Por Philippe Scerb, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
É impossível prever o destino dos coletes amarelos. De partido competitivo em meio ao desgaste das forças políticas tradicionais ao esquecimento repentino, as possibilidades são numerosas para esse movimento que de novembro a janeiro, pelo menos, vem bloqueando estradas e promovendo manifestações suntuosas na maioria das cidades francesas. O que parece claro é que de símbolo radical da crise da democracia – a mesma que elegeu Trump e Bolsonaro e alimenta governos como os de Orbán e Erdogan, ele pode ter se tornado o motor de seu retorno. Emmanuel Macron relutou, mas finalmente cedeu ao espírito dessas manifestações em série ao propor um “grande debate nacional”, em que todas as prefeituras chamarão seus moradores a discutir temas de interesse público e manifestar suas expectativas.
Na perspectiva de desconfiados atores e comentadores da política, os coletes amarelos compõem um tenebroso momento populista em que lideranças carismáticas se valem de agendas demagógicas para ludibriar o eleitorado em meio a crises econômicas e sociais de difícil solução. Resultados eleitorais improváveis e movimentos de massa estariam retirando a prerrogativa de elites devidamente preparadas de cuidarem da política, entendida como a gestão técnica da coisa pública. A chamada crise da democracia se combina e se mistura nessas análises com a vontade dos setores populares de participar das decisões. Sua solução passaria, portanto, pela capacidade de uma certa oligarquia de conter esses arroubos e preservar seu monopólio sobre o poder. Os problemas aventados nos últimos anos acerca da representação política não seriam, definitivamente, resolvidos com mais participação. Pelo contrário.
É no mínimo curioso que o movimento que melhor expressa a atual crise ocorra na França. Não exatamente em função do histórico que envolve a queda da Bastilha ou a Comuna de Paris, mas pelo alvo central dos coletes amarelos: o governo Macron. Com efeito, a eleição do antigo executivo de um banco de investimentos recuperou a esperança dos liberais nas eleições. Em uma disputa em que dois dos seus protagonistas eram Marine Le Pen, a herdeira da Frente Nacional que tornou popular a agenda essencialmente xenófoba do pai, e Jean-Luc Mélenchon, responsável pela virada “populista” da esquerda ao suplantar o combalido Partido Socialista de François Hollande, Macron fundou seu próprio partido e venceu apoiado em uma retórica autodeclarada de centro.
O jovem, elegante, bom orador Macron foi rapidamente alçado a modelo de renovação – ou recuperação – da velha democracia liberal. Simpático à evolução dos costumes e das formas de produção, ele parecia perfeitamente talhado para gerir um país industrialmente decadente em meio à crescente financeirização da economia. Sua vitória, aliás, foi comemorada ao redor do mundo. Foi comum assistir, nas eleições nacionais subsequentes, setores das elites política e econômica buscarem seu Macron de estimação. No Brasil, aquele que chegou mais perto da comparação foi Luciano Huck. Até Haddad, lembrado pela gestão financeiramente responsável na prefeitura de São Paulo e a despeito do PT, teve direito a esperança – logo perdida, porém, ao vestir a máscara de Lula.
Não deve chocar, portanto, que analistas qualifiquem o movimento dos coletes amarelos como uma ameaça à democracia. Avessos aos canais convencionais de mediação, os revoltosos se recusam a moderar suas demandas e seu repertório radical de ação ao se verem fortalecidos pela dimensão do movimento e pelo apoio da opinião pública. Importa pensar igualmente quem são aqueles que despertaram os protestos. Trata-se, em sua maioria, de membros de uma classe média empobrecida que, sem poder recorrer ao transporte público e dependentes do automóvel para o trabalho, têm o poder de compra prejudicado pelo aumento dos tributos sobre os combustíveis proposto pelo governo. Medida que, sob o pretexto de proteger o meio-ambiente, compunha uma agenda de austeridade assumida por Macron que envolveu a reforma do código do trabalho e o aumento das contribuições obrigatórias para os aposentados e acentuou um processo já relativamente antigo de desvalorização real dos salários. As pessoas comuns que ousaram se rebelar contra a elite detentora do poder, encarnada pelo presidente, escolheram ainda um artefato que reforça sua estética caipira e expressa com clareza as clivagens entre campo e cidade, “toscos” e esclarecidos, bárbaros e civilizados que organizam a revolta.
