Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:
Livros são o diabo. Você está em busca de uma coisa, vem outra. Estava correndo as páginas de História da Internacional Comunista, de Pierre Broué. O título me chama a atenção, página 653: “Eles entregaram a cidadela”. Diminuo o ritmo, leio com carinho. Vou lendo, lendo, e ligo com o Brasil, talvez equivocadamente, e o leitor há de me corrigir se achar estranho, ancorado em Marx, aquela história da tragédia e da farsa. Só comento para dividir minhas apreensões, nesses tempos em que dormir bem é uma conquista, pesadelos constituem parte do cotidiano.
A Alemanha de 1932, sacudida por uma segunda crise econômica, com forte impacto social: 12 milhões de desempregados – 5 milhões oficiais, mesmo número em trabalho parcial, 2 milhões de não-inscritos. Em setembro daquele ano, de cada 100 trabalhadores, 44 estavam desempregados, 22 trabalhavam em tempo parcial. Metade das famílias operárias sobrevivia com salários reduzidos à metade. A maioria dos jovens não tinha trabalho e não tinha perspectiva de encontrá-lo. Os diplomados não tinham maior sorte: em 1931, de 8 mil engenheiros, apenas mil estavam empregados e de 22 mil mestres, somente 900 estavam empregados.
Isso tudo nos lembra alguma coisa?
Mais: a pequena e média burguesias estavam assustadas, humilhadas diante de sua pauperização, sua proletarização acelerada, mundo desabando. Pequenos patrões apavorados: 20 mil pequenas empresas agrícolas leiloadas somente no ano de 1930. A crise recebe o impacto do crack de 1929 nos EUA. E a burguesia passa a exigir do governo medidas rigorosas: evitar o déficit orçamentário, reduzir direitos sociais, reduzir seguro-desemprego, aliviar o bolso dos capitalistas. A burguesia não varia: joga o peso da crise nas costas dos trabalhadores.
Vai anotando, e veja se encontra alguma semelhança com nosso solo sagrado.
E nas crises graves, a burguesia, além de tudo, reclama um salvador, tenha ele a cara horrenda ou não.
Adolf Hitler, com todas suas loucuras – se dizia isso talvez impropriamente – , apareceu como a solução da crise. Cresce exponencialmente, assim como do nada, o Partido Nacional Socialista. Não era do nada: havia a crise econômica, a crise social, as consequências psicológicas dessas duas crises, a sensação de insegurança, tudo a provocar a cobrança de um líder forte, um salvador.
Estamos nos lembrando de alguma coisa?
O progresso do partido nazista, no entanto, além das questões estruturais e do impacto sobre as subjetividades, só foi possível graças a uma organização moderna de campanhas eleitorais, um aparato muito eficaz, a existência de fundos financeiros para as reuniões, atos, comícios, utilização de aviões pelo estado-maior, para garantir grande número de funcionários permanentes, sustentar tropas de choque com membros uniformizados, alimentados, alojados. Essas tropas passaram de algumas dezenas de milhares a 400 mil ao final de 1932. Custavam um dinheiro lerdo. A burguesia contribuía, e contribuiu mais ainda quando Hitler assumiu e conclamou os endinheirados a que metessem a mão em seus bolsos.
A classe dominante alemã compreende perfeitamente a necessidade de uma milícia para a defesa da chamada ordem social. Essa milícia era encarada como uma espécie de garantia contra os riscos revolucionários. Mesmo não estivesse tão segura da moralidade e dos escrúpulos dos componentes da milícia, mesmo sabendo o material humano de que era composta, não vacila em financiá-la porque necessária aos seus objetivos de garantir os seus lucros em meio à crise e de combater a ferro e a fogo os comunistas.
Nos enxergamos aí? A palavra milícia nos diz alguma coisa?
A classe dominante alemã não quer saber onde o Partido Nacional Socialista recruta os integrantes das milícias.
