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Essa é uma criatura mal-assombrada que não se cansa de jogar suas energias negativas e suas forças destruidoras sobre a maioria da população brasileira. Um dos problemas para quem deseja enfrentá-la é que ela possui tentáculos muito longos e perigosos, capazes de lançar para bem longe seus petardos e provocar danos generalizados sobre todos aqueles seres que ousem apresentar alguma discordância com relação às suas ondas avassaladoras.
É preciso reconhecer que, no passado, já foi bem mais difícil a situação daqueles que insistíamos em pensar fora da caixinha e dizíamos que um outro mundo era possível. As décadas de hegemonia absoluta do receituário do Consenso de Washington reservava realmente pouco espaço institucional para a crítica aos fundamentos equivocados do neoliberalismo e da exposição dos estragos causados pela sua implementação mundo afora. Mas a partir da crise econômico-financeira de 2008/9 a situação começou a mudar. Os próprios centros de decisão da política econômica nos países desenvolvidos foram obrigados a ensaiar uma autocrítica a quente, trocando o pneu com o carro ainda em movimento.
Naquele momento, percebeu-se que a única forma de evitar uma globalização da crise, bem como de seus efeitos perversos para a dinâmica econômica local e internacional, seria retomar o protagonismo do Estado na busca de soluções. Assim, os tecnocratas e os formuladores de política econômica foram obrigados a buscar em suas gavetas as propostas consideradas como pura heresia até a antevéspera da eclosão da quebradeira no centro do capitalismo mundializado. A sofisticação tecnológica havia aproximado de forma instantânea as operações transcontinentais no interior do sistema financeiro. O crescimento descontrolado e desregulado do poder do financismo colocava em risco a sobrevivência do próprio sistema comandado pela lógica do capital.
A flexibilização da austeridade
Uma das consequências de todo esse movimento foi a flexibilização das orientações de austeridade fiscalista, uma vez que a urgência e a gravidade do momento exigiam a elevação das despesas públicas em todos os países afetados pela crise. Mal esse novo arcabouço de políticas públicas estava sendo digerido pelo “establishment” do conservadorismo, eis que surge a crise da covid. Pois, novamente, a solução deu-se pelo abandono do sonho liberal do equilíbrio entre as chamadas “livres forças de oferta e demanda” e pela entrada em cena de entes públicos com recursos governamentais para atuar no combate à epidemia e para minorar os efeitos sociais e econômicos derivados da necessária redução do ritmo de atividades.
Porém, o Brasil encontra-se dentre os poucos países em que esse novo consenso ainda resiste em ser aceito e incorporado pelos poderosos do financismo. As elites brasileiras sempre colocaram obstáculos e atrasaram o quanto puderam a introdução em nossas terras das novidades modernizadoras da forma de organização social e econômica verificada no resto do mundo. Assim foi com a questão da propriedade e da concentração fundiária, assim foi com a questão da abolição da escravidão. E assim ainda tem sido com a convivência escandalosa com um regime concentrador de renda e riqueza, em que a grande maioria da população mal consegue sobreviver com índices elevadíssimos de pobreza, miséria e fome.
Na contramão do que se pratica nos países do centro do capitalismo, por aqui as elites ainda se deixam encantar pelos cantos de sereia do financismo e insistem com as teses ultrapassadas de Estado mínimo, privatização máxima e austeridade fiscal extremada. Para tanto, contam com a valorosa colaboração dos grandes meios de comunicação, em seu esforço insano e cotidiano para impedir que alternativas a esse modelo sejam conhecidas pelo grande público. Agarram-se como podem aos pedaços que ainda boiam do casco do transatlântico em naufrágio, mas seguem bradando heroicamente suas odes ao modelo que fracassou a olhos vistos.
A tentativa de controlar Lula
Na conjuntura mais recente, no entanto, pode-se identificar um ponto de virada nessa quase unanimidade das diferentes frações da burguesia em torno de uma liderança fantasmagórica que as encaminha para o pântano. Ah, esse tal de mercado é mesmo um perigo! Trata-se do momento em que não foi possível viabilizar a consolidação política – nem eleitoral – da chamada “terceira via” nas eleições presidenciais de outubro. Os setores que optaram, ainda que tardiamente, por se contrapor à continuidade do projeto de barbárie e destruição representado por Bolsonaro viram-se resignados a apoiar Lula como alternativa para o próximo quadriênio no Palácio do Planalto. Esse movimento pode ser cristalinamente observado na orientação editorial de parte significativa dos grandes conglomerados dos meios de comunicação. Para quem estivesse despertando de uma hibernação de mais de 6 meses seria incompreensível ver o comportamento de órgãos pertencentes a empresas como Globo, Abril, Bandeirantes e outras se envolvendo de forma quase militante pela candidatura da mudança.