Quando esses trabalhadores se levantam, bloqueiam rodovias e mercados e protestam nas maiores cidades do país, são taxados de inconsequentes em relação ao aquecimento global. Em seguida, ao rejeitarem a negociação e insistirem na mobilização, recebem a alcunha de anti-democráticos. Deveríamos nos perguntar, então, que democracia é essa que desautoriza as pessoas a se organizarem e demandarem maior participação nos rumos da comunidade da qual fazem parte. O valor que seria arrecadado com o incremento tarifário que despertou o movimento é similar àquele que deixou de entrar nos cofres do governo quando Macron extinguiu, no início de seu mandato, o imposto sobre grandes fortunas. Mas quando os cidadãos se recusam a acatar passivamente a degradação de suas condições de vida frente a medidas que agravam explicitamente as desigualdades e demonstram vontade de engajar-se diretamente nas decisões do governo estão, afinal, ameaçando a democracia?
Ao dizerem que há um conflito entre o pedido para que se comovam com o fim do mundo, inevitável com o aquecimento global, e a dificuldade de alcançar o fim do mês sem que contraiam dívidas, os coletes amarelos desafiam, inclusive, parte importante da esquerda. Ainda abalados pela ressaca de episódios similares que no passado mais recente foram apropriados por agendas conservadoras, setores progressistas acabam por fazer coro ao chamado liberal pela redução do que resta de soberania popular nos regimes democráticos. A desconfiança legítima, mas problemática, em relação ao movimento tem seus fundamentos. O fato de o movimento desprover de uma organização prévia e um conjunto bem definido de reivindicações abre margem para ambiguidades que diluem a possibilidade de uma clivagem clara entre capital e trabalho. Ademais, saltam à vista manifestações de corte conservador das pessoas nos pontos de bloqueio e que esbarram no machismo, na homofobia, na xenofobia e em outras formas de discriminação. Tudo isso sem falar que se trata de um protesto contra um imposto, o que poderia denotar algum tipo de individualismo – ou uma subjetividade neoliberal, para usar termos em voga. De toda forma, o perigo de que a mobilização seja capturada pela direita é evidente. Sobretudo por uma extrema-direita que reorientou nos últimos anos seu discurso a partir da oposição entre o povo e uma elite europeia ilustrada e comprometida com o mundo das finanças. A pretensa vantagem dos conservadores é ainda reforçada pelo importante apelo da xenofobia entre trabalhadores que se veem em concorrência com os mais pauperizados e consequentemente pouco criteriosos na oferta de sua força de trabalho.
O paralelo com os protestos de junho de 2013, no Brasil, são inevitáveis. O diagnóstico a respeito do que foram e das consequências daqueles dias de intensa mobilização é absolutamente incerto. Certo é que, assim como os coletes amarelos, as forças políticas e sindicais estiveram a reboque do movimento, que rejeitou a interlocução convencional com as autoridades e se mostrou intransigente em relação ao conteúdo de suas reivindicações. Embora a eclosão espontânea de protestos e a crítica profunda ao caráter limitado e pouco representativo do sistema político e de seus principais atores tenha gerado otimismo em grupos de esquerda, a sequência de acontecimentos políticos que seguiu àquelas manifestações informa a visão mais corrente acerca de junho atualmente. Mesmo que sejam escassas as evidências de qualquer relação de causa e consequência minimamente substantiva entre junho e a eleição de Bolsonaro, é forte a interpretação nos meios de esquerda de que as jornadas chocaram o ovo da serpente do neofascismo no Brasil – ou ao menos abriram a via para a emergência e organização de grupos de extrema-direita, até então irrelevantes, ao desgastar o PT e o lulismo.
Embora, como já foi dito, a direita esteja em posição privilegiada para disputar o sentido de mobilizações como a dos coletes amarelos, é um erro compará-la ao que foi junho no Brasil. Dois fatores distinguem fundamentalmente os dois fenômenos, para além das diferenças que separam os dois países. O primeiro diz respeito à ordem, que, nos dois casos e de forma mais ou menos consciente, era combatida pelos manifestantes. No caso brasileiro, se restavam dúvidas quanto aos limites do lulismo, elas foram dissipadas com o golpe de 2016 e o resultado das últimas eleições presidenciais. Contudo, a conciliação que o caracterizou e, de certa forma, fomentou as mobilizações de 2013, permitiu uma série de avanços que não devem ser negligenciados e cuja relevância ganha contornos mais nítidos com a prisão e a inegebilidade de Lula. Àquela altura, em todo caso, não era um absurdo vislumbrar progressos, mesmo que tímidos, por dentro da ordem. Mesmo hoje o programa lulista parece gozar de prestígio entre atores importantes do jogo político, além, claro, de comprovada resiliência eleitoral.