Primeiro, recrutados nas pequenas cidades. Encontra ambiente sobretudo entre estudantes e na pequena burguesia amedrontada com a pauperização, com a proletarização. Wilhelm Reich tem razão, o nazismo foi sempre um movimento de classe média baixa onde quer que tenha surgido. Diz isso no capítulo “A ideologia autoritária da família na psicologia de massas do fascismo”, do livro Psicologia de massas do fascismo. O anticomunismo e o antisemitismo foram ideologias essenciais para o recrutamento. Em 1932, a média de idade dos integrantes do partido gira em torno de 30 anos. É um partido de homens. Mulheres, menos de 8%.
Os quadros nazistas manifestam seu ódio à inteligência, simpatia com o neodarwinismo, são a favor da desigualdade, da xenofobia e defendem um sistema de valores antiemancipatórios, antimoderno.
Tais formulações nos lembram alguma coisa?
O verdadeiro programa dos nazistas não era o propagado ao povo. O real era o proposto à burguesia alemã.
Nos ajudem a tomar o poder e resolveremos a crise: nada mais de vantagens adquiridas, nada de direitos sociais, vamos reduzir tudo ao mínimo para os trabalhadores. E vamos destruir o movimento operário organizado, partidos de esquerda e sindicatos. Diziam isso à burguesia.
Essas coisas soam estranhas para nós?
E foi um vale-tudo: agressões contra militantes mais destacados e mesmo os de base, sabotagens de reuniões políticas com gritos e urros, assaltos às tribunas, golpes e ferimentos sobre os participantes, espécie de guerra civil permanente, criação de um clima de ódio, de medo, de insegurança. Isolar, esmagar os partidos operários, separá-los da massa aterrorizada. E a polícia, na fase preparatória da chegada dos nazistas ao poder, não tomava quaisquer medidas contra as milícias, contra as tropas de choque.
As milícias foram ocupando território pela implantação dos Sturmlokale, mistura de clubhouse com boteco, equipados com camas e colchões, bases operacionais em fortalezas inimigas, sobretudo em Berlim. Sucediam os comunistas nos lugares tradicionalmente ocupados por estes, sobretudo em Berlim. Houve combates duros entre os nazistas e os comunistas. Muitas mortes. Os nazistas venceram. Broué atribuiu a derrota a uma posição do Partido Comunista Alemão, o KPD. Uma resolução acusava o “espírito esquerdista” das organizações de defesa do partido e levou-as a recuar, não sem muitos combates e muitas mortes. Difícil dizer qual seria o resultado se os combates continuassem. Difícil acreditar na possibilidade de evitar a vitória nazista, atuando num cenário favorável de crise, insegurança, medo.
Claro, a lembrança de Marx é sempre própria: a história não se repete. Numa ocasião, tragédia. Noutra, farsa.
Mas, é importante aproximar procedimentos das classes dominantes sob o capitalismo.
Compreender como atuam os nazifascistas de ontem e de hoje diante de uma sociedade em crise.
Diante de crise grave, classes médias apavoradas são massa de manobra, no caso brasileiro não só as classes médias baixas, a insegurança se dissemina, busca-se um salvador, o salvador ampara-se nas milícias, o reacionarismo se alastra, os argumentos conservadores vão se impondo, e as massas vão sendo tomadas pela esperança no bruto a caminho porque do jeito que está não pode ficar, o salvador promete segurança. No entanto, a sério ele tornará reais as propostas da burguesia, hoje sobretudo a financeira, restringindo no limite, hoje mais que ontem, os direitos do mundo do trabalho, sujeitando o país aos ditames dos EUA, realizando a reforma da Previdência, entregando a Amazônia, degradando o meio ambiente.
Guilherme Boulos, no dia 3 de outubro, falava na necessidade de se investigar as relações das milícias com o presidente da República. Todo o esforço, no entanto, vem sendo feito para evitar a continuidade das investigações capazes de elucidar tais relações. Esforço do Executivo, do Judiciário, do aparato dominante do Legislativo, com a clara conivência das classes dominantes.
A Alemanha é aqui.
