Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A diferença se encontra no item moradia, esse dado que pode representar a fronteira entre o paraíso e o inferno da existência de toda família e cada pessoa. Nada menos que 62% residentes da ocupação saíram "da moradia anterior" em função de "dificuldades com o aluguel". Eram habitantes daquele país de despejos frequentes, moradias precárias e dificuldades suplementares para a convivência familiar e a educação dos filhos. Hoje, diante da pergunta "gosta de morar na ocupação? " nada menos que 87% responderam "sim".
A liderança por trás desta história é uma comerciante de 54 anos, Ademilde Soares Dias, de modos bem resolvidos e raciocínio ágil. Há seis anos, caminhando de porta em porta, Ademilde fez uma lista de pessoas dispostas a ocupar aquele terreno abandonado há tanto tempo -- mais de 20 anos -- que ninguém se lembrava de gente trabalhando naquela área, propriedade de uma transportadora de Pernambuco que fechou as portas deixando uma dívida de R$ 1 bilhão só em impostos.
"Ali havia um açougue humano: uma lagoa abandonada onde os meninos mergulhavam para nadar e muitos acabavam morrendo", contou Ademilde ao 247.
O prefeito Fernando Haddad deixou a prefeitura sem assinar a desapropriação do imóvel, iniciativa que teria sido um passo definitivo para resolver a situação. Antes e depois, contudo, nenhuma autoridade empenhou-se como ele para atender as reivindicações. Mesmo sem desapropriar, deu o primeiro passo, que foi reconhecer a área como de utilidade pública. Quando a Secretaria de Segurança do governo Geraldo Alckmin já elaborava planos para invadir o lugar com 1000 homens da tropa de choque -- um soldado para cada duas famílias -, sem falar nos pelotões convencionais, Haddad mobilizou-se para impedir um massacre. Obteve uma decisão do tribunal de Justiça, desautorizando uma ação que poderia ensanguentar as margens do Tietê, vizinho a ocupação.
Queimadas nas labaredas do golpe que afastou Dilma Rousseff, a incapacidade do governo Temer em atender as justíssimas reivindicações dos moradores produziram um vexame clamoroso.
Depois de marcar uma visita ao local, anunciando o plano de sobrevoar a área para "conhecer a situação de perto", o chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun, ligou dizer que não havia encontrado um helicóptero disponível no Campo de Marte.
Uma liderança importante na ocupação, presença obrigatória na organização de eventos festivos e também nas deciaões políticas, o corretor de imóveis Henrique Ollita, principal dirigente do Partido dos Tralhadores na região, foi o mestre de cerimonias de um ato público realizado no sábado, 31 de agosto, num pequeno palanque.
Outro dos presentes, Valmir Siqueira, é professor de português na Paulo Egydio, que funciona bem perto da ocupação. Dirigente da Apeoesp, o sindicato de professores, também é compositor na Unidos da Vilma Maria, pela qual teve dois sambas nota 10, nos carnavais de 2012 e 2014.
No mesmo palanque, subiu um conhecido morador da região, Eliseu, pai do craque Elias, ídolo do Corinthians, com passagens pela Seleção, que hoje se encontra no Atlético Mineiro.
Vestindo uma camiseta negra ilustrada por uma foto de dois ícones do movimento negro norte americano - o boxeador Muhammad Ali e o líder Malcolm X - Eliseu lembrou os tempos em que, chegando do Sul da Bahia, abrigou-se num bairro nas proximidades daquilo que hoje é a ocupação Douglas Rodrigues.
" Muitos trabalhadores crescem, mudam de vida e se esquecem do que passaram. Todos os bairros aqui começaram com ocupações. Depois se consolidaram e foram regularizados, "disse, antes de concluir: "Só a luta muda a vida".
No sábado, o tom combativo apareceu em toda parte, inclusive na declamação de poesias de um grupo de meninas. Numa das rimas, uma aluna mais espevitada falava de "pão" e "revolução".
Dona de um dos restaurantes em atividade na ocupação, onde serve uma feijoada com merecida reputação pelo tempero e pela qualidade dos ingredientes, Monica Pereira de Carvalho, 39 anos, fala de uma vida dividida entre antes e depois da ocupação. Explica que ali passou a entender a importância da política (espertamente, chama de "politicagem") e do voto. Conta que nos últimos meses participou de várias reuniões com professores da escola Paulo Egydio para discutir a reforma da Previdência e diz que não se espantou com a votação pela Câmara. "Só iam doze nas reuniões. Não podia sair outra coisa".
A costureira Rossana Martins Rodrigues nunca tinha aparecido na ocupação. Ela é mãe de Douglas Rodrigues, um menino que aos 17 anos perdeu a vida numa tragédia e deu nome a uma história bonita. Resolveu visitar a ocupação porque quer ficar perto de tudo que pode lembrar seu filho.