Na França, por outro lado, a ordem em cheque não concede qualquer esperança de melhora para os estratos populares e médios da sociedade. Pelo contrário, os governos que se sucedem se voltam à gestão da crise e da pauperização. Emmanuel Macron é apenas a visão mais nítida de uma elite que recorre à sua sofisticação e pretensa boa-vontade, além da competência técnica, para preservar seus privilégios. A arrogância e o desprezo com que o presidente tratou os coletes amarelos no início do movimento só fez reforçar essa imagem e reforçar a cisão que o separa da França profunda.
O segundo elemento que diferencia as duas mobilizações é a natureza do conflito que se colocava. O caráter difuso e heterogêneo em termos de pautas e composição social de junho, amplamente comentado, dificulta a definição de uma clivagem precisa a orientar os protestos. O mais próximo que se pode chegar disso, cinco anos depois, é a contestação a um sistema político pouco permeável às demandas da sociedade e a organizações políticas pouco representativas de seus anseios. Vaga, essa formulação ganha mais concretude na medida em que essa crítica às instituições se embaralha em seguida com a rejeição ao PT e aos governos Lula e Dilma, fundamentalmente por parte de setores médios. De toda forma, é demasiado arriscado sugerir qualquer clivagem de classe a organizar os protestos de junho. Não é o caso, evidentemente, de relativizar o perfil progressista da pauta original e de uma série de outras reivindicações que a seguiram. Cumpre apenas notar que o grosso caldo que se formou depois do dia 13 e tornou, de fato, o protesto uma mobilização de massa não tinha na oposição entre duas classes seu motor essencial.
Algo completamente diferente do que ocorre na França. Embora os coletes sejam amarelos e não vermelhos, não estejam organizados embaixo de bandeiras caras à esquerda e, inclusive, rejeitem o rótulo, sua revolta é claramente expressão de um conflito de classes. Em tempos de acirramento das disputas distributivas, o aumento de um tributo concomitante a medidas de peso simbólico e objetivo que favorecem o 1% serviu de estopim para a revolta de trabalhadores esgotados pelo empobrecimento. O recuo de Macron não foi suficiente para acalmar os ânimos, que teve de apelar a medidas de corte evidentemente classista: aumentar o salário mínimo e revogar o desconto proposto nas aposentadorias mais modestas. Nem isso, porém, bastou para encerrar a mobilização, cuja força está diretamente ligada à sua possibilidade de ameaçar uma ordem a serviço dos de cima.
Acontece que os de baixo não são necessariamente como a esquerda gostaria que fossem. Frente à insegurança provocada pela retirada de direitos e pela precarização de diversas esferas da vida, sem considerar os estímulos estruturais para a concorrência entre os próprios trabalhadores, alternativas permeadas de retrocesso se fazem possíveis. A empáfia característica de alguns setores médios, inquietos na sua ânsia por distinção, ainda pode reforçar comportamentos reativos reprováveis, como aqueles que alimentam o grupo eleito no Brasil. Em outras palavras, a ambiguidade que marca a prática e a consciência das camadas populares, cuja organização parece cada dia mais difícil, impõe uma escolha decisiva para as esquerdas.
A primeira das alternativas consiste em reduzir temporariamente, quem sabe, seu horizonte normativo de transformação e adotar uma postura de defesa da democracia liberal e do Estado de direito. Frente à adesão das camadas populares a agendas reacionárias, o mais prudente seria aliar-se ao “centro” liberal e, eventualmente, esperar que um povo isento de contradições esteja em condições de fazer avançar a democracia em sentido substantivo. Ideia essa que parece informar o caminho de parte importante da esquerda no Brasil diante dos ataques que se anunciam. Não cabem dúvidas, afinal, de que a democracia liberal, com todos os seus limites, é uma alternativa melhor que regimes conservadores e autoritários como aquele que se apresenta por aqui.
