quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Tudo joia com o bolsonarismo?

Charge: Amarildo
Por Jair de Souza


Como esquecer que Bolsonaro foi alçado ao cargo de presidente da nação sob uma intensa campanha midiática que o apresentava como um destemido nome advindo de fora da política imbuído de uma ferrenha determinação de pôr fim à medonha roubalheira de dinheiro público até então existente em nosso país? A corrupção, conforme a grande mídia tinha se esmerado em consolidar no imaginário público, era resultado quase que exclusivo das práticas de políticos tradicionais, em especial daqueles vinculados com ideais de esquerda, os tais “populistas”?

Então, independentemente de estar há mais de trinta anos atuando como político profissional do baixo clero parlamentar e de estar envolvido nos mais deploráveis de seus trambiques, Bolsonaro foi reembalado como se fosse a redenção moral do povo brasileiro para se contrapor à bandidagem, que seria simbolizada em primeiro lugar por Lula e pelo PT.

Precisamos recordar que, desde o primeiro dia de seu governo iniciado em 2003, toda as baterias dos meios de comunicação corporativos foram ativadas com o propósito de demonizar a imagem de Lula e transformá-lo no suprassumo do corrupto, ou, para ser ainda mais exato, do ladrão.

A maior dificuldade encontrada para consagrar esse objetivo era a inexistência de provas que pudessem corroborar aquilo que a imprensa capitalista desejava consolidar como verdades absolutas. Mas, não faltaram tentativas com esse propósito: Toda a vida pessoal e financeira de Lula e de seus familiares foi vasculhada em busca de algum vestígio que pudesse incriminá-lo. Infelizmente para os que deslancharam esse processo, não lhes foi possível encontrar nem uma única evidência que deixasse patente o envolvimento de Lula, nem de seus familiares, em qualquer caso de apropriação indevida de recursos.

Em vista dessa impossibilidade, os proprietários de nossos grandes meios corporativos decidiram recorrer aos ensinamentos do principal teórico da propaganda do nazismo hitlerista, ou seja, optaram por colocar em andamento a tese que reza: “Uma mentira repetida mil vezes passa a ser uma verdade”.

Em consequência, o nome de Lula passou a ser associado a todas as falcatruas (reais, imaginárias ou inventadas) noticiadas no país. Qualquer menção ao líder petista no noticiário televisivo de maior audiência no país vinha inevitavelmente acompanhada de imagens de dutos jorrando dinheiro sujo da corrupção. Ou estarei exagerando?

Como é bem sabido pelos adeptos do método goebbeliano de comunicação, a partir do instante em que a consciência social tenha sido assolada pela tese por eles impulsada, quaisquer medidas tomadas em conformidade com a mesma tendem a ser aceitas sem muita resistência pelo público que foi alvo-vítima da dita cuja.

Foi isso o que tornou possível a condenação e prisão de Lula pelo caso do triplex do Guarujá. O processo se iniciou quando a rede Globo divulgou de modo enfático uma história escabrosa de corrupção envolvendo Lula e um certo apartamento no Guarujá que pertenceria a ele e teria recebido reformas de uma grande empreiteira como pagamento por facilitações de negócios indevidos relacionados com a Petrobrás. Por mais estapafúrdia, imbecil e falsa que fosse a tal notícia, ela foi reproduzida intensiva e acriticamente por todos os órgãos dessas corporações midiáticas como sendo uma prova cabal de todo o caráter delinquencial de Lula e seu governo. Como boa parte de nossa população já tinha sido adestrada para assumi-la como a verdade, não haveria grandes convulsões quando a condenação e a prisão de Lula se efetivassem.

Hoje, depois de que, finalmente, a verdade sobre esse caso se tornou conhecida por todos, está mais do que comprovado que Lula foi vítima de uma das mais indecentes farsas já arquitetadas por um conluio midiático-jurídico-parlamentar. Sim, agora, isto já está mais do que claro. Porém, as desgraças sofridas por nosso povo em razão desse crime perpetrado contra a nação vão levar muito tempo para serem sanadas. Nossos meios de comunicação corporativos, quando ousam dizer alguma coisa sobre esse episódio, procuram fazer de conta que nada tiveram a ver com o ocorrido.