A dos anos 1930 do século passado.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
Livros são o diabo. Você está em busca de uma coisa, vem outra. Estava correndo as páginas de História da Internacional Comunista, de Pierre Broué. O título me chama a atenção, página 653: “Eles entregaram a cidadela”. Diminuo o ritmo, leio com carinho. Vou lendo, lendo, e ligo com o Brasil, talvez equivocadamente, e o leitor há de me corrigir se achar estranho, ancorado em Marx, aquela história da tragédia e da farsa. Só comento para dividir minhas apreensões, nesses tempos em que dormir bem é uma conquista, pesadelos constituem parte do cotidiano.
A Alemanha de 1932, sacudida por uma segunda crise econômica, com forte impacto social: 12 milhões de desempregados – 5 milhões oficiais, mesmo número em trabalho parcial, 2 milhões de não-inscritos. Em setembro daquele ano, de cada 100 trabalhadores, 44 estavam desempregados, 22 trabalhavam em tempo parcial. Metade das famílias operárias sobrevivia com salários reduzidos à metade. A maioria dos jovens não tinha trabalho e não tinha perspectiva de encontrá-lo. Os diplomados não tinham maior sorte: em 1931, de 8 mil engenheiros, apenas mil estavam empregados e de 22 mil mestres, somente 900 estavam empregados.
Isso tudo nos lembra alguma coisa?
Mais: a pequena e média burguesias estavam assustadas, humilhadas diante de sua pauperização, sua proletarização acelerada, mundo desabando. Pequenos patrões apavorados: 20 mil pequenas empresas agrícolas leiloadas somente no ano de 1930. A crise recebe o impacto do crack de 1929 nos EUA. E a burguesia passa a exigir do governo medidas rigorosas: evitar o déficit orçamentário, reduzir direitos sociais, reduzir seguro-desemprego, aliviar o bolso dos capitalistas. A burguesia não varia: joga o peso da crise nas costas dos trabalhadores.
Vai anotando, e veja se encontra alguma semelhança com nosso solo sagrado.
E nas crises graves, a burguesia, além de tudo, reclama um salvador, tenha ele a cara horrenda ou não.
Adolf Hitler, com todas suas loucuras – se dizia isso talvez impropriamente – , apareceu como a solução da crise. Cresce exponencialmente, assim como do nada, o Partido Nacional Socialista. Não era do nada: havia a crise econômica, a crise social, as consequências psicológicas dessas duas crises, a sensação de insegurança, tudo a provocar a cobrança de um líder forte, um salvador.
Estamos nos lembrando de alguma coisa?
O progresso do partido nazista, no entanto, além das questões estruturais e do impacto sobre as subjetividades, só foi possível graças a uma organização moderna de campanhas eleitorais, um aparato muito eficaz, a existência de fundos financeiros para as reuniões, atos, comícios, utilização de aviões pelo estado-maior, para garantir grande número de funcionários permanentes, sustentar tropas de choque com membros uniformizados, alimentados, alojados. Essas tropas passaram de algumas dezenas de milhares a 400 mil ao final de 1932. Custavam um dinheiro lerdo. A burguesia contribuía, e contribuiu mais ainda quando Hitler assumiu e conclamou os endinheirados a que metessem a mão em seus bolsos.
A classe dominante alemã compreende perfeitamente a necessidade de uma milícia para a defesa da chamada ordem social. Essa milícia era encarada como uma espécie de garantia contra os riscos revolucionários. Mesmo não estivesse tão segura da moralidade e dos escrúpulos dos componentes da milícia, mesmo sabendo o material humano de que era composta, não vacila em financiá-la porque necessária aos seus objetivos de garantir os seus lucros em meio à crise e de combater a ferro e a fogo os comunistas.
Nos enxergamos aí? A palavra milícia nos diz alguma coisa?
A classe dominante alemã não quer saber onde o Partido Nacional Socialista recruta os integrantes das milícias.