Outro rumo possível é reconhecer as ambiguidades das práticas, assim como os limites subjetivos e em termos organizativos dos setores populares, e a partir daí fomentar um processo de reversão da ordem no sentido do aprofundamento da democracia. Algo parecido com o que vem fazendo Jean-Luc Mélenchon, na França. Evitando colocar-se como porta-voz do movimento, ele tem apoiado os coletes amarelos e enfatizado o seu potencial progressivo. A todo momento, o líder da França Insubmissa enfatiza o protagonismo daqueles que conduzem a ação nas ruas, mas não deixa de se posicionar favoravelmente nos espaços que lhe competem, notadamente a Assembleia e as instâncias de seu partido. A despeito de reconhecer o caráter ideologicamente plural do movimento, Mélenchon tem, desde o início das manifestações, insistido na equivalência entre o que seria arrecadado com o aumento do tributo e o montante do qual o governo Macron abriu mão ao extinguir o imposto de solidariedade sobre as fortunas. Não parece exagerado afirmar que isso foi crucial para que os coletes amarelos incorporassem às suas reivindicações a volta do tributo, cuja força simbólica é determinante para seu sentido mais amplo.
Não se trata de idealizar o povo e seu suposto potencial revolucionário, cuja ativação estaria sujeita a contingências de ordem material ou imaterial. O que é importante notar, a partir do movimento dos coletes amarelos, é que o aparecimento do povo é imprescindível tanto para a democracia, por motivos óbvios, quanto para a política, que supõe o conflito. Em entrevista recente, o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera comentou que a inclusão de estratos populares historicamente excluídos da política naquele país permitiu que pautas a priori estranhas a eles, como o aborto, fossem assumidas como sendo de seu interesse. No início das mobilizações na França, o temor de que o caldo de insatisfação gerado fosse capturado por forças de extrema-direita era generalizado e ainda permanece. No entanto, o tema da imigração foi precariamente inserido na pauta dos coletes amarelos e a decisão de Macron de colocá-lo na agenda do “grande debate nacional” gerou repercussão negativa. Ao mesmo tempo, as medidas concretas em termos de justiça social como resposta ao movimento extrapolaram o aumento do salário mínimo e a revogação do aumento tarifário e já compreendem o congelamento do valor de planos de saúde e um esforço anunciado de aumentar a progressividade dos impostos, notadamente com a criação de uma faixa superior para o imposto de renda.
Ao vestir coletes cuja função é tornar visível um motorista em apuros, franceses esquecidos pelo poder passam a ser respeitados por ele e, mais importante, reconhecem-se a si próprios como capazes de mudar a ordem. Como disse um dos coletes amarelos em um debate televisivo, “as pessoas nas ruas estão entendendo que estão tomando nas mãos o controle sobre o país”. E quanto mais elas avançam, mais se sentem aptos a obter coisas que julgavam impossíveis. Depois de uma série de movimentos análogos ao redor do mundo que, a despeito de conquistas pontuais, culminaram em reações conservadoras e retrocessos democráticos, os coletes amarelos insistem, quase que intuitivamente, em restaurar a soberania popular. É como se o ciclo recente de revoltas tivesse gerado um acúmulo suficiente para vacinar os manifestantes quanto aos limites de acenos e recuos parciais das elites.
Pode soar arriscado, até inconsequente, dirão alguns, confiar no povo. Frente à profunda crise do capitalismo e de sua gestão liberal democrática, quando disputas elementares sobre a fonte e o controle do poder estão na ordem do dia, a defesa dos direitos civis não deve se apoiar em uma clivagem moral, em que o povo, via de regra, representa a ameaça. No Brasil, são vários os analistas progressistas a lamentarem a derrota de um certo consenso de centro e a falta de compromisso das elites com a democracia. Advoga-se, assim, a virada ao centro por parte das forças de esquerda, de quem se cobra responsabilidade fiscal e política. Ignoram essas vozes da razão, porém, que a crise que assistimos é justamente a crise do centro, do suposto consenso que na verdade exclui e impede o litígio, fundamental para a política e para uma democracia que não prescinda do demos. A alternativa à extrema-direita, na França como no Brasil, não é o centro e o compromisso falido da social-democracia. O tempo da revolta, da vontade de justiça e da luta pelo poder tem tudo para ser mais longo do que muitos gostariam. Na França, o sentido da mudança, embora ambíguo, se anuncia positivo. No Brasil, o momento inspira cuidado, mas não parece exagerado dizer que temos a vantagem de que a (extrema) direita não se dá sequer ao trabalho de esconder de que lado está. Cabe à esquerda escolher o seu.