Entregador de pizza, Douglas estava na rua quando morreu executado por um tiro de pistola .40 de um soldado da Polícia Militar. O crime comoveu a região, levando moradores da região a incendiar ônibus e caminhões em protestos. Dilma Rousseff chegou a divulgar uma declaração em solidariedade à família.
Neste ambiente, os moradores batizaram a ocupação com o nome de Douglas. Ao 247, Rossana diz, lágrimas nos olhos, que aprecia a homenagem mas segue atrás de Justiça para seu filho. Lembra que o PM foi expulso da corporação mas não cumpriu pena de prisão. A Justiça aceitou a alegação de que a arma disparou por acidente, sem que o soldado Luciano Pinheiro Bispo apertasse o gatilho. O argumento é que o revólver disparou com um simples cachoalhão. Em função dessa explicação, Rossana, está processando a Taurus, fabricante do revólver. "Ela vai ter de resolver: ou diz que o PM está mentindo e a sentença será revista. Ou assume que produziu uma arma com defeito e aí terá de arcar com suas responsabilidades."
Passeando pelas ruas estreitas da ocupação, Rossana reforçou a convicção de que nada acontece por acaso. "Não vou desistir". É uma atitude partilhada por todos ali, como mostram tanta luta e tanto esforço que fizeram a história da ocupação Douglas Rodrigues.
Alguma dúvida?
"A única luta que se perde é aquela que se abandona", ensina uma frase pintada num dos muros altos da ocupação Douglas Rodrigues, uma área de 50 000 metros quadrados na Zona Norte de São Paulo.
Localizada numa encruzilhada política e social na qual 2 000 famílias em busca de um lugar decente para morar enfrentam - e pelo menos até agora venceram - os grandes tentáculos do mercado imobiliário de São Paulo, em 28 de agosto a ocupação completou seis anos de resistência e mobilização.
Neste período, quando três presidentes da República ocuparam o Palácio do Planalto, e a economia do país abandonou um dos melhores momentos de sua história recente para mergulhar numa recessão terrível, os brasileiros e brasileiras da Ocupação Douglas Rodrigues transformaram um terreno abandonado e infecto num bairro popular com traços muito especiais.
Um levantamento da Associação de Moradores mostra que a Douglas Rodrigues abriga uma miniatura quase perfeita deste Brasil imenso, desigual e empobrecido que todos conhecem. Uma grande parcela (42%) só estudou até o primário, enquanto 32% fizeram o médio 2,7% o curso superior. Em tempos de informalidade crescente, só 37% tem registro em carteira. A mesma proporção trabalha por conta própria e 12% estão desempregados.
A diferença se encontra no item moradia, esse dado que pode representar a fronteira entre o paraíso e o inferno da existência de toda família e cada pessoa. Nada menos que 62% residentes da ocupação saíram "da moradia anterior" em função de "dificuldades com o aluguel". Eram habitantes daquele país de despejos frequentes, moradias precárias e dificuldades suplementares para a convivência familiar e a educação dos filhos. Hoje, diante da pergunta "gosta de morar na ocupação? " nada menos que 87% responderam "sim".
A liderança por trás desta história é uma comerciante de 54 anos, Ademilde Soares Dias, de modos bem resolvidos e raciocínio ágil. Há seis anos, caminhando de porta em porta, Ademilde fez uma lista de pessoas dispostas a ocupar aquele terreno abandonado há tanto tempo -- mais de 20 anos -- que ninguém se lembrava de gente trabalhando naquela área, propriedade de uma transportadora de Pernambuco que fechou as portas deixando uma dívida de R$ 1 bilhão só em impostos.
"Ali havia um açougue humano: uma lagoa abandonada onde os meninos mergulhavam para nadar e muitos acabavam morrendo", contou Ademilde ao 247.
O local foi ocupado quando 300 pessoas se interessaram em participar. "Entramos no terreno às 22 horas e antes do dia nascer já tínhamos mais de 3000 aqui dentro,"diz ela. Seis anos depois, a ocupação é um dos grandes troféus da luta por moradia em São Paulo e no país. Os lotes -- com 4 x 7 metros de área --, onde residem entre 3 e 4 pessoas, em média, recebem água encanada e esgoto da Sabesp. Os moradores pagam contas individuais.
Embora a Justiça tenham até aprovado uma ação civil pública para garantir o fornecimento - e cobrança - de energia elétrica - a Eletropaulo sempre se recusou a aceitar a nova clienta. Até agora, a Enel, multinacional italiana que comprou a estatal paulista, mantém a mesma postura - empurrando 2000 famílias que gostariam de pagar pela energia consumida, como fazem todos os cidadãos do país, a recorrer aos "gatos".
