Em um primeiro momento, pareceu que a direita retomaria a iniciativa, e se fosse necessário, passaria por cima das forças sociais que se rebelaram, e surpreendeu o mundo durante o “outubro vermelho” da América Latina. No início de novembro, o governo brasileiro procurou reverter o avanço esquerdista adotando uma posição agressiva e de confronto direto com o novo governo peronista da Argentina. Em seguida interveio, de forma direta e pouco diplomática, no processo de derrubada do presidente boliviano, Evo Morales, que havia acabado de obter 47% dos votos nas eleições presidenciais da Bolívia. A chancelaria brasileira não apenas estimulou o movimento cívico-religioso da extrema-direita de Santa Cruz, como foi a primeira a reconhecer o novo governo instalado pelo golpe cívico-militar e dirigido por uma senadora que só havia obtido 4,5% dos votos nas últimas eleições.
Nesse mesmo período, o governo brasileiro procurou intervir no segundo turno das eleições uruguaias, dando apoio público ao candidato conservador, Lacalle Pou – que o rejeitou imediatamente – e recebendo em Brasília o líder da extrema-direita uruguaia que havia sido derrotado no primeiro turno, mas que apoiou Lacalle Pou no segundo turno.
No balanço total dos eventos de novembro constata-se, no entanto, uma expansão da “onda vermelha” instalada no mês anterior no continente latino-americano. Nessa direção, e por ordem, primeiro houve a libertação do principal líder da esquerda mundial – reconhecido como tal pelo próprio Steve Bannon – o ex-presidente Lula, liberação essa que suplantou, por conta de uma enorme mobilização da opinião pública nacional e internacional, a resistência da direita civil e militar do país.
Em seguida aconteceu o levante popular e indígena da Bolívia, que interrompeu e reverteu o golpe de Estado da direita boliviana e brasileira, impondo ao novo governo instalado a convocação de novas eleições presidenciais com direito à participação de todos os partidos políticos, incluindo o de Evo Morales.
A revolta popular chilena também obteve uma grande vitória com a convocação, pelo Congresso Nacional, de uma Assembléia Constituinte encarregada de escrever uma nova Constituição para o país, enterrando definitivamente o modelo socioeconômico herdado da ditadura do General Pinochet.
Mesmo assim, a população chilena rebelada ainda não abandou as ruas e deve completar dois meses de mobilização quase contínua, com o alargamento progressivo da sua “agenda de reivindicações” e a queda sucessiva do prestígio do presidente Sebastian Piñera, hoje reduzido a 4,6%. Neste momento, a população segue discutindo nas praças públicas, em cada bairro e província, as regras da nova constituinte, prenunciando uma experiência que pode vir a ser revolucionária, de construção de uma constituição nacional e popular, apesar de ainda existirem partidos e organizações sociais que seguem exigindo um avanço ainda maior do que o que já foi logrado.
No caso do Equador, o país que se transformou no estopim das revoltas de outubro, o movimento indígena e popular obrigou o governo de Lenín Moreno a recuar do seu programa de reformas e medidas impostas pelo FMI, e aceitar uma “mesa de negociações” que está discutindo medidas e políticas alternativas junto com uma agenda ampla de reivindicações plurinacionais, ecológicas e feministas.
O mais surpreendente foi o que aconteceu na Colômbia, o país que vem sendo há muitos anos o baluarte da direita latino-americana e é hoje o principal aliado dos Estados Unidos, do presidente Donald Trump, e do Brasil do capitão Bolsonaro, no seu projeto conjunto de derrubada do governo venezuelano e de liquidação dos seus aliados “bolivarianos”. Depois da vitória eleitoral da esquerda, e da oposição em geral, em várias cidades importantes da Colômbia, nas eleições do mês de outubro, a convocação de uma greve geral em todo o país, no dia 21 de novembro, deslanchou uma onda nacional de mobilizações e protestos ainda em curso contra as políticas e reformas neoliberais do presidente Ivan Duque, cada vez mais acuado e desprestigiado.
A agenda proposta pelos movimentos populares varia em cada um desses países, mas todas elas têm um ponto em comum: a rejeição das políticas e reformas neoliberais, e um inconformismo radical em relação às suas consequências sociais dramáticas – experimentadas diversas vezes no decorrer da história da América Latina –, que acabaram derrubando o “modelo ideal” chileno. Ante essa contestação quase unânime, duas coisas chamam a atenção: (a) a paralisia ou impotência das elites liberais e conservadoras do Continente, que parecem acuadas e sem nenhuma ideia ou proposta nova, a não ser a reiteração da velha cantilena de austeridade fiscal e defesa milagrosa das privatizações, pauta que vêm fracassando por todos os lados; (b) a relativa ausência ou distanciamento dos Estados Unidos frente ao avanço da “revolta latina”. Participaram ativamente do golpe boliviano, mas com uma equipe de terceiro time do Departamento de Estado, sem contar com o entusiasmo que esse Departamento dedicou, por exemplo, à “operação Bolsonaro” no Brasil. Esse distanciamento americano tornou mais visível o amadorismo e a incompetência da nova política externa brasileira, conduzida pelo chanceler bíblico.