* Philippe Scerb é mestre em Ciência Política pela Sciences Po Paris e doutorando do Departamento de Ciência Política da USP.
Na perspectiva de desconfiados atores e comentadores da política, os coletes amarelos compõem um tenebroso momento populista em que lideranças carismáticas se valem de agendas demagógicas para ludibriar o eleitorado em meio a crises econômicas e sociais de difícil solução. Resultados eleitorais improváveis e movimentos de massa estariam retirando a prerrogativa de elites devidamente preparadas de cuidarem da política, entendida como a gestão técnica da coisa pública. A chamada crise da democracia se combina e se mistura nessas análises com a vontade dos setores populares de participar das decisões. Sua solução passaria, portanto, pela capacidade de uma certa oligarquia de conter esses arroubos e preservar seu monopólio sobre o poder. Os problemas aventados nos últimos anos acerca da representação política não seriam, definitivamente, resolvidos com mais participação. Pelo contrário.
É no mínimo curioso que o movimento que melhor expressa a atual crise ocorra na França. Não exatamente em função do histórico que envolve a queda da Bastilha ou a Comuna de Paris, mas pelo alvo central dos coletes amarelos: o governo Macron. Com efeito, a eleição do antigo executivo de um banco de investimentos recuperou a esperança dos liberais nas eleições. Em uma disputa em que dois dos seus protagonistas eram Marine Le Pen, a herdeira da Frente Nacional que tornou popular a agenda essencialmente xenófoba do pai, e Jean-Luc Mélenchon, responsável pela virada “populista” da esquerda ao suplantar o combalido Partido Socialista de François Hollande, Macron fundou seu próprio partido e venceu apoiado em uma retórica autodeclarada de centro.
O jovem, elegante, bom orador Macron foi rapidamente alçado a modelo de renovação – ou recuperação – da velha democracia liberal. Simpático à evolução dos costumes e das formas de produção, ele parecia perfeitamente talhado para gerir um país industrialmente decadente em meio à crescente financeirização da economia. Sua vitória, aliás, foi comemorada ao redor do mundo. Foi comum assistir, nas eleições nacionais subsequentes, setores das elites política e econômica buscarem seu Macron de estimação. No Brasil, aquele que chegou mais perto da comparação foi Luciano Huck. Até Haddad, lembrado pela gestão financeiramente responsável na prefeitura de São Paulo e a despeito do PT, teve direito a esperança – logo perdida, porém, ao vestir a máscara de Lula.
Não deve chocar, portanto, que analistas qualifiquem o movimento dos coletes amarelos como uma ameaça à democracia. Avessos aos canais convencionais de mediação, os revoltosos se recusam a moderar suas demandas e seu repertório radical de ação ao se verem fortalecidos pela dimensão do movimento e pelo apoio da opinião pública. Importa pensar igualmente quem são aqueles que despertaram os protestos. Trata-se, em sua maioria, de membros de uma classe média empobrecida que, sem poder recorrer ao transporte público e dependentes do automóvel para o trabalho, têm o poder de compra prejudicado pelo aumento dos tributos sobre os combustíveis proposto pelo governo. Medida que, sob o pretexto de proteger o meio-ambiente, compunha uma agenda de austeridade assumida por Macron que envolveu a reforma do código do trabalho e o aumento das contribuições obrigatórias para os aposentados e acentuou um processo já relativamente antigo de desvalorização real dos salários. As pessoas comuns que ousaram se rebelar contra a elite detentora do poder, encarnada pelo presidente, escolheram ainda um artefato que reforça sua estética caipira e expressa com clareza as clivagens entre campo e cidade, “toscos” e esclarecidos, bárbaros e civilizados que organizam a revolta.
