Por Jason de Lima e Silva, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Colônia escravocrata
Uma boa parte de nossa gente é racista, ainda que jamais admita: não gosta de negro, nem de pobre, nem de indígena. Pode até tolerá-los, mas à distância e se estiverem por perto, que estejam à sua altura. É capaz até de gostar, se não lhe ofende o mérito. Essas coisas têm relação, claro, com nossa história, não são gratuitas.
A história de uma colônia escravocrata de exploração. Isso autoriza a se fazer dinheiro com nossas terras, as custas de suas matas, de suas etnias e de seus animais. Isso autoriza Estado mínimo para a proteção ambiental, para se vender como bananas nossas refinarias de petróleo, arrendar nosso solo, privatizar nossa aposentadoria, prestar muitos serviços sem a garantia de um único emprego.
Estado máximo, em contrapartida, para a repressão das militâncias e da violência decorrente da miséria social. Caveira para matar quem? Prisão antes de mais nada. Por sinal, está bem fácil prender: se acusa, se prende e se condena, depois se buscam as provas, até que se esquece daquele que foi privado de sua liberdade, lá dentro da penitenciária.
Estado de direito
É a lógica invertida das proposições básicas de um Estado de direito. Teria o povo cansado de leis e proteções e agora espere mando e vingança para um ódio que sequer sabe de onde vem? Mas quanta gente desse mesmo povo não bajula uma elite que esfola a juros o pequeno empresário? E o pequeno empresário quanto já não repetiu ter o governo feito muito pelo trabalhador, nada por ele? Agora que trabalhem aos domingos!
Mas em uma crise econômica que só se aprofunda, quem é o empresário, quem é o trabalhador, quem é que ainda tem dinheiro no caixa, quem já não deve o coro para o banco? Uma massa de verde amarelo foi para a rua. Massa de uma classe confusa, que se fundiu ainda mais na última década, a classe média.
Uma classe que se impressiona com as posses alheias, vive na disputa de suas vagas e de seus privilégios, teme muitas vezes perder para o outro, para o que tem menos ou muito pouco. Mas paga pau para o rico, que a explora e a coloca dentro de seus sistemas privados de seguros e serviços.
Patriotas
Com o aparecimento nacional do medíocre deputado, surgiram patriotas em cada buraco de rato, restauradores morais de boteco, conservadores de nobres estirpes e obscuros valores tradicionais, nostálgicos da tortura, monomaníacos anticomunistas, cidadãos de bem ordeiros e psicopatas em nome de Deus.
Dá medo porque os caras justamente tomaram o poder. E o fato de sentirmos medo também reverte no seu gozo fascista. Assim como assusta o tipo de seu escárnio: de tudo se ri porque com nada se compromete. Assusta porque os caras não se colocam os limites: nem os da civilidade, nem os da natureza. E o Estado já não os para.
Pouco se importam se pega fogo na Amazônia. Se asfaltassem tudo, construíssem shoppings do Mato-Grosso ao Pará, nada lamentariam, desde que os indígenas pudessem servi-los com roupas limpas e sapatos.
A porteira da barbárie que se abriu estava aqui, entre nós, desde sempre, apenas encostada: bastava ouvi-lo. Contra o tal “politicamente correto” testemunhamos o espetáculo do mais eticamente reprovável. O político da anti-política, militar sem disciplina, sempre foi coerente com sua estupidez a serviço de uma violência de classe.
Defesa da família (própria)
O fato de termos de escutar o repertório de suas aberrações, já nos colocou, sem dúvida, fora das fronteiras da democracia, porque apologia a torturador bastaria para retirá-lo do espaço público e do cargo público, obrigá-lo a se retratar e a devolver todo seu ordenado aos cofres da União. Isso, claro, em um Estado democrático de direito.
Um desses bons memes das redes pôs, esses dias, a questão: e vocês achavam que quando falava em proteger a família se referia a sua família? É para a família deles próprios que governam, para a família dos pastores ricos, dos banqueiros, dos brancos, dos ruralistas. Governam para os ianques, para suas empresas e ações financeiras, não governam para nós, nós que precisamos de educação, de trabalho e posto de saúde, de garis e professores bem pagos.
Vaza Jato
Agora não sabe em que pia lavar as mãos que estrangulam e estrangularam. The Intercept Brasil pode ajudá-la, em algumas de suas frentes, a desfazer o herói que produziram naquele combate à corrupção de fachada por meios corruptos, que predominantemente a Lava Jato representou.
O conteúdo de seu vazamento ganha uma urgência democrática e põe em absoluta suspeita o próprio judiciário. Mas queremos mesmo democracia, sabemos o que significa democracia, estamos preparados para exercitá-la e mantê-la no ambiente hostil de nossas desigualdades profundas e capitalismo coronelista?
