpulos a este bloco continuava sendo uma das principais armas da direita. Só que de maneira mais sofisticada, menos explícita do que a usada por Collor. Na mesma ocasião, o tropeço de Rubens Ricupero - aquele que faturava o que era bom e escondia o que era ruim -, sucessor de FHC no Ministério da Fazenda, não representou qualquer arranhão à campanha tucana. A imprensa grande viu no primeiro caso um "tropeço" de enorme gravidade e quase nenhuma no segundo.
Quando FHC se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de uma mudança de rumo tacitamente prometida por FHC. Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002. Até o golpe de 2016, o prócer do PSDB foi um ativo conspirador, agindo nas sombras e estimulando a desestabilização do ciclo democrático e progressista. Agora ele age para tentar desestabilizar sobretudo as candidaturas da chapa Fernando Haddad-Manuela d’Ávila (PT-PCdoB-Pros).
O problema, para a direita, é confrontar suas fantasias com a realidade. Há visíveis explicações para a ascensão da esquerda. Uma delas é de ordem mais geral. Trata-se da contribuição do governo golpista e diz respeito a um certo cansaço do país com a mesmice econômica que vem da “era FHC”. Em nome de uma pretensa boa administração macroeconômica, dizem, é preciso esperar para agir com mais vigor na área social e na retomada do desenvolvimento. O problema é que quando os índices da dimensão micro da sociedade - emprego, renda, segurança, saúde, educação - começam a azedar, começa-se também a perguntar qual o sentido de sacrifício tão doloroso.
FHC pode ter êxito
Lula foi eleito prometendo uma reorganização interna para que o Estado pudesse operar de forma mais eficiente no que toca à aplicação dos recursos. A prioridade às questões sociais, a remoção das grandes nódoas na infra-estrutura e a condução do processo de retomada do desenvolvimento nacional eram suas grandes bandeiras para iniciar a correção das graves injustiças do país. Prometeu e cumpriu, falou e fez.
Outra explicação para este reaparecimento de FHC na cena política é de ordem mais específica. Trata-se de uma oportunidade, criada por uma espécie de reedição da calamitosa teoria do bolo levada a cabo pela ditadura militar, de reviver o discurso político do "administrador eficiente", que age com "responsabilidade fiscal" e combate a corrupção. Na prática é a pregação das travas oligárquicas que amarram o país, a consolidação da volta das utopias neoliberais que, já sabemos, dá em explosões sociais.
É preciso uma compreensão de que por trás deste discurso pragmático, matreiro e nada ético, está o embate entre dois projetos históricos para o país. Em outras ocasiões, essa disputa foi arrastada para o campo da violência - como ocorreu no regime militar. Em 2016, com o golpe do impeachment fraudulento da presidenta Dilma Rousseff, a direita optou pelo espetáculo circense e a luta-livre. Desde a primeira eleição de FHC, no entanto, o projeto dominante, embora apelando para os mesmos métodos nos bastidores, sofisticou a linguagem. FHC, como sempre atuou, faz pose e sorri falso. Não há responsabilidade cívica em suas intervenções e ele quer ver o circo pegar fogo. Pode ter êxito.
O reaparecimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) na cena política brasileira, pregando em carta a radicalização pelo “centro” contra os “extremistas” Fernando Haddad e Jair Bolsonaro, recoloca a questão: ou o Brasil muda de rumo ou a crise se agravará. No fundo da sua litania está a tentativa de recuperar terreno para o projeto de país que ele representa e que guarda uma enorme diferença em relação ao da esquerda. Falta a FHC honestidade intelectual para expor seus anátemas no que toca às questões nacionais - como de resto tem sido a sua prática desde antes de assumir a Presidência da República em 1994.
Naquela campanha, FHC brandiu a "estabilidade" como se fosse a sua grande contribuição à humanidade. Uma inflação de 1,75% em setembro daquele ano e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante. Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC.
Slogan apelativo
Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma "reforma" de cunho neoliberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas. Evidentemente, a presença do PFL (atual DEM) na chapa majoritária era óbvia sugestão de que aquele governo não seria uma "social-democracia". O neoliberalismo que norteou o governo FHC centrou-se no "ajuste" macroeconômico e soterrou importantes mecanismos do Estado que atuavam nas ações sociais e nacionais.
Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos - como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as "conquistas" da "estabilidade" para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego. Era conversa de corda em casa de enforcado, como no provérbio.