Quando esses trabalhadores se levantam, bloqueiam rodovias e mercados e protestam nas maiores cidades do país, são taxados de inconsequentes em relação ao aquecimento global. Em seguida, ao rejeitarem a negociação e insistirem na mobilização, recebem a alcunha de anti-democráticos. Deveríamos nos perguntar, então, que democracia é essa que desautoriza as pessoas a se organizarem e demandarem maior participação nos rumos da comunidade da qual fazem parte. O valor que seria arrecadado com o incremento tarifário que despertou o movimento é similar àquele que deixou de entrar nos cofres do governo quando Macron extinguiu, no início de seu mandato, o imposto sobre grandes fortunas. Mas quando os cidadãos se recusam a acatar passivamente a degradação de suas condições de vida frente a medidas que agravam explicitamente as desigualdades e demonstram vontade de engajar-se diretamente nas decisões do governo estão, afinal, ameaçando a democracia?
Ao dizerem que há um conflito entre o pedido para que se comovam com o fim do mundo, inevitável com o aquecimento global, e a dificuldade de alcançar o fim do mês sem que contraiam dívidas, os coletes amarelos desafiam, inclusive, parte importante da esquerda. Ainda abalados pela ressaca de episódios similares que no passado mais recente foram apropriados por agendas conservadoras, setores progressistas acabam por fazer coro ao chamado liberal pela redução do que resta de soberania popular nos regimes democráticos. A desconfiança legítima, mas problemática, em relação ao movimento tem seus fundamentos. O fato de o movimento desprover de uma organização prévia e um conjunto bem definido de reivindicações abre margem para ambiguidades que diluem a possibilidade de uma clivagem clara entre capital e trabalho. Ademais, saltam à vista manifestações de corte conservador das pessoas nos pontos de bloqueio e que esbarram no machismo, na homofobia, na xenofobia e em outras formas de discriminação. Tudo isso sem falar que se trata de um protesto contra um imposto, o que poderia denotar algum tipo de individualismo – ou uma subjetividade neoliberal, para usar termos em voga. De toda forma, o perigo de que a mobilização seja capturada pela direita é evidente. Sobretudo por uma extrema-direita que reorientou nos últimos anos seu discurso a partir da oposição entre o povo e uma elite europeia ilustrada e comprometida com o mundo das finanças. A pretensa vantagem dos conservadores é ainda reforçada pelo importante apelo da xenofobia entre trabalhadores que se veem em concorrência com os mais pauperizados e consequentemente pouco criteriosos na oferta de sua força de trabalho.
O paralelo com os protestos de junho de 2013, no Brasil, são inevitáveis. O diagnóstico a respeito do que foram e das consequências daqueles dias de intensa mobilização é absolutamente incerto. Certo é que, assim como os coletes amarelos, as forças políticas e sindicais estiveram a reboque do movimento, que rejeitou a interlocução convencional com as autoridades e se mostrou intransigente em relação ao conteúdo de suas reivindicações. Embora a eclosão espontânea de protestos e a crítica profunda ao caráter limitado e pouco representativo do sistema político e de seus principais atores tenha gerado otimismo em grupos de esquerda, a sequência de acontecimentos políticos que seguiu àquelas manifestações informa a visão mais corrente acerca de junho atualmente. Mesmo que sejam escassas as evidências de qualquer relação de causa e consequência minimamente substantiva entre junho e a eleição de Bolsonaro, é forte a interpretação nos meios de esquerda de que as jornadas chocaram o ovo da serpente do neofascismo no Brasil – ou ao menos abriram a via para a emergência e organização de grupos de extrema-direita, até então irrelevantes, ao desgastar o PT e o lulismo.
Embora, como já foi dito, a direita esteja em posição privilegiada para disputar o sentido de mobilizações como a dos coletes amarelos, é um erro compará-la ao que foi junho no Brasil. Dois fatores distinguem fundamentalmente os dois fenômenos, para além das diferenças que separam os dois países. O primeiro diz respeito à ordem, que, nos dois casos e de forma mais ou menos consciente, era combatida pelos manifestantes. No caso brasileiro, se restavam dúvidas quanto aos limites do lulismo, elas foram dissipadas com o golpe de 2016 e o resultado das últimas eleições presidenciais. Contudo, a conciliação que o caracterizou e, de certa forma, fomentou as mobilizações de 2013, permitiu uma série de avanços que não devem ser negligenciados e cuja relevância ganha contornos mais nítidos com a prisão e a inegebilidade de Lula. Àquela altura, em todo caso, não era um absurdo vislumbrar progressos, mesmo que tímidos, por dentro da ordem. Mesmo hoje o programa lulista parece gozar de prestígio entre atores importantes do jogo político, além, claro, de comprovada resiliência eleitoral.