Primeiro, recrutados nas pequenas cidades. Encontra ambiente sobretudo entre estudantes e na pequena burguesia amedrontada com a pauperização, com a proletarização. Wilhelm Reich tem razão, o nazismo foi sempre um movimento de classe média baixa onde quer que tenha surgido. Diz isso no capítulo “A ideologia autoritária da família na psicologia de massas do fascismo”, do livro Psicologia de massas do fascismo. O anticomunismo e o antisemitismo foram ideologias essenciais para o recrutamento. Em 1932, a média de idade dos integrantes do partido gira em torno de 30 anos. É um partido de homens. Mulheres, menos de 8%.
Os quadros nazistas manifestam seu ódio à inteligência, simpatia com o neodarwinismo, são a favor da desigualdade, da xenofobia e defendem um sistema de valores antiemancipatórios, antimoderno.
Tais formulações nos lembram alguma coisa?
O verdadeiro programa dos nazistas não era o propagado ao povo. O real era o proposto à burguesia alemã.
Nos ajudem a tomar o poder e resolveremos a crise: nada mais de vantagens adquiridas, nada de direitos sociais, vamos reduzir tudo ao mínimo para os trabalhadores. E vamos destruir o movimento operário organizado, partidos de esquerda e sindicatos. Diziam isso à burguesia.
Essas coisas soam estranhas para nós?
E foi um vale-tudo: agressões contra militantes mais destacados e mesmo os de base, sabotagens de reuniões políticas com gritos e urros, assaltos às tribunas, golpes e ferimentos sobre os participantes, espécie de guerra civil permanente, criação de um clima de ódio, de medo, de insegurança. Isolar, esmagar os partidos operários, separá-los da massa aterrorizada. E a polícia, na fase preparatória da chegada dos nazistas ao poder, não tomava quaisquer medidas contra as milícias, contra as tropas de choque.
As milícias foram ocupando território pela implantação dos Sturmlokale, mistura de clubhouse com boteco, equipados com camas e colchões, bases operacionais em fortalezas inimigas, sobretudo em Berlim. Sucediam os comunistas nos lugares tradicionalmente ocupados por estes, sobretudo em Berlim. Houve combates duros entre os nazistas e os comunistas. Muitas mortes. Os nazistas venceram. Broué atribuiu a derrota a uma posição do Partido Comunista Alemão, o KPD. Uma resolução acusava o “espírito esquerdista” das organizações de defesa do partido e levou-as a recuar, não sem muitos combates e muitas mortes. Difícil dizer qual seria o resultado se os combates continuassem. Difícil acreditar na possibilidade de evitar a vitória nazista, atuando num cenário favorável de crise, insegurança, medo.
Claro, a lembrança de Marx é sempre própria: a história não se repete. Numa ocasião, tragédia. Noutra, farsa.
Mas, é importante aproximar procedimentos das classes dominantes sob o capitalismo.
Compreender como atuam os nazifascistas de ontem e de hoje diante de uma sociedade em crise.
Diante de crise grave, classes médias apavoradas são massa de manobra, no caso brasileiro não só as classes médias baixas, a insegurança se dissemina, busca-se um salvador, o salvador ampara-se nas milícias, o reacionarismo se alastra, os argumentos conservadores vão se impondo, e as massas vão sendo tomadas pela esperança no bruto a caminho porque do jeito que está não pode ficar, o salvador promete segurança. No entanto, a sério ele tornará reais as propostas da burguesia, hoje sobretudo a financeira, restringindo no limite, hoje mais que ontem, os direitos do mundo do trabalho, sujeitando o país aos ditames dos EUA, realizando a reforma da Previdência, entregando a Amazônia, degradando o meio ambiente.
Guilherme Boulos, no dia 3 de outubro, falava na necessidade de se investigar as relações das milícias com o presidente da República. Todo o esforço, no entanto, vem sendo feito para evitar a continuidade das investigações capazes de elucidar tais relações. Esforço do Executivo, do Judiciário, do aparato dominante do Legislativo, com a clara conivência das classes dominantes.
A Alemanha é aqui.
A dos anos 1930 do século passado.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
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