quarta-feira, 1 de maio de 2019

Assange, WikiLeaks e o Estado vigilante

Por Santiago O'Donnell, no site Carta Maior:

O panorama diante de Julian Assange não é simples, mas tampouco é o do governo dos Estados Unidos. Há mais de cinco anos, Washington iniciou um juízo contra o fundador de WikiLeaks, através de um Grande Jurado constituído nas entranhas do complexo burocrático-militar estadunidense. Mas quando a embaixada equatoriana expulsou seu hóspede mais ilustre como se fosse um cachorro, o Departamento de Estado voltou a atuar mais fortemente, mas até agora conseguiu apenas a sua detenção em uma prisão britânica e um modesto pedido de extradição baseado somente em uma tentativa falha de decifrar a senha de um computador do Departamento de Defesa.

Caso seja provado que Assange efetivamente se valeu de algum ato ilegal para tentar conseguir essa senha, se trataria de um suposto crime informático, o qual poderia ser castigado com até cinco anos de cadeia. A acusação menciona que Assange somente disse à suposta fonte, Chelsea Manning, que havia tentado conseguir a senha, mas “não teve sorte”. Se tomamos semelhante confissão literalmente (formaria parte dos chats entre Manning e Assange, que foram apagados e logo recuperados), seria o caso de perguntar se tentar conseguir uma senha secreta constitui delito e, se a resposta for afirmativa, o que aconteceria se o suposto infrator não deveria ter “sorte”. Sem não foram incluídas acusações mais substanciais, essas perguntas poderiam terminar determinando a culpabilidade ou inocência de Assange, tanto no juízo de extradição quanto em um eventual juízo criminal nos Estados Unidos.

Entretanto, nada assegura que Assange será julgado pelo que foi acusado até agora. Por um lado, os Estados Unidos, já tendo assegurado o primeiro objetivo de deter Assange e avançar com o pedido de extradição, poderiam agregar novas acusações antes da culminação desse processo de extradição. Alguns especialistas legais calculam que os promotores estadunidenses que fizeram o requerimento têm até 65 dias para ampliar sua acusação, contados a partir do momento em que Assange foi preso (11 de abril). Por outro lado, a alternativa que mais inquieta Assange e sua equipe é que essa inclusão de novas denúncias à acusação original seja feita depois que o ciberativista for deportado da Grã-Bretanha. “Acreditamos que a acusação apresentada com o pedido de extradição é somente uma parte da história”, declarou o novo editor do WikiLeaks e porta-voz histórico da organização, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson. “Haverá mais acusações, eles vão incluir outras”.

James C. Goodale, principal advogado do diário The New York Times durante o juízo pelos “Papéis do Pentágono”, nos Anos 70, concorda com o temor do WikiLeaks. “A acusação contra Assange parece ter sido escrita com o único objetivo de conseguir sua extradição. Uma vez que chegando nos Estados Unidos, certamente (Assange) será golpeado com múltiplas denúncias contra si”, escreveu o advogado no The Hill, um site especializado na cobertura do Capitólio. Em seu artigo, Goodale destaca que a lei britânica não permite extradições por razões políticas, e que o crime de espionagem é considerado um crime político pela jurisprudência desse país. Por essa razão, explica o especialista, os promotores estadunidenses evitaram acusar Assange por espionagem, ao menos até agora. Entretanto, o advogado acredita que a acusação, na descrição da conspiração da qual Assange haveria participado, usa linguagem extraída da Lei de Espionagem. “Assange e Manning tinham razões para crer que a difusão pública dos segredos das guerras do Iraque e Afeganistão causariam danos aos Estrados Unidos”, diz o texto apresentado pelos promotores estadunidenses às autoridades britânicas. Em concreto, a frase “causar danos aos Estados Unidos” provém da Lei de Espionagem. E, segundo Goodale, não foi insertada na acusação por casualidade. “As referências ao conceito de conspiração dentro da Lei de Espionagem que estão presentes na acusação contra Assange nos leva a pensar que os Estados Unidos poderiam mudar a isca. Ou seja, primeiro tirar Assange do sistema judicial britânico de qualquer jeito, para depois acusá-lo de espionagem uma vez que se encontre em território dos Estados Unidos”.