Na França, por outro lado, a ordem em cheque não concede qualquer esperança de melhora para os estratos populares e médios da sociedade. Pelo contrário, os governos que se sucedem se voltam à gestão da crise e da pauperização. Emmanuel Macron é apenas a visão mais nítida de uma elite que recorre à sua sofisticação e pretensa boa-vontade, além da competência técnica, para preservar seus privilégios. A arrogância e o desprezo com que o presidente tratou os coletes amarelos no início do movimento só fez reforçar essa imagem e reforçar a cisão que o separa da França profunda.
O segundo elemento que diferencia as duas mobilizações é a natureza do conflito que se colocava. O caráter difuso e heterogêneo em termos de pautas e composição social de junho, amplamente comentado, dificulta a definição de uma clivagem precisa a orientar os protestos. O mais próximo que se pode chegar disso, cinco anos depois, é a contestação a um sistema político pouco permeável às demandas da sociedade e a organizações políticas pouco representativas de seus anseios. Vaga, essa formulação ganha mais concretude na medida em que essa crítica às instituições se embaralha em seguida com a rejeição ao PT e aos governos Lula e Dilma, fundamentalmente por parte de setores médios. De toda forma, é demasiado arriscado sugerir qualquer clivagem de classe a organizar os protestos de junho. Não é o caso, evidentemente, de relativizar o perfil progressista da pauta original e de uma série de outras reivindicações que a seguiram. Cumpre apenas notar que o grosso caldo que se formou depois do dia 13 e tornou, de fato, o protesto uma mobilização de massa não tinha na oposição entre duas classes seu motor essencial.
Algo completamente diferente do que ocorre na França. Embora os coletes sejam amarelos e não vermelhos, não estejam organizados embaixo de bandeiras caras à esquerda e, inclusive, rejeitem o rótulo, sua revolta é claramente expressão de um conflito de classes. Em tempos de acirramento das disputas distributivas, o aumento de um tributo concomitante a medidas de peso simbólico e objetivo que favorecem o 1% serviu de estopim para a revolta de trabalhadores esgotados pelo empobrecimento. O recuo de Macron não foi suficiente para acalmar os ânimos, que teve de apelar a medidas de corte evidentemente classista: aumentar o salário mínimo e revogar o desconto proposto nas aposentadorias mais modestas. Nem isso, porém, bastou para encerrar a mobilização, cuja força está diretamente ligada à sua possibilidade de ameaçar uma ordem a serviço dos de cima.
Acontece que os de baixo não são necessariamente como a esquerda gostaria que fossem. Frente à insegurança provocada pela retirada de direitos e pela precarização de diversas esferas da vida, sem considerar os estímulos estruturais para a concorrência entre os próprios trabalhadores, alternativas permeadas de retrocesso se fazem possíveis. A empáfia característica de alguns setores médios, inquietos na sua ânsia por distinção, ainda pode reforçar comportamentos reativos reprováveis, como aqueles que alimentam o grupo eleito no Brasil. Em outras palavras, a ambiguidade que marca a prática e a consciência das camadas populares, cuja organização parece cada dia mais difícil, impõe uma escolha decisiva para as esquerdas.
A primeira das alternativas consiste em reduzir temporariamente, quem sabe, seu horizonte normativo de transformação e adotar uma postura de defesa da democracia liberal e do Estado de direito. Frente à adesão das camadas populares a agendas reacionárias, o mais prudente seria aliar-se ao “centro” liberal e, eventualmente, esperar que um povo isento de contradições esteja em condições de fazer avançar a democracia em sentido substantivo. Ideia essa que parece informar o caminho de parte importante da esquerda no Brasil diante dos ataques que se anunciam. Não cabem dúvidas, afinal, de que a democracia liberal, com todos os seus limites, é uma alternativa melhor que regimes conservadores e autoritários como aquele que se apresenta por aqui.