Significa votar e manter o mandato de um governo, mas sobretudo o que significa dar lugar e poder aos invisíveis de uma sociedade, àqueles que são colocados sistematicamente à margem da boa refeição e dos bens culturais e correm sempre o risco de serem física e socialmente eliminados?
Quem faz as regras nesta sociedade está disposto a respeitá-las? Ou na política tudo é possível e aceitamos o autoritarismo de quem fala mais alto, se refugia na rede social e culpabiliza seus fantasmas ideológicos pelo fracasso. Vive a performance de um deboche sem fim, ao qual nenhuma crítica cola porque tudo é impermeável, vira cinza e terreno para uma barbárie rentável.
A face de quem mais lucra com tudo isso podemos não ver, mas as vítimas se acumulam na paisagem incinerada de nossa necropolítica. Como rimou Sabotage: país da fome, no fundo de uma cela pensa um homem.
* Jason de Lima e Silva é professor de Filosofia do Centro de Ciências da Educação/UFSC.
Já não há como ficar em cima do muro. O insuportável tem nome e sobrenome. Teve urna também. E a utopia da farda, autoritarismo, o reino de Salomão, nada disso salvou o país de coisa alguma, apenas deixou mais claro as suas contradições.
O que nos ensina muita coisa sobre essa terra tão bela e extensa, que já tem, como dizia Villa-Lobos em 1951, “a forma geográfica de um coração”.
Primeiro, há um esquecimento estratégico de sua história. Negar ter havido ditadura, por exemplo, é repetir a obrigação profissional do protagonista de 1984: incinerar os documentos e toda a verdade que pudesse desmoronar o poder estabelecido.
O que nos ensina muita coisa sobre essa terra tão bela e extensa, que já tem, como dizia Villa-Lobos em 1951, “a forma geográfica de um coração”.
Primeiro, há um esquecimento estratégico de sua história. Negar ter havido ditadura, por exemplo, é repetir a obrigação profissional do protagonista de 1984: incinerar os documentos e toda a verdade que pudesse desmoronar o poder estabelecido.
Colônia escravocrata
Uma boa parte de nossa gente é racista, ainda que jamais admita: não gosta de negro, nem de pobre, nem de indígena. Pode até tolerá-los, mas à distância e se estiverem por perto, que estejam à sua altura. É capaz até de gostar, se não lhe ofende o mérito. Essas coisas têm relação, claro, com nossa história, não são gratuitas.
A história de uma colônia escravocrata de exploração. Isso autoriza a se fazer dinheiro com nossas terras, as custas de suas matas, de suas etnias e de seus animais. Isso autoriza Estado mínimo para a proteção ambiental, para se vender como bananas nossas refinarias de petróleo, arrendar nosso solo, privatizar nossa aposentadoria, prestar muitos serviços sem a garantia de um único emprego.
Estado máximo, em contrapartida, para a repressão das militâncias e da violência decorrente da miséria social. Caveira para matar quem? Prisão antes de mais nada. Por sinal, está bem fácil prender: se acusa, se prende e se condena, depois se buscam as provas, até que se esquece daquele que foi privado de sua liberdade, lá dentro da penitenciária.
Estado de direito
É a lógica invertida das proposições básicas de um Estado de direito. Teria o povo cansado de leis e proteções e agora espere mando e vingança para um ódio que sequer sabe de onde vem? Mas quanta gente desse mesmo povo não bajula uma elite que esfola a juros o pequeno empresário? E o pequeno empresário quanto já não repetiu ter o governo feito muito pelo trabalhador, nada por ele? Agora que trabalhem aos domingos!
Mas em uma crise econômica que só se aprofunda, quem é o empresário, quem é o trabalhador, quem é que ainda tem dinheiro no caixa, quem já não deve o coro para o banco? Uma massa de verde amarelo foi para a rua. Massa de uma classe confusa, que se fundiu ainda mais na última década, a classe média.
Uma classe que se impressiona com as posses alheias, vive na disputa de suas vagas e de seus privilégios, teme muitas vezes perder para o outro, para o que tem menos ou muito pouco. Mas paga pau para o rico, que a explora e a coloca dentro de seus sistemas privados de seguros e serviços.
Patriotas
Com o aparecimento nacional do medíocre deputado, surgiram patriotas em cada buraco de rato, restauradores morais de boteco, conservadores de nobres estirpes e obscuros valores tradicionais, nostálgicos da tortura, monomaníacos anticomunistas, cidadãos de bem ordeiros e psicopatas em nome de Deus.
Dá medo porque os caras justamente tomaram o poder. E o fato de sentirmos medo também reverte no seu gozo fascista. Assim como assusta o tipo de seu escárnio: de tudo se ri porque com nada se compromete. Assusta porque os caras não se colocam os limites: nem os da civilidade, nem os da natureza. E o Estado já não os para.
