Se a questão de fundo não fosse política, na forma do apoio disfarçado da mídia a Bolsonaro, seria recomendável que editores, repórteres e redatores do cartel da mídia deixassem de maltratar o vernáculo usando de forma flagrantemente inapropriada a palavra “polêmica”.
Vamos ao dicionário. Polêmica: “Discussão, disputa em torno de questão que suscita muitas divergências; controvérsia.”
Esse substantivo feminino se transformou, porém, na era de trevas bolsonarista, em uma espécie de guarda-chuva usado pela imprensa para abrandar e naturalizar as agressões do governo neofascista à Constituição e ao meio ambiente.
Também vem sendo utilizado com frequência para amortecer os crimes em série de Bolsonaro contra a saúde pública e suas mentiras doentias, dentre outras incontáveis barbaridades protagonizadas por ele e seus auxiliares.
Chega a ser constrangedor. Repare quantas vezes a palavra “polêmica” é repetida nos telejornais, nas emissoras de rádio, nos sites dos veículos de comunicação e nas matérias da mídia impressa.
O truque dos barões da mídia para seguirem apoiando o projeto econômico de destruição do país, ao mesmo tempo em que fingem estar incomodados com os maus modos de Bolsonaro, é simples: se tudo é polêmico, tudo é republicano, pois fomenta o debate próprio das democracias.
A profusão de exemplos deste sabujismo não caberia nem em dez artigos. Cito apenas alguns:
- Bolsonaro ameaça o Congresso Nacional e o STF, convocando, incentivando e participando de atos em defesa do garroteamento e do fechamento das instituições. Mas seu grito golpista “acabou, porra!” é visto apenas como uma manifestação “polêmica” do presidente da República.
- Combater o isolamento social durante a pandemia de Covid-19, desafiar a ciência, promover aglomerações, sabotar a atuação do Ministério da Saúde, debochar dos mortos e seus familiares, fazer propaganda de remédios sem eficácia e trabalhar contra as vacinas não são denunciados pela imprensa como o que são: crimes contra a humanidade e genocídio. Não são raras as notícias que se limitam a identificar nesses casos um comportamento “polêmico” do chefe de Estado e de governo.
- O Pantanal arde em chamas. A Amazônia idem. O Inpe, o Painel do Clima da ONU e cientistas conceituados alertam que o recorde em muitos anos do desmatamento e das queimadas causa a savanização dos biomas, comprometendo o futuro do planeta. Em vez de exigir que Bolsonaro e Salles paguem por seus crimes ambientais, a mídia opta por edulcorar assunto desta importância, preferindo destacar a “política ambiental polêmica do governo.”
- Para o ministro Salles, a obra de devastação completa do meio ambiente, escancarando o caminho para o agronegócio predador, os madeireiros e garimpeiros ilegais requer “passar a boiada” na legislação, liquidando com os mecanismos institucionais de proteção. É só pesquisar: no dia seguinte à famigerada reunião ministerial de 22 de abril, quando Salles confessou seus planos macabros, a mídia abriu manchetes para a fala “polêmica” do ministro.
- Para a imprensa, não há uma ofensiva do governo contra os artistas e as artes, coisa típica, aliás, dos governos totalitários. O problema se limita à passagem “polêmica” de Regina Duarte pela Secretaria Nacional de Cultura e à gestão igualmente “polêmica” do secretário atual, Mário Frias.
- Junto com os EUA e meia dúzia de governos obscurantistas ao redor do mundo, a diplomacia brasileira comandada por Ernesto Araújo tem votado no ONU contra direitos humanos e civilizatórios, em geral tendo como alvos as mulheres, os negros, refugiados e LGBTs. Contudo, nunca se leu na imprensa que isso cobre a nação de vergonha. Trata-se somente da consequência da gestão “polêmica” de Araújo à frente do Itamaraty.
- Nem mesmo um “capitão do mato” como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, merece uma definição à altura de suas investidas contra a população negra. Para vários jornalistas da mídia hegemônica, o banimento de Benedita da Silva e Marina Silva da galeria das personalidades negras da instituição tem a ver com as posições “polêmicas” de Camargo.
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