Mas o financismo não descansa, por mais adversa que possa lhe parecer a situação. Já que o caminho passava por ser obrigado a engolir Lula, ao menos então que o terceiro mandato do ex presidente estivesse sob controle dos poderosos. E dá-lhe todo tipo de estratégia buscando a limitação da capacidade de ação do próximo presidente. A intenção é forçar a barra para que algum alguém do perfil de Henrique Meirelles ou Pérsio Arida seja o indicado para o comando da economia. A política monetária não é vista como problema para esse pessoal do sistema financeiro, uma vez que Paulo Guedes lhes deixou sob encomenda a herança da independência do Banco Central. Assim graças à Lei Complementar nº 179/2021, Lula será impedido de nomear dirigentes do órgão que estejam afinados com suas diretrizes de governo. O financismo não esconde sua satisfação de saber que todos os diretores escolhidos por Bolsonaro permanecerão mais alguns anos à frente das funções de regulação do sistema financeiro e de estabelecimento da taxa oficial de juros, por exemplo.
Alarmismo fiscal e terrorismo econômico
O outro campo de batalha é o da política fiscal. Lula é sempre criticado pelos “especialistas” dessa grande imprensa a serviço do financismo quando menciona a necessidade de não mais obedecer às regras do teto de gastos. E surgem as pérolas assustadoras, a exemplo das imagens de “Brasil quebrado” e “rombo fiscal”, como ameaças para qualquer ensaio do próximo presidente em não se manter rezando pela cartilha da austeridade cega e burra. Editoriais dos jornalões expõem o desespero de alguns com a possibilidade de Lula conseguir aquilo que eles chamam, apelando para o imaginário popular de forma maldosa e irresponsável, de “licença para gastar”. Na verdade, eles gostariam de ver o próximo governo de pés e mãos amarrados, impedido pela manutenção de regras draconianas na conduta fiscal, para executar o programa de governo para o qual foi legitimado pela maioria da população nas urnas.
Alarmismo, chantagem e ameaças. Estes são os ingredientes daquilo que a economista Leda Paulani chama de “terrorismo econômico”. Felizmente um conjunto cada vez maior de analistas, economistas e professores vimos denunciando essa prática criminosa, que resulta da aliança entre setores do financismo e dos grandes meios de comunicação. Na verdade, não se trata tão somente de fazer a defesa legítima de seus interesses, mas de estimular a disseminação de um verdadeiro terraplanismo no domínio da economia. Além de não oferecer ao grande público o espaço editorial para o contraponto, a maior parte da grande imprensa cria uma realidade paralela, onde a implementação de políticas públicas para dar conta eliminação da miséria e da pobreza, por exemplo, são sempre objeto de críticas por desobedecer aos rigores austericidas do teto de gastos.
Abandonar o dogma fiscalista
Já, vimos um filme semelhante a esse no processo eleitoral de 2002 e na transição para o primeiro governo Lula. Ao contrário do que havia sido solenemente anunciado a cada dia, ao longo de meses, o Brasil não “quebrou” quando o ex metalúrgico assumiu a Presidência da República. Ao contrário da catástrofe previamente alardeada, o Brasil registrou um período de crescimento econômico importante entre 2003 e 2010, apresentando a criação de milhões de novos empregos formais como nunca antes, observando elevações reais no salário mínimo e alcançando expressiva folga nas contas externas.
Mas, para esse pessoal, a defesa ideológica de um modelo social excludente parece ser mais importante do que o reconhecimento de que o Brasil pode se permitir optar por uma via que aponta para a redução da miséria e da concentração social e econômica. A regra é o recurso ao espantalho do caos e a prática da especulação, travestida de “sensibilidade”, manifestada pelo chamado mercado sempre que Lula menciona a necessidade de flexibilizar a rigidez do teto de gastos para atender à emergência da situação atual. A dupla Bolsonaro & Guedes promoveu esse tipo de gambiarra no limite das despesas do orçamento por diversas vezes ao longo dos últimos anos, mas não se observou nenhum incômodo da parte dos órgãos de imprensa naqueles momentos.
A sociedade organizada precisa manifestar de forma firme suas discordâncias com essa ameaça permanente do sistema financeiro. O próximo governo precisa ter a segurança de que vai contar com o necessário apoio popular sempre que suas decisões de política econômica não se limitarem a agradar aos poderosos. O financismo ameaçador vai continuar espalhando os cenários apocalípticos caso Lula insista em romper com o dogma fiscalista e decida por governar para a maioria da população. Esta opção necessária vai implicar um aumento no nível das despesas governamentais, mas o País tem folga econômica mais do que suficiente para dar conta de tais desafios. Como sempre, o problema é de natureza política.
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