O prefeito Fernando Haddad deixou a prefeitura sem assinar a desapropriação do imóvel, iniciativa que teria sido um passo definitivo para resolver a situação. Antes e depois, contudo, nenhuma autoridade empenhou-se como ele para atender as reivindicações. Mesmo sem desapropriar, deu o primeiro passo, que foi reconhecer a área como de utilidade pública. Quando a Secretaria de Segurança do governo Geraldo Alckmin já elaborava planos para invadir o lugar com 1000 homens da tropa de choque -- um soldado para cada duas famílias -, sem falar nos pelotões convencionais, Haddad mobilizou-se para impedir um massacre. Obteve uma decisão do tribunal de Justiça, desautorizando uma ação que poderia ensanguentar as margens do Tietê, vizinho a ocupação.
Queimadas nas labaredas do golpe que afastou Dilma Rousseff, a incapacidade do governo Temer em atender as justíssimas reivindicações dos moradores produziram um vexame clamoroso.
Depois de marcar uma visita ao local, anunciando o plano de sobrevoar a área para "conhecer a situação de perto", o chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun, ligou dizer que não havia encontrado um helicóptero disponível no Campo de Marte.
Uma liderança importante na ocupação, presença obrigatória na organização de eventos festivos e também nas deciaões políticas, o corretor de imóveis Henrique Ollita, principal dirigente do Partido dos Tralhadores na região, foi o mestre de cerimonias de um ato público realizado no sábado, 31 de agosto, num pequeno palanque.
Outro dos presentes, Valmir Siqueira, é professor de português na Paulo Egydio, que funciona bem perto da ocupação. Dirigente da Apeoesp, o sindicato de professores, também é compositor na Unidos da Vilma Maria, pela qual teve dois sambas nota 10, nos carnavais de 2012 e 2014.
No mesmo palanque, subiu um conhecido morador da região, Eliseu, pai do craque Elias, ídolo do Corinthians, com passagens pela Seleção, que hoje se encontra no Atlético Mineiro.
Vestindo uma camiseta negra ilustrada por uma foto de dois ícones do movimento negro norte americano - o boxeador Muhammad Ali e o líder Malcolm X - Eliseu lembrou os tempos em que, chegando do Sul da Bahia, abrigou-se num bairro nas proximidades daquilo que hoje é a ocupação Douglas Rodrigues.
" Muitos trabalhadores crescem, mudam de vida e se esquecem do que passaram. Todos os bairros aqui começaram com ocupações. Depois se consolidaram e foram regularizados, "disse, antes de concluir: "Só a luta muda a vida".
No sábado, o tom combativo apareceu em toda parte, inclusive na declamação de poesias de um grupo de meninas. Numa das rimas, uma aluna mais espevitada falava de "pão" e "revolução".
Dona de um dos restaurantes em atividade na ocupação, onde serve uma feijoada com merecida reputação pelo tempero e pela qualidade dos ingredientes, Monica Pereira de Carvalho, 39 anos, fala de uma vida dividida entre antes e depois da ocupação. Explica que ali passou a entender a importância da política (espertamente, chama de "politicagem") e do voto. Conta que nos últimos meses participou de várias reuniões com professores da escola Paulo Egydio para discutir a reforma da Previdência e diz que não se espantou com a votação pela Câmara. "Só iam doze nas reuniões. Não podia sair outra coisa".
A costureira Rossana Martins Rodrigues nunca tinha aparecido na ocupação. Ela é mãe de Douglas Rodrigues, um menino que aos 17 anos perdeu a vida numa tragédia e deu nome a uma história bonita. Resolveu visitar a ocupação porque quer ficar perto de tudo que pode lembrar seu filho.
Entregador de pizza, Douglas estava na rua quando morreu executado por um tiro de pistola .40 de um soldado da Polícia Militar. O crime comoveu a região, levando moradores da região a incendiar ônibus e caminhões em protestos. Dilma Rousseff chegou a divulgar uma declaração em solidariedade à família.
Neste ambiente, os moradores batizaram a ocupação com o nome de Douglas. Ao 247, Rossana diz, lágrimas nos olhos, que aprecia a homenagem mas segue atrás de Justiça para seu filho. Lembra que o PM foi expulso da corporação mas não cumpriu pena de prisão. A Justiça aceitou a alegação de que a arma disparou por acidente, sem que o soldado Luciano Pinheiro Bispo apertasse o gatilho. O argumento é que o revólver disparou com um simples cachoalhão. Em função dessa explicação, Rossana, está processando a Taurus, fabricante do revólver. "Ela vai ter de resolver: ou diz que o PM está mentindo e a sentença será revista. Ou assume que produziu uma arma com defeito e aí terá de arcar com suas responsabilidades."
Passeando pelas ruas estreitas da ocupação, Rossana reforçou a convicção de que nada acontece por acaso. "Não vou desistir". É uma atitude partilhada por todos ali, como mostram tanta luta e tanto esforço que fizeram a história da ocupação Douglas Rodrigues.
Alguma dúvida?
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