Montes Claros/MG. Foto: Ricardo Stuckert |
A campanha eleitoral de Lula representou de forma bastante fiel o sentimento da maioria da população brasileira quanto ao governo Bolsonaro e sua natureza fascista. Em especial, foi essencial a construção desta ampla frente democrática no segundo turno para impedir a continuidade desta aventura golpista da extrema direita por mais quatro anos em nosso País. Não havia outra liderança política capaz de dar cabo de tal tarefa, aglutinando em torno de sua candidatura o apoio de figuras como Guilherme Boulos e Fernando Henrique Cardoso, Marina Silva e Simone Tebet, José Sarney e Flávio Dino, Armínio Fraga e Luiz Belluzzo, Geraldo Alckmin e Renan Calheiros, Amoedo e Roberto freire, para citar apenas algumas.
As primeiras etapas da longa caminhada têm sido bem exitosas até o presente momento. Foi possível o registro da candidatura junto ao Justiça Eleitoral após o reconhecimento tardio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da injustiça e da ilegalidade cometidas pelo ex juiz Sérgio Moro, para impedir Lula de concorrer em 2018. Em seguida, a formação da chapa “Brasil pela Esperança” com Geraldo Alckmin na vice-presidência e a participação de nove partidos apoiando a iniciativa desde o início. A vitória em 2 de outubro e os riscos envolvidos na disputa do segundo turno despertaram a consciência de forma ampla no interior das diferentes correntes de opinião em nossa sociedade e a confirmação da maioria obtida em 30 de outubro consolidaram alguns desafios e abriram a via para o fim do pesadelo a partir de início janeiro próximo.
No entanto, as dificuldades para Lula apresentar resultados positivos logo no início de seu novo governo continuam presentes, agravadas ainda mais pela postura golpista e criminosa do derrotado nas urnas. A construção da equipe do futuro governo é uma tarefa que exige bastante habilidade e capacidade de articulação, atributos que não faltam a Lula, felizmente. Como ele mesmo tem afirmado, seu time deverá ser o retrato das forças e personalidades que estiveram com ele para viabilizar a vitória eleitoral. A elaboração dos principais pontos de seu programa de governo já vem sendo preparada e a coordenação deverá contar, neste terceiro mandato, com um olhar e presença mais próximos por parte do Chefe do Executivo. O quadro a ser enfrentado pelo futuro governo será, com toda a certeza, bem mais crítico do que aquele vivido durante a transição entre 2002 e 2003.
Vários desafios já foram superados
Talvez um dos maiores desafios seja mesmo, como costuma acontecer, a questão do nó da economia. O Brasil está enfrentando uma crise de múltiplas dimensões e a busca de soluções exige algum tipo de construção de consenso a respeito do diagnóstico e dos instrumentos a serem utilizados para tanto. Ocorre que a necessidade da ampliação da frente democrática traz consigo a pluralidade de visões a respeito do debate econômico e das possíveis soluções. Economistas de diversas tendências estão com Lula até o momento, mas percebe-se o aflorar de disputas internas no que diz respeito aos rumos a serem adorados pelo futuro governo. É compreensível que lideranças mais comprometidas com uma abordagem conservadora e ortodoxa do momento atual não se sintam à vontade com a presença de outras mais próximas do campo progressista e desenvolvimentistas. E vice-versa, claro. Caberá a Lula, como ele mesmo tem dito na imagem repetida em seus pronunciamentos, atuar como o regente dessa grande orquestra.
Porém, algumas questões necessitam de uma decisão. Por exemplo, no quesito tão sensível quanto a austeridade fiscal e o teto de gastos. Lula sabe que a urgência da reconstrução nacional e a emergência das questões como a miséria e a fome exigem um volume expressivo de despesas orçamentárias extraordinárias. Como esse tipo de preocupação não fazia parte do menu de Bolsonaro e Paulo Guedes, o orçamento previsto para 2023 não contempla o volume de recursos necessários para iniciar o enfrentamento das premências das tarefas do futuro governo. Isso significa que Lula não terá como se manter fiel a qualquer compromisso com geração de superávit primário, como ele chegou a ensaiar em diversos momentos da campanha.