Quesitos como o tratamento dispensado à crise bancária - que drenou uma dinheirama do Estado por meio do Proer -, corrupção desbragada, privatizações fraudulentas e repressão aos movimentos sociais - com destaque para a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros e a criminalização dos movimentos que lutam por reforma agrária - também praticamente não encontraram espaços no debate eleitoral. E a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as "conquistas" da "estabilidade" e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.
Gosto amargo
Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.
O projeto neoliberal calibrou o rumo da sua campanha, centrado basicamente na imagem de FHC como o Joãozinho do Passo Certo, e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Era inevitável lembrar das campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva, que em 1989, 1994 e 1998 optou por costurar alianças, cortar o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania e discutir o futuro econômico do país.
Lula não desceu aos subníveis do discurso de Collor, em 1989, e da mídia, em 1994, quando o seu candidato a vice, José Paulo Bisol, foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras - o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar indenização de R$ 1,191 milhão ao ex-candidato a vice de Lula por causa dessa acusação publicada em 1994 -, e se esforçou para forjar um amplo bloco político de centro-esquerda de oposição ao projeto neoliberal.
Fantasias e realidade
Naquele episódio de 1994, ficou claro que o ataque sem escrúpulos a este bloco continuava sendo uma das principais armas da direita. Só que de maneira mais sofisticada, menos explícita do que a usada por Collor. Na mesma ocasião, o tropeço de Rubens Ricupero - aquele que faturava o que era bom e escondia o que era ruim -, sucessor de FHC no Ministério da Fazenda, não representou qualquer arranhão à campanha tucana. A imprensa grande viu no primeiro caso um "tropeço" de enorme gravidade e quase nenhuma no segundo.
Quando FHC se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de uma mudança de rumo tacitamente prometida por FHC. Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002. Até o golpe de 2016, o prócer do PSDB foi um ativo conspirador, agindo nas sombras e estimulando a desestabilização do ciclo democrático e progressista. Agora ele age para tentar desestabilizar sobretudo as candidaturas da chapa Fernando Haddad-Manuela d’Ávila (PT-PCdoB-Pros).
O problema, para a direita, é confrontar suas fantasias com a realidade. Há visíveis explicações para a ascensão da esquerda. Uma delas é de ordem mais geral. Trata-se da contribuição do governo golpista e diz respeito a um certo cansaço do país com a mesmice econômica que vem da “era FHC”. Em nome de uma pretensa boa administração macroeconômica, dizem, é preciso esperar para agir com mais vigor na área social e na retomada do desenvolvimento. O problema é que quando os índices da dimensão micro da sociedade - emprego, renda, segurança, saúde, educação - começam a azedar, começa-se também a perguntar qual o sentido de sacrifício tão doloroso.
FHC pode ter êxito
Lula foi eleito prometendo uma reorganização interna para que o Estado pudesse operar de forma mais eficiente no que toca à aplicação dos recursos. A prioridade às questões sociais, a remoção das grandes nódoas na infra-estrutura e a condução do processo de retomada do desenvolvimento nacional eram suas grandes bandeiras para iniciar a correção das graves injustiças do país. Prometeu e cumpriu, falou e fez.
Outra explicação para este reaparecimento de FHC na cena política é de ordem mais específica. Trata-se de uma oportunidade, criada por uma espécie de reedição da calamitosa teoria do bolo levada a cabo pela ditadura militar, de reviver o discurso político do "administrador eficiente", que age com "responsabilidade fiscal" e combate a corrupção. Na prática é a pregação das travas oligárquicas que amarram o país, a consolidação da volta das utopias neoliberais que, já sabemos, dá em explosões sociais.
É preciso uma compreensão de que por trás deste discurso pragmático, matreiro e nada ético, está o embate entre dois projetos históricos para o país. Em outras ocasiões, essa disputa foi arrastada para o campo da violência - como ocorreu no regime militar. Em 2016, com o golpe do impeachment fraudulento da presidenta Dilma Rousseff, a direita optou pelo espetáculo circense e a luta-livre. Desde a primeira eleição de FHC, no entanto, o projeto dominante, embora apelando para os mesmos métodos nos bastidores, sofisticou a linguagem. FHC, como sempre atuou, faz pose e sorri falso. Não há responsabilidade cívica em suas intervenções e ele quer ver o circo pegar fogo. Pode ter êxito.
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