Outro rumo possível é reconhecer as ambiguidades das práticas, assim como os limites subjetivos e em termos organizativos dos setores populares, e a partir daí fomentar um processo de reversão da ordem no sentido do aprofundamento da democracia. Algo parecido com o que vem fazendo Jean-Luc Mélenchon, na França. Evitando colocar-se como porta-voz do movimento, ele tem apoiado os coletes amarelos e enfatizado o seu potencial progressivo. A todo momento, o líder da França Insubmissa enfatiza o protagonismo daqueles que conduzem a ação nas ruas, mas não deixa de se posicionar favoravelmente nos espaços que lhe competem, notadamente a Assembleia e as instâncias de seu partido. A despeito de reconhecer o caráter ideologicamente plural do movimento, Mélenchon tem, desde o início das manifestações, insistido na equivalência entre o que seria arrecadado com o aumento do tributo e o montante do qual o governo Macron abriu mão ao extinguir o imposto de solidariedade sobre as fortunas. Não parece exagerado afirmar que isso foi crucial para que os coletes amarelos incorporassem às suas reivindicações a volta do tributo, cuja força simbólica é determinante para seu sentido mais amplo.
Não se trata de idealizar o povo e seu suposto potencial revolucionário, cuja ativação estaria sujeita a contingências de ordem material ou imaterial. O que é importante notar, a partir do movimento dos coletes amarelos, é que o aparecimento do povo é imprescindível tanto para a democracia, por motivos óbvios, quanto para a política, que supõe o conflito. Em entrevista recente, o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera comentou que a inclusão de estratos populares historicamente excluídos da política naquele país permitiu que pautas a priori estranhas a eles, como o aborto, fossem assumidas como sendo de seu interesse. No início das mobilizações na França, o temor de que o caldo de insatisfação gerado fosse capturado por forças de extrema-direita era generalizado e ainda permanece. No entanto, o tema da imigração foi precariamente inserido na pauta dos coletes amarelos e a decisão de Macron de colocá-lo na agenda do “grande debate nacional” gerou repercussão negativa. Ao mesmo tempo, as medidas concretas em termos de justiça social como resposta ao movimento extrapolaram o aumento do salário mínimo e a revogação do aumento tarifário e já compreendem o congelamento do valor de planos de saúde e um esforço anunciado de aumentar a progressividade dos impostos, notadamente com a criação de uma faixa superior para o imposto de renda.
Ao vestir coletes cuja função é tornar visível um motorista em apuros, franceses esquecidos pelo poder passam a ser respeitados por ele e, mais importante, reconhecem-se a si próprios como capazes de mudar a ordem. Como disse um dos coletes amarelos em um debate televisivo, “as pessoas nas ruas estão entendendo que estão tomando nas mãos o controle sobre o país”. E quanto mais elas avançam, mais se sentem aptos a obter coisas que julgavam impossíveis. Depois de uma série de movimentos análogos ao redor do mundo que, a despeito de conquistas pontuais, culminaram em reações conservadoras e retrocessos democráticos, os coletes amarelos insistem, quase que intuitivamente, em restaurar a soberania popular. É como se o ciclo recente de revoltas tivesse gerado um acúmulo suficiente para vacinar os manifestantes quanto aos limites de acenos e recuos parciais das elites.
Pode soar arriscado, até inconsequente, dirão alguns, confiar no povo. Frente à profunda crise do capitalismo e de sua gestão liberal democrática, quando disputas elementares sobre a fonte e o controle do poder estão na ordem do dia, a defesa dos direitos civis não deve se apoiar em uma clivagem moral, em que o povo, via de regra, representa a ameaça. No Brasil, são vários os analistas progressistas a lamentarem a derrota de um certo consenso de centro e a falta de compromisso das elites com a democracia. Advoga-se, assim, a virada ao centro por parte das forças de esquerda, de quem se cobra responsabilidade fiscal e política. Ignoram essas vozes da razão, porém, que a crise que assistimos é justamente a crise do centro, do suposto consenso que na verdade exclui e impede o litígio, fundamental para a política e para uma democracia que não prescinda do demos. A alternativa à extrema-direita, na França como no Brasil, não é o centro e o compromisso falido da social-democracia. O tempo da revolta, da vontade de justiça e da luta pelo poder tem tudo para ser mais longo do que muitos gostariam. Na França, o sentido da mudança, embora ambíguo, se anuncia positivo. No Brasil, o momento inspira cuidado, mas não parece exagerado dizer que temos a vantagem de que a (extrema) direita não se dá sequer ao trabalho de esconder de que lado está. Cabe à esquerda escolher o seu.
* Philippe Scerb é mestre em Ciência Política pela Sciences Po Paris e doutorando do Departamento de Ciência Política da USP.
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