Por Glauco Faria, na Rede Brasil Atual:
Quando Bernie Sanders se lançou na corrida pela candidatura do Partido Democrata à presidência dos EUA, em 2016, poucos levaram a sério. No entanto, já na primeira das disputas daquele ano, em Iowa, o senador de Vermont se mostrou competitivo, ficando pouco atrás de Hillary Clinton.
Ali, a luz amarela acendeu para a cúpula da legenda. Se antes ele era visto apenas com menosprezo ou relativa antipatia pelos altos dirigentes, o quadro agora era outro. E o Comitê Nacional, que deveria ser neutro na competição, não hesitou em interferir no jogo.
Nas últimas semanas das prévias, o site WikiLeaks divulgou o que muitos já sabiam: Sanders era sabotado pela cúpula da legenda. A ex-comentarista da CNN, vice e posteriormente presidenta do Comitê, Donna Brazile, havia informado a campanha de Hillary a respeito de uma pergunta que seria feita a ela em um evento da emissora em março.
Antes, em janeiro, encaminhou um e-mail à equipe da ex-secretária de Estado revelando o planejamento de Sanders para conquistar votos junto à população negra.
Em 2017, a própria Brazile admitiu que a postura de Hillary Clinton ao transferir US$ 10 milhões ao partido, que tinha dívidas de US$ 2 milhões, antes da campanha, havia sido algo duvidoso. “O acordo de financiamento com Hillary For America [a campanha] e Hillary Victory Fund [instrumento de recolha de fundos em conjunto com o Comitê Nacional Democrata] não era ilegal, mas com certeza não foi ético. Se a luta tivesse sido justa, uma campanha não teria controle do partido antes que os eleitores decidissem qual dos candidatos queriam”, apontou.
Em 2020, no início da corrida pela indicação da legenda, o caucus de Iowa já levantou sérias dúvidas sobre a lisura do pleito. Mais uma vez a cúpula da legenda se mostra refratária à candidatura de Sanders, que tem sofrido nas últimas semanas ataques seguidos de sua ex-adversária Hillary Clinton, porta-voz de boa parte dos dirigentes e de outros interesses. É a reprise de um filme que terminou, em 2016, com a eleição de Donald Trump.
A resistência ao nome de Sanders e as táticas usadas para minar sua postulação são sintomas evidentes da crise de representatividade política vivida não somente nos Estados Unidos, mas em diversas outras partes do mundo. A cúpula do Partido Democrata demonstra pouco ou nenhum interesse por um processo minimamente democrático e tal desinteresse e menosprezo é percebido pelo cidadão comum, revelando a opção da legenda pela autofagia.
Frustração com o sistema e o Occupy Wall Street
O mal-estar em relação ao funcionamento da democracia em todo o mundo é notório e ficou mais claro em um relatório divulgado, em janeiro último, pelo Centro para o Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge. Ao compilar dados de 154 países. O estudo concluindo que, em 2019, foi registrado o “mais alto nível de descontentamento democrático” desde 1995. Desde então, o índice dos “insatisfeitos” cresceu de 47,9% para 57,5%.
Muitos intelectuais já alertavam para o esgotamento de um modelo consagrado em diversos países e que contempla, basicamente, o direito ao voto como um dos principais pilares que fundamentaria uma sociedade dita democrática. Por motivos reais – como a brutal interferência do poder econômico e regras vigentes em países como os próprios EUA, onde eleitores mais pobres de diversos locais têm dificuldades para efetivar registros que garantam o direito ao voto, e outras justificativas menos plausíveis, exploradas pela extrema-direita – a disputa eleitoral ganhou ares de um jogo com cartas marcadas, no qual o cidadão tem pouca margem de escolha.
Alimentada pelo poder econômico-financeiro, e o alimentando uma vez conquistados os espaços de poder institucional, a máquina eleitoral se distanciou das aspirações da maior parte da sociedade, tirando progressivamente a voz de quem já quase não a tinha. Nos Estados Unidos, em 2011, a eclosão do Occupy Wall Street, movimento no qual se questionava o poder do 1% que determinava o destino da nação, foi ilustrativo dessa frustração.
Naquele momento, vinha à tona parte da pauta invisibilizada e já defendida por Sanders anteriormente, agora com mais força. “Precisamos desesperadamente que os trabalhadores venham junto para enfrentar Wall Street. Os americanos estão dizendo que ‘já deu’ (‘enough is enough’). Precisamos reconstruir a classe média neste país e vocês (o 1%) não podem ter tudo”, dizia ele ao saudar o evento.
A grande visibilidade do movimento “mudou o assunto” da cena política e a mídia corporativa teve que tocar em temas como a extrema desigualdade e a concentração econômica, com o meio acadêmico também voltando sua atenção para questões negligenciadas. Sanders ganhou relevância ao adotar como cerne a denúncia dos privilégios e interesses do chamado 1% em sua campanha à presidência em 2016, demonstrando a força da mensagem cinco anos após o Occupy.
