domingo, 6 de fevereiro de 2022

Preconceito que maltrata e mata

Por Cida Pedrosa, no jornal Brasil de Fato:


Um relatório apresentado na última semana de janeiro pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) confirmou que, apesar dos avanços, o Brasil ainda é o país mais perigoso do mundo para uma pessoa trans viver. Foram 140 homicídios em 2021, mantendo a triste marca de país que mais mata essas pessoas no mundo.

E o mais chocante é que essa barbaridade é motivada por puro preconceito. Diferentemente do que ocorre em casos de violência doméstica contra mulheres, quando os agressores geralmente são os namorados ou companheiros, 73% dos criminosos não tinham qualquer relação com a vítima.

O que mais chama a atenção é a brutalidade que caracteriza esses crimes. Pessoas trans geralmente são vítimas de tortura e mortes muito violentas, deixando evidente o ódio e repulsa que o criminoso sente por sua vítima, como se a simples existência dela fosse uma ofensa, mesmo quando essa vítima é pouco mais que uma criança. A morte brutal da adolescente Keron Ravacha, de apenas 13 anos, morta a socos, pauladas e facadas em Camocim, interior do Ceará, é uma prova disso.

Muitas vezes, a violência já começa em casa. A rejeição que sofrem empurra muitas meninas para as ruas, tornando-as alvo fácil para o crime. O levantamento da Antra mostra que 78% das mulheres trans e travestis assassinadas em 2021 eram profissionais do sexo.

A discriminação e o preconceito contra as pessoas trans também está presente no poderoso sistema de exclusão que praticamente impede que tenham uma carreira profissional. A começar pela escola, onde sofrem bullyng e, quase sempre, acabam abandonando os estudos. Sem qualificação, o emprego formal transforma-se num sonho distante. Dados do Projeto Arco-Íris/Affro Reggae apontam que apenas 0,02% das pessoas trans estão na universidade e 72% não possuem nem o ensino médio.

No Recife, a Câmara Municipal concedeu esta semana, pela primeira vez em sua história, o título de cidadania a uma mulher trans, Chopelly dos Santos, que luta há mais de uma década para assegurar direitos de travestis e transexuais. Aprovar essa proposta não foi tarefa fácil. Exigiu intensa articulação minha e do companheiro Hélio da Guabiraba para superar a barreira posta por evangélicos ultraconservadores, que se posicionaram firmemente contra o projeto.

Esse caso, que mostra como a transfobia está enraizada em nossas instituições, está longe de ser um fato isolado. Na Câmara dos Deputados tramita o Projeto de Lei 2746/21, que visa alterar a palavra “gênero” para “sexo” na Lei Maria da Penha para que os direitos previstos na lei sejam concedidos, exclusivamente, a mulheres cisgênero. A intenção mais que evidente é excluir as pessoas trans e travestis da rede de proteção, relegando-as à própria sorte.

Nesse estado de coisas, a Semana da Visibilidade Trans precisa deixar de ser um evento restrito à transexuais e travestis e passar a ser uma luta de todos pelo direito à cidadania plena. Precisamos batalhar para ampliar o acesso dessas pessoas à saúde, educação e ao emprego. Sem políticas públicas e sem o repúdio da sociedade a toda essa violência, o Brasil não vai superar esse triste posto de carrasco de travestis e transexuais, um título que nos desonra e mais nos aproxima da Idade Média que do terceiro milênio.

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