Pouco se importam se pega fogo na Amazônia. Se asfaltassem tudo, construíssem shoppings do Mato-Grosso ao Pará, nada lamentariam, desde que os indígenas pudessem servi-los com roupas limpas e sapatos.
A porteira da barbárie que se abriu estava aqui, entre nós, desde sempre, apenas encostada: bastava ouvi-lo. Contra o tal “politicamente correto” testemunhamos o espetáculo do mais eticamente reprovável. O político da anti-política, militar sem disciplina, sempre foi coerente com sua estupidez a serviço de uma violência de classe.
Defesa da família (própria)
O fato de termos de escutar o repertório de suas aberrações, já nos colocou, sem dúvida, fora das fronteiras da democracia, porque apologia a torturador bastaria para retirá-lo do espaço público e do cargo público, obrigá-lo a se retratar e a devolver todo seu ordenado aos cofres da União. Isso, claro, em um Estado democrático de direito.
Um desses bons memes das redes pôs, esses dias, a questão: e vocês achavam que quando falava em proteger a família se referia a sua família? É para a família deles próprios que governam, para a família dos pastores ricos, dos banqueiros, dos brancos, dos ruralistas. Governam para os ianques, para suas empresas e ações financeiras, não governam para nós, nós que precisamos de educação, de trabalho e posto de saúde, de garis e professores bem pagos.
Imprensa
Houve, claro, uma narrativa da imprensa que é cúmplice dessa catástrofe. À beira de um segundo turno tenso, William Bonner entrevistou Fernando Haddad de modo sumariamente fascista, mas antes já havia entrevistado o fascista de modo simpaticamente democrático.
E aí percebemos que o fascismo não está apenas nos meios totalitários que se criam para justificar determinados fins: assim, por exemplo, a invenção do terror comunista justificaria o terrorismo de Estado em uma ditadura. O fascismo está também no método, publicitário ou informativo, e a sua edição é a alma do negócio.
No caso de uma entrevista: a tática do corte, a neutralização do outro, o constrangimento de seus processos equívocos, a sova de informações adulteradas. Isso foi o que a imprensa fez, continua fazendo, para orientar nossos juízos, rir, xingar, comemorar.
Houve, claro, uma narrativa da imprensa que é cúmplice dessa catástrofe. À beira de um segundo turno tenso, William Bonner entrevistou Fernando Haddad de modo sumariamente fascista, mas antes já havia entrevistado o fascista de modo simpaticamente democrático.
E aí percebemos que o fascismo não está apenas nos meios totalitários que se criam para justificar determinados fins: assim, por exemplo, a invenção do terror comunista justificaria o terrorismo de Estado em uma ditadura. O fascismo está também no método, publicitário ou informativo, e a sua edição é a alma do negócio.
No caso de uma entrevista: a tática do corte, a neutralização do outro, o constrangimento de seus processos equívocos, a sova de informações adulteradas. Isso foi o que a imprensa fez, continua fazendo, para orientar nossos juízos, rir, xingar, comemorar.
Vaza Jato
Agora não sabe em que pia lavar as mãos que estrangulam e estrangularam. The Intercept Brasil pode ajudá-la, em algumas de suas frentes, a desfazer o herói que produziram naquele combate à corrupção de fachada por meios corruptos, que predominantemente a Lava Jato representou.
O conteúdo de seu vazamento ganha uma urgência democrática e põe em absoluta suspeita o próprio judiciário. Mas queremos mesmo democracia, sabemos o que significa democracia, estamos preparados para exercitá-la e mantê-la no ambiente hostil de nossas desigualdades profundas e capitalismo coronelista?
Significa votar e manter o mandato de um governo, mas sobretudo o que significa dar lugar e poder aos invisíveis de uma sociedade, àqueles que são colocados sistematicamente à margem da boa refeição e dos bens culturais e correm sempre o risco de serem física e socialmente eliminados?
Quem faz as regras nesta sociedade está disposto a respeitá-las? Ou na política tudo é possível e aceitamos o autoritarismo de quem fala mais alto, se refugia na rede social e culpabiliza seus fantasmas ideológicos pelo fracasso. Vive a performance de um deboche sem fim, ao qual nenhuma crítica cola porque tudo é impermeável, vira cinza e terreno para uma barbárie rentável.
A face de quem mais lucra com tudo isso podemos não ver, mas as vítimas se acumulam na paisagem incinerada de nossa necropolítica. Como rimou Sabotage: país da fome, no fundo de uma cela pensa um homem.
* Jason de Lima e Silva é professor de Filosofia do Centro de Ciências da Educação/UFSC.
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