A própria forma de fazer campanha era parte do enfrentamento. Ao recusar o dinheiro dos chamados Super-PACs, comitês formados para arrecadar recursos junto aos grandes financiadores, o senador conseguiu produzir mais engajamento de seus apoiadores e contestar o desequilíbrio evidente entre a elite bilionária e o restante da população.
A adesão à ideia foi tamanha que o pré-candidato foi líder em arrecadação de recursos em 2019, com 1,4 milhão de pessoas que contribuíram para sua campanha. São doadores que realizam contribuições periódicas, em média 18 dólares por pessoa.
Quem se importa com a democracia?
O Occupy veio em um período no qual outros países também contavam com movimentos com pautas similares. Na Espanha, os chamados “Indignados” também são responsáveis pela institucionalização de pautas presentes na mobilização por meio da formação do Podemos.
Em outros países, forças que lutam pelo aprimoramento do sistema político e da democracia não tiveram o mesmo êxito e a insatisfação resultou na ascensão de lideranças extremistas que fomentam o ódio e, no campo econômico, preservam os interesses dos bilionários.
Nos próprios Estados Unidos a contradição é evidente: Donald Trump se elegeu como um outsider em uma posição confortável do ponto de vista retórico. Não era “mais um”, como aqueles do establishment político do bipartidarismo estadunidense, condição que lhe permitiu, aliás, ir de um para outro partido sem grandes problemas.
Mas se era alguém “de fora” dessa arena desgastada, foi também o respiro para que a frustração da população não resultasse em uma alternativa contestatória em relação à forma de se fazer política e ao sistema econômico que sustentava esse modus operandi. Trump, assim como Bolsonaro no Brasil e outros, era a aparente mudança que preservaria tudo como sempre para a alta-roda.
Mas, além de Trump, outras forças se levantaram. Logo em sua posse, em 2017, os Estados Unidos assistiram às maiores manifestações populares desde aquelas realizadas contra a Guerra do Vietnã em oposição ao ideário do novo presidente. Nas midterms, eleições de meio de mandato, lideranças, como Alessandria Ocasio-Cortez e outras deputadas representando segmentos excluídos do ponto de vista institucional, chegaram ao Congresso estadunidense com o apoio de movimentos que encarnavam os ideais de renovação política.
Quando se fala em “renovação”, neste caso, não se trata somente de um recurso discursivo, mas da adoção de iniciativas que englobam desde mecanismos de financiamento que excluam grandes doações, passando pelo diálogo constante com associações e coletivos e horizontalidade de fato na construção de propostas.
Sanders faz parte desse movimento e boa parte de seus apoiadores se baseia genuinamente no slogan de sua campanha: “Não eu, nós”. São pessoas organizadas em movimentos que vão além da militância em períodos eleitorais, resgatando o sentido original da política, de participação. E talvez aí resida o problema para a cúpula do Partido Democrata.
Quando trabalham de forma explícita contra a candidatura de Sanders, os dirigentes da legenda sugerem que talvez seja melhor perder para Trump do que fomentar um movimento que tenha a capacidade de modificar as próprias estruturas do partido e do sistema político-econômico do país. O problema não são apenas as propostas da campanha do senador de Vermont, mas o que ele pode representar em termos de arejamento verdadeiramente democrático, trazendo para o termo desgastado um significado que supere o mero direito a voto.
No Brasil, é possível ver que parte da elite partidária se importa pouco com os fundamentos da democracia formal e trabalha contra qualquer tentativa de expansão dos horizontes da participação direta, do associativismo ou da igualdade de condições dentro das estruturas partidárias e de acesso a recursos de campanha nas eleições. O mesmo comportamento se reproduz entre a elite econômico-financeira, que tolera e/ou colabora com um governo de índole autoritária contanto que seus ganhos sejam preservados ou ampliados. Não à toa, são os mesmos que em diversas ocasiões colaboraram com regimes de exceção. E não hesitarão em fazê-lo de novo.
E pela mesma razão estamentos como os do Partido Democrata dos Estados Unidos temem qualquer iniciativa que busque mudar as regras do jogo. Para eles, é preciso circunscrever a participação, mantendo as aparências, e sem possibilidade de mudanças de fundo.
Neste ponto, o que está em disputa na candidatura de Bernie Sanders são alguns conceitos caros. De um lado, o cenário mostra a necessidade de se batalhar ativamente no campo político o tempo todo, não somente em períodos eleitorais, como muitos acabaram se habituando. É justamente fora desses períodos que existe a possibilidade maior de transformar a correlação de forças. De outro, é necessário ter em vista que nenhuma mudança efetiva virá sem uma resistência grande daqueles que fingem se importar com princípios democráticos, mas que os tratam como mero escudo quando lhes convém.