Porém, para levar adiante semelhante estratégia, os promotores devem superar um obstáculo que não é menor: o tratado de extradição não permite que uma pessoa seja julgada por um crime diferente do qual ela foi extraditada. Entretanto, esse problema legal não seria fácil de driblar, segundo o ex-advogado chefe do The New York Times. “Há uma exceção à proibição de se apresentar novas acusações depois da extradição: tratam-se de denúncias adicionais que se baseiam nos mesmos fatos pelos que a extradição foi concedida. Em outras palavras, Assange poderia ser acusado de espionagem se essas denúncias se apresentaram como um aprofundamento da acusação por delitos informáticos”, explicou Goodale.

Passe o que passe, é altamente improvável que Assange seja condenado à morte. Virgínia é um dos 30 estados, entre os 50 do país norte-americano que aplica a pena capital. Aliás, é o mais rápido em executar os seus sentenciados, com uma média de oito anos de espera, e é o segundo (atrás do Texas) em quantidade de executados desde 1976 (114, sobre um total de quase 1,5 mil). Porém, tanto a legislação britânica quanto a europeia (a qual o Reino Unido assinou) proíbem extraditar pessoas a países com pena de morte, a menos que o país receptor garanta que essa pena não será aplicada ao extraditado.

A exigência britânica do respeito à vida do extraditado não garanta que Assange receberá um trato respeitoso aos direitos humanos em um centro de detenção estadunidense. Sua suposta fonte no mega vazamento chamado “Cablegate”, Chelsea Manning, foi detida em 2010, condenada a 35 anos e perdoada por Barack Obama após cumprir sete deles na cadeia, enfrentando um tratamento “cruel, desumano e degradante, equiparável à tortura”, segundo denunciou, em 2012, o então relator especial para a tortura das Nações Unidas, Juan Méndez. Enquanto Manning recebia esse tratamento, seus interrogadores insistiam em exigir que ela envolvesse Assange em um suposto complô de espionagem. Há dois meses, Manning foi presa novamente e permanece numa cela de isolamento até hoje, por se negar a responder perguntas sobre Assange diante do Grande Jurado de Alexandria.

A nova detenção de Manning e a negociação informal para tirar Assange da embaixada equatoriana em Londres são apenas dois casos que mostram a crescente intolerância do governo estadunidense ao vazamento de informações sensíveis desde a chegada de Donald Trump à presidência de Donald Trump, há dois anos.

Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ, por sua sigla em inglês), seis pessoas foram julgadas por espionagem devido a vazamentos a jornalistas desde a ascensão de Trump – nos oito anos de Obama dez pessoas foram julgadas pelo mesmo motivo, o que mostra uma maior velocidade da nova administração nesse sentido. No atual governo, houve processamentos por vazamentos à imprensa de informações secretas da Agência de Segurança Nacional (Reality Winner foi condenada a cinco anos de prisão), do FBI (Terry Albury, condenado a quatro anos) e da CIA (Joshua Schulte, detido por difundir ferramentas para hackear a agência através do WikiLeaks, espera sua sentença).

Claro que julgar e condenar Assange, um publicador de informações secretas, seria muito diferente que fazer o mesmo contra os que vazaram. Os principais meios estadunidenses (e do mundo inteiro) foram sócios do WikiLeaks na publicação de seus vazamentos de maior impacto, e a primeira emenda da constituição do país protege explicitamente a liberdade de expressão. Por isso, os promotores de Alexandria, em suas diligências e interrogatórios de testemunhas, insistem em buscar evidências de que Assange participou em seus vazamentos de uma forma distinta à que habitualmente fazem os jornalistas, buscando provar que ele não foi simplesmente um receptor passivo de informação, e que esta não chegou a ele de forma anônima.

Ao parecer, em oito anos de investigação, conseguiram apenas um chat apagado, que sugere uma tentativa sem sucesso de decifrar uma senha secreta e uma narrativa legal, sem correlação empírica que aponte os supostos “danos aos Estados Unidos”. Nos tempos de Trump, de fake news e de pós-verdade, não é preciso de muito mais que isso para se castigar o principal responsável por desnudar o Estado vigilante.

“A detenção de Assange – escreveu Bruno Galizzi, da Fundação Garzón, ao jornal espanhol El Diario – é um passo a mais dado pelos que querem retroceder às épocas pretéritas, quando reinava o obscurantismo, cortando nossos direitos fundamentais e castigando os que revelam os secretos que envergonham os donos do poder”.

* Publicado originalmente no jornal argentino Página-12. Tradução de Victor Farinelli.

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