Para compreender melhor esse “déficit de atenção” americano, é importante observar alguns acontecimentos e desdobramentos internacionais dos dois últimos meses, que se encontram ainda em pleno curso. É óbvio que não existe uma relação de causalidade necessária entre esses acontecimentos, mas com certeza existe uma grande “afinidade eletiva” entre o que está passando na América Latina e a intensificação da luta interna dentro do establishment norte-americano, que alcançou um novo patamar com a abertura do processo de impeachment contra o presidente Donald Trump, envolvendo diretamente sua política externa.
Tudo indica que esse conflito adquiriu outro patamar de violência depois que Trump demitiu John Bolton, seu Conselheiro de Segurança Nacional. Esta demissão parece ter provocado uma inusitada convergência entre a ala mais belicista do Partido Republicano e do “deep state” norte-americano e um grupo expressivo de congressistas do Partido Democrático, responsável pela decisão de julgar o presidente Trump.
É pouco provável que o impeachment se concretize, mas seu processo deverá se transformar num campo de batalha política e eleitoral até as eleições presidenciais de 2020. Além disto, com o afastamento de Bolton e a intimação imediata para depor do Secretário de Estado, Mike Pompeo, desmontou-se a dupla – extremamente agressiva – que junto com o vice-presidente Mike Pence, foi responsável pela radicalização religiosa da política externa americana nos últimos dois anos.
Rompeu-se assim também a linha de comando da extrema-direita latino-americana, e talvez tenha sido isto que deixou a descoberto seus operadores brasileiros de Curitiba e Porto Alegre, na hora em que foram desmascarados pelo site The Intercept, deixando também sem a devida cobertura o pupilo idiota que ajudaram a instalar no Ministério das Relações Exteriores brasileiras. Não se pode esquecer que Mike Pompeo teve papel decisivo na “trapalhada diplomática”’ da Ucrânia que deu origem e motivo ao processo de impeachment. Por isso, as declarações e ameaças do atual chefe do Departamento de Estado dos EUA dispõem de credibilidade e eficácia cada dia menor, pelo menos até novembro de 2020.
Esse, no entanto, não constitui o único motivo da luta que divide a elite norte-americana, em processo de sua briga interna acirrada. A causa decisiva dessa divisão interna reside no fracasso da política americana de contenção da China e da Rússia. Os EUA não estão conseguindo deter nem curvar a expansão mundial da China e o acelerado avanço tecnológico-militar da Rússia.
Essas duas forças expansivas já desembarcaram na América Latina, modificando os termos e a eficácia da famosa Doutrina Monroe, formulada em 1822. Isso pôde ser verificado recentemente com o posicionamento russo frente à crise boliviana e, sobretudo, com a ajuda chinesa para “salvar” os dois últimos leilões, da “cessão onerosa”, na Bacia de Campos, e da “partilha”, na Bacia de Santos, provavelmente um esforço no sentido de viabilizar as próximas privatizações anunciadas pelo ministro Paulo Guedes. Tudo isso, a despeito e por cima das bravatas “judaico-cristãs” do chanceler.
Não é necessário repetir que não existe uma única causa, ou alguma causa necessária, que explique a “revolta latina” iniciado no início de outubro. Mas não há dúvida de que esta divisão americana, junto com a mudança da geopolítica mundial, tem contribuído decisivamente para a fragilização das forças conservadoras na América Latina. Tem contribuído também para a acelerada desintegração do atual governo brasileiro e a perda de sua proeminência dentro do continente latino-americano, com a possibilidade de que o Brasil se transforme brevemente num pária continental.
Por tudo isto, concluindo, quando se olha para frente,é possível prever algumas tendências, apesar da densa neblina que encobre o futuro nesse momento da nossa história:
(2) A divisão interna norte-americana deve prosseguir e conflito aumentar, apesar do fato de que os grupos em disputa compartilharem o mesmo objetivo, em última instância, preservar e expandir o poder global dos Estados Unidos. Mas os EUA encontraram uma barreira intransponível e já não conseguem mais deter o poder que alcançaram depois do fim da Guerra Fria.
(3) Por isso mesmo, os EUA se voltaram para o “hemisfério ocidental com um afã de posse redobrado. Mas, mesmo na América Latina estão se deparando com uma nova realidade, e já não conseguem sustentar a sua posição de poder incontestável.
(4) Por conseguinte, se torna cada dia mais difícil impor à população local os custos sociais gigantescos da estratégia econômica neoliberal que apóiam e tentam impor à sua periferia latino-americana. Trata-se de uma estratégia incompatível com a ideia de justiça e igualdade social, e que é literalmente inaplicável em países com maior densidade demográfica, maior extensão territorial e complexidade socioeconômica. Constitui uma espécie de “círculo quadrado”.
Por fim, apesar disso, o resultado do caminho alternativo proposto pelas forças oposicionistas permanece um enigma. Não se trata de uma questão técnica, envolvendo políticas econômicas. O problema reside na “assimetria de poder”. Afinal, mesmo diante de mobilizações, os EUA e o capital financeiro internacional mantêm seu poder de vetar, bloquear ou estrangular economias periféricas, impedindo a implantação de estratégias de desenvolvimento alternativas e soberanas, fora da camisa de força neoliberal, atendendo às reivindicações dessa grande revolta latino-americana.
* José Luís Fiori é professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes, 2018).
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