Os primeiros anos desse novo mandato deverão significar uma importante mudança de rota na estratégia de destruição do Estado e de desmonte das políticas públicas, tal como veio sendo levado a cabo desde o “golpeachment” de Dilma Rousseff em 2016, quando a dupla Temer e Meirelles assumiu o comando do governo. Depois de 2019 esse movimento foi ainda mais aprofundado e o esforço para restabelecer, a partir de agora, tudo o que foi destruído será hercúleo. Para tanto, o novo governo vai ser levado a aumentar os gastos e a recuperar o protagonismo do Estado na esfera da economia. Ora, essa estratégia deverá sofrer críticas das correntes mais conservadoras, que desde o início já exigiam algum tipo de compromisso público de Lula com uma agenda que agrade ao sistema financeiro e com o anúncio de nomes com esse tipo de perfil para ocupar cargos chaves nas pastas ligadas à economia.
Recuperação do protagonismo do Estado e dos bancos públicos
A participação dos bancos públicos, a exemplo do Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco da Amazônia (BASA), Banco do Nordeste (BNB) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no desenho e na implementação de políticas de retomada do crescimento e desenvolvimento também será essencial. Ao longo dos últimos 6 anos verificou-se uma redução do espaço e da participação as instituições financeiras federais na concessão de crédito em geral, e em especial para projetos de maior dimensão e prazo mais longo. Recorrendo ao discurso contra um suposto “gigantismo do Estado”, Meirelles e Guedes patrocinaram um severo encolhimento das capacidades estatais, inclusive na oferta de crédito em setores estratégicos. A necessária retomada da utilização de tais instituições também deverá contar com alguma resistência do financismo, que não aceitará facilmente uma eventual volta da concorrência dos bancos federais e nem tampouco o retorno das condições de empréstimo com juros subsidiados.
Existe um amplo consenso dentre as correntes da economia no que diz respeito à importância do chamado “multiplicador de gastos” do setor público como estímulo para acelerar a retomada do crescimento das atividades econômicas de forma geral. No entanto, as elites brasileiras apresentam forte resistência a incorporar essa quase unanimidade em seu cardápio. Não trouxeram para nossa realidade a mudança de atitude que se verificou nos países desenvolvidos e também no interior das organizações multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM). A experiência da crise financeira de 2008/9 e a mais recente da covid em 2020 abriram espaço para uma espécie de flexibilização dos dogmas da austeridade fiscal, ao reconhecerem a importância de se aumentarem as despesas públicas como mecanismo de atenuação dos impactos econômicos e sociais associados à redução do ritmo das atividades. Mas aqui no Brasil essa possibilidade ainda é considerada um grande tabu.
Fim da austeridade fiscal e da reforma trabalhista
Outra frente que vem sendo debatida refere-se à necessidade de revogar aspectos das reformas trabalhistas introduzidas por Temer e Bolsonaro. Lula não se esquivou a esse respeito, lembrando os efeitos sociais e econômicos provocados pela retirada de direitos dos trabalhadores e pela redução de seus rendimentos. A recessão e o elevado desemprego colaboram para diminuir a massa salarial de forma geral, mas esse movimento vem sendo reforçado pela incorporação da precariedade e da informalidade como fenômenos agora tidos como naturais e legais. Assim é necessário eliminar as mudanças mais recentes na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), para que as condições de vida dos assalariados não sejam tratadas como atualmente e para que a demanda aumentada assegure padrões de consumo que estimulem a retomada do crescimento das atividades da economia. Assim por exemplo, ele insiste na retomada imediata da política de ganhos reais no salário mínimo.
Enfim, o novo desafio de Lula é imenso. Apesar de sua preocupação em manter a necessária unidade da ampla frente que construiu para sua vitória, o Presidente eleito tem plena consciência de que determinadas questões do seu plano de governo podem provocar alguma divergência e não terá como agradar a todas as correntes que estão com ele. Algumas diferenças podem ser acomodadas por meio da distribuição de espaços no interior do governo, onde a diversidade de opiniões e agendas deve se ver contemplada. No entanto, outras orientações são mais gerais e sobre elas não existe espaço para contemporizar, a exemplo da austeridade fiscal e da legislação trabalhista.
O Brasil tem urgência para construir 40 anos em 4. O início imediato do trabalho da transição de governo, por mais que tente ser boicotada pelo bolsonarismo, poderá facilitar a tomada de consciência da real situação da administração pública federal. E Lula poderá se valer justamente dessa emergência incontornável para convencer seus aliados mais conservadores a respeito de sua agenda que exige flexibilização no rigor do fiscalismo e recuo no endurecimento recente na legislação do trabalho.
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