As eleições nos Estados Unidos já são um ponto de virada para os defensores da luta por uma democracia de fato, pois trazem exemplos de organização e engajamento que podem ser replicados, respeitados os contextos, em outros lugares. Resta saber com que velocidade as transformações virão.
O Occupy veio em um período no qual outros países também contavam com movimentos com pautas similares. Na Espanha, os chamados “Indignados” também são responsáveis pela institucionalização de pautas presentes na mobilização por meio da formação do Podemos.
Em outros países, forças que lutam pelo aprimoramento do sistema político e da democracia não tiveram o mesmo êxito e a insatisfação resultou na ascensão de lideranças extremistas que fomentam o ódio e, no campo econômico, preservam os interesses dos bilionários.
Nos próprios Estados Unidos a contradição é evidente: Donald Trump se elegeu como um outsider em uma posição confortável do ponto de vista retórico. Não era “mais um”, como aqueles do establishment político do bipartidarismo estadunidense, condição que lhe permitiu, aliás, ir de um para outro partido sem grandes problemas.
Mas se era alguém “de fora” dessa arena desgastada, foi também o respiro para que a frustração da população não resultasse em uma alternativa contestatória em relação à forma de se fazer política e ao sistema econômico que sustentava esse modus operandi. Trump, assim como Bolsonaro no Brasil e outros, era a aparente mudança que preservaria tudo como sempre para a alta-roda.
Mas, além de Trump, outras forças se levantaram. Logo em sua posse, em 2017, os Estados Unidos assistiram às maiores manifestações populares desde aquelas realizadas contra a Guerra do Vietnã em oposição ao ideário do novo presidente. Nas midterms, eleições de meio de mandato, lideranças, como Alessandria Ocasio-Cortez e outras deputadas representando segmentos excluídos do ponto de vista institucional, chegaram ao Congresso estadunidense com o apoio de movimentos que encarnavam os ideais de renovação política.
Quando se fala em “renovação”, neste caso, não se trata somente de um recurso discursivo, mas da adoção de iniciativas que englobam desde mecanismos de financiamento que excluam grandes doações, passando pelo diálogo constante com associações e coletivos e horizontalidade de fato na construção de propostas.
Sanders faz parte desse movimento e boa parte de seus apoiadores se baseia genuinamente no slogan de sua campanha: “Não eu, nós”. São pessoas organizadas em movimentos que vão além da militância em períodos eleitorais, resgatando o sentido original da política, de participação. E talvez aí resida o problema para a cúpula do Partido Democrata.
Quando trabalham de forma explícita contra a candidatura de Sanders, os dirigentes da legenda sugerem que talvez seja melhor perder para Trump do que fomentar um movimento que tenha a capacidade de modificar as próprias estruturas do partido e do sistema político-econômico do país. O problema não são apenas as propostas da campanha do senador de Vermont, mas o que ele pode representar em termos de arejamento verdadeiramente democrático, trazendo para o termo desgastado um significado que supere o mero direito a voto.
No Brasil, é possível ver que parte da elite partidária se importa pouco com os fundamentos da democracia formal e trabalha contra qualquer tentativa de expansão dos horizontes da participação direta, do associativismo ou da igualdade de condições dentro das estruturas partidárias e de acesso a recursos de campanha nas eleições. O mesmo comportamento se reproduz entre a elite econômico-financeira, que tolera e/ou colabora com um governo de índole autoritária contanto que seus ganhos sejam preservados ou ampliados. Não à toa, são os mesmos que em diversas ocasiões colaboraram com regimes de exceção. E não hesitarão em fazê-lo de novo.
E pela mesma razão estamentos como os do Partido Democrata dos Estados Unidos temem qualquer iniciativa que busque mudar as regras do jogo. Para eles, é preciso circunscrever a participação, mantendo as aparências, e sem possibilidade de mudanças de fundo.
Neste ponto, o que está em disputa na candidatura de Bernie Sanders são alguns conceitos caros. De um lado, o cenário mostra a necessidade de se batalhar ativamente no campo político o tempo todo, não somente em períodos eleitorais, como muitos acabaram se habituando. É justamente fora desses períodos que existe a possibilidade maior de transformar a correlação de forças. De outro, é necessário ter em vista que nenhuma mudança efetiva virá sem uma resistência grande daqueles que fingem se importar com princípios democráticos, mas que os tratam como mero escudo quando lhes convém.
As eleições nos Estados Unidos já são um ponto de virada para os defensores da luta por uma democracia de fato, pois trazem exemplos de organização e engajamento que podem ser replicados, respeitados os contextos, em outros lugares. Resta saber com que velocidade as transformações virão.
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