Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O general Hamilton Mourão possui uma função didática na política brasileira atual. Ajuda a entender a profundidade da crise que o país enfrenta e procurar meios para que seja resolvida de modo a recuperar a democracia.
Caricatural, Mourão expressa um espírito anti-democrático aberto, sem pudores nem limites. Tem um discurso autoritário escancarado, típico de quem não tem noção da gravidade absurda daquilo que diz e propõe - como ocorre em romances antropológicos, onde habitantes de sociedades de outro tempo histórico costumam falar dos dramas e dificuldades de outros povos sem ter noção de sua cultura e seus costumes.
Em outubro de 2017, na palestra em que se apresentou ao país, Mourão falou de um algoritmo que poderia produzir uma intervenção militar. Assim, com a naturalidade de quem faz um puro cálculo matemático. Definiu o governo Michel Temer como um "balcão de negócios " e, ao desqualificar Lula como um "sobrevivente do mensalão", deixou claro qual era a prioridade. Sem necessidade de dar o nome a pessoa, anunciou: "um dos candidatos que está aí, tenho convicção e fé, vai assistir à vida passar em outro lugar".
Seis meses depois, Lula foi recolhido a cela de Curitiba, de onde não saiu mais, no primeiro passo para impedir sua candidatura presidencial. Sem a necessidade de enfrentar concorrência tão poderosa, Jair Bolsonaro, o candidato de Mourão tornou-se líder nas pesquisas da campanha presidencial, sabemos todos. Mourão acabou vice-candidato na chapa de Bolsonaro e, pelas circunstâncias que todos sabemos, assumiu uma posição de destaque inesperado após a facada em Juiz de Fora que atingiu Jair Bolsonaro.
De uma hora outra, suas palavras ganharam nova ressonância e é dessa forma que se pode avaliar a última ideia: uma Constituinte sem povo.
Para Mourão, a última Constituição brasileira, escrita em 1988 por parlamentares eleitos sob o mais amplo regime de liberdades públicas de nossa história republicana, num país que abandonava 21 anos de ditadura militar, "foi um erro".
Repetindo a crítica-padrão do grande empresariado e do sistema financeiro de três décadas atrás, general defende uma nova Constituição "enxuta", na qual direitos sociais, "como o horário de trabalho, o juro tabelado" não devem constar, podendo ficar para "lei ordinária".
O recado parece tosco mas é claro. Num país que, graças a motoniveladora institucional acionada por Temer-Meirelles e os esquemas manjados de compra de votos já aboliu boa parte dos direitos e garantias sociais previstos na Constituição de 1988, o vice de Bolsonaro avisa que é é preciso impedir que uma nova de carta de leis reestabeleça aquilo que foi abolido pelo golpe que Bolsonaro ajudou a aprovar com o macabro voto-homenagem ao general da tortura Carlos Alberto Brilhante Ustra.
É simples como parece. Em vez de chamar a população para eleger representantes capazes de formular uma nova carta de leis do país, Mourão repete uma formula que sequer é original. Foi ensaiada por José Sarney, escolhido por via indireta depois do golpe militar -- a Constituinte de notáveis.
"Grandes juristas e constitucionalistas", diz Mourão, reproduzindo a visão de Sarney. Em 1986, o projeto acalentado por Sarney e um imenso conjunto de derrotados da ditadura acabou em ridículo cientificamente previsível, num país que enchera ruas e praças na campanha pelas diretas-já.
Não vamos nos enganar, contudo. A proposta de Mourão mostra que o debate está colocado. Sua Constituinte sem povo é coerente com uma visão de política como uma ditadura, reforçada pela crença de que os brasileiros e brasileiras carregam a herança cultural de três raças inferiorizadas, como Mourão repete em suas aparições -- o português, o índio e o negro.
Nada mais natural, para quem pensa dessa forma, que se queira manter a maioria da população longe de um debate essencial para as futuras gerações. O povo só pode atrapalhar, não é mesmo?
Inaceitável, a proposta de Mourão abre espaço para uma resposta dos candidatos democráticos, a começar por Fernando Haddad. O programa do Partido dos Trabalhadores inclui a defesa de uma Constituinte livre e soberana, eleita pelo voto direto do povo. É um ponto essencial para o país discutir seu futuro, com base na regra fundamental das democracias -- a soberania popular.
Alguma dúvida?
O general Hamilton Mourão possui uma função didática na política brasileira atual. Ajuda a entender a profundidade da crise que o país enfrenta e procurar meios para que seja resolvida de modo a recuperar a democracia.
Caricatural, Mourão expressa um espírito anti-democrático aberto, sem pudores nem limites. Tem um discurso autoritário escancarado, típico de quem não tem noção da gravidade absurda daquilo que diz e propõe - como ocorre em romances antropológicos, onde habitantes de sociedades de outro tempo histórico costumam falar dos dramas e dificuldades de outros povos sem ter noção de sua cultura e seus costumes.
Em outubro de 2017, na palestra em que se apresentou ao país, Mourão falou de um algoritmo que poderia produzir uma intervenção militar. Assim, com a naturalidade de quem faz um puro cálculo matemático. Definiu o governo Michel Temer como um "balcão de negócios " e, ao desqualificar Lula como um "sobrevivente do mensalão", deixou claro qual era a prioridade. Sem necessidade de dar o nome a pessoa, anunciou: "um dos candidatos que está aí, tenho convicção e fé, vai assistir à vida passar em outro lugar".
Seis meses depois, Lula foi recolhido a cela de Curitiba, de onde não saiu mais, no primeiro passo para impedir sua candidatura presidencial. Sem a necessidade de enfrentar concorrência tão poderosa, Jair Bolsonaro, o candidato de Mourão tornou-se líder nas pesquisas da campanha presidencial, sabemos todos. Mourão acabou vice-candidato na chapa de Bolsonaro e, pelas circunstâncias que todos sabemos, assumiu uma posição de destaque inesperado após a facada em Juiz de Fora que atingiu Jair Bolsonaro.
De uma hora outra, suas palavras ganharam nova ressonância e é dessa forma que se pode avaliar a última ideia: uma Constituinte sem povo.
Para Mourão, a última Constituição brasileira, escrita em 1988 por parlamentares eleitos sob o mais amplo regime de liberdades públicas de nossa história republicana, num país que abandonava 21 anos de ditadura militar, "foi um erro".
Repetindo a crítica-padrão do grande empresariado e do sistema financeiro de três décadas atrás, general defende uma nova Constituição "enxuta", na qual direitos sociais, "como o horário de trabalho, o juro tabelado" não devem constar, podendo ficar para "lei ordinária".
O recado parece tosco mas é claro. Num país que, graças a motoniveladora institucional acionada por Temer-Meirelles e os esquemas manjados de compra de votos já aboliu boa parte dos direitos e garantias sociais previstos na Constituição de 1988, o vice de Bolsonaro avisa que é é preciso impedir que uma nova de carta de leis reestabeleça aquilo que foi abolido pelo golpe que Bolsonaro ajudou a aprovar com o macabro voto-homenagem ao general da tortura Carlos Alberto Brilhante Ustra.
É simples como parece. Em vez de chamar a população para eleger representantes capazes de formular uma nova carta de leis do país, Mourão repete uma formula que sequer é original. Foi ensaiada por José Sarney, escolhido por via indireta depois do golpe militar -- a Constituinte de notáveis.
"Grandes juristas e constitucionalistas", diz Mourão, reproduzindo a visão de Sarney. Em 1986, o projeto acalentado por Sarney e um imenso conjunto de derrotados da ditadura acabou em ridículo cientificamente previsível, num país que enchera ruas e praças na campanha pelas diretas-já.
Não vamos nos enganar, contudo. A proposta de Mourão mostra que o debate está colocado. Sua Constituinte sem povo é coerente com uma visão de política como uma ditadura, reforçada pela crença de que os brasileiros e brasileiras carregam a herança cultural de três raças inferiorizadas, como Mourão repete em suas aparições -- o português, o índio e o negro.
Nada mais natural, para quem pensa dessa forma, que se queira manter a maioria da população longe de um debate essencial para as futuras gerações. O povo só pode atrapalhar, não é mesmo?
Inaceitável, a proposta de Mourão abre espaço para uma resposta dos candidatos democráticos, a começar por Fernando Haddad. O programa do Partido dos Trabalhadores inclui a defesa de uma Constituinte livre e soberana, eleita pelo voto direto do povo. É um ponto essencial para o país discutir seu futuro, com base na regra fundamental das democracias -- a soberania popular.
Alguma dúvida?
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