Por outro lado, há inúmeras provas documentadas que atestam a imensa roubalheira praticada por aqueles que costumavam ser pintados pela mídia corporativa como paladinos da luta contra a corrupção. Os lavajatistas foram responsáveis pelo desvio de bilhões (repito, bilhões) de reais de recursos públicos. Já os próceres do bolsonarismo, além de sua tradicional prática de rachadinhas, sua vinculação com o milicianismo criminoso, sua gigantesca e inexplicável acumulação patrimonial em imóveis, tiveram sua faceta inteiramente desmascarada com a vinda à tona do descarado esquema de roubo de joias praticado por seu patriarca. Neste momento, não está sendo nada fácil encontrar alguém que se disponha sinceramente a continuar defendendo a honestidade e a altivez moral das lideranças bolsonaristas.

No entanto, aproveitando a oportunidade de que já não resta nenhuma dúvida quanto à desonestidade que caracteriza os comandantes do bolsonarismo, gostaria de fazer uma reflexão: Como avaliaríamos o governo bolsonarista se seus horripilantes casos de roubo e corrupção não tivessem acontecido? Em outras palavras, e se os bolsonaristas fossem honestos?

Por mais que nos pareça estranho, esses casos de roubalheira e desvios no governo bolsonarista estão longe de representar o que de mais negativo aconteceu nesse período. Tanto assim que, ainda que nada disso tivesse sucedido, do ponto de vista das maiorias populares, estaríamos mesmo assim diante de uma das mais nefastas administrações governamentais em toda nossa história. A motivação que me induz a dizer isto está ancorada essencialmente na noção de que os rumos de uma sociedade estratificada em classes antagônicas são definidos sempre através dos embates característicos das lutas de classe.

Logicamente, a corrupção em si nunca é benéfica para nenhuma das classes de uma sociedade. Mas, isto não implica em que com sua eliminação a coisa melhore para todas. O ponto mais importante a observar com respeito a nossos governantes se refere aos interesses classistas com os quais eles estão identificados. O bolsonarismo, por exemplo, está completamente sintonizado com as aspirações das classes dominantes e em nome delas sempre operou. Por isso, admitindo por hipótese que os dirigentes bolsonaristas eram gente honesta, precisamos avaliar quem teria se beneficiado com as decisões políticas por eles tomadas em sua gestão governamental.

É impossível não constatar que as medidas econômicas efetivadas pelo bolsonarismo foram todas elas em detrimento dos interesses das maiorias populares. A autonomia do Banco Central, por exemplo, significou a retirada de um dos principais instrumentos de implementação de política econômica do controle das lideranças nacionais eleitas. Em lugar de seguir as orientações dos representantes escolhidos pelo povo, na prática, o BC passou a atender exclusivamente os desígnios do ínfimo número de bilionários que controlam nosso sistema financeiro.

Podemos falar também sobre as escandalosas privatizações de empresas públicas, como a da Eletrobrás, que transferiram para as mãos de grandes capitalistas privados (estrangeiros e nacionais) aquilo que antes pertencia a todo nosso povo. A esse respeito, o caso da entrega de importantes refinarias da Petrobrás por preços irrisórios foi mais um marco dessa política que visava sempre favorecer a setores poderosos das classes dominantes.

É evidente que se os dirigentes bolsonaristas tivessem operado inteiramente decididos a beneficiar os donos do grande capital sem exigir nada fora do estipulado em lei, estes se mostrariam ainda mais satisfeitos com essa atitude. Mas, para a esmagadora maioria de nossa população, nenhuma diferença real iria ser detectada. As somas de dinheiro público que os bolsonaristas surrupiaram para seus próprios bolsos e contas teriam servido tão somente para engrossar a parcela a ser apropriada pelos representantes diretos do capital, não acarretando nada de positivo para o restante da nação.

Em consequência de tudo o que procuramos deixar evidente nas linhas anteriores, não podemos deixar de entender que a malignidade da gestão bolsonarista extrapola em muito o caráter mafioso de seus mais destacados expoentes. Roubo de joias e apropriação ilegal de recursos significam, sim, uma imoralidade que precisava ser combatida. Mas, é de máxima relevância levar em conta que os danos mais sérios e devastadores foram causados devido à orientação de classe com a qual o bolsonarismo conduziu sua política. As classes dominantes foram sempre privilegiadas. Por isso, sua oposição ao bolsonarismo nunca ocorreu de modo efetivo. Para os setores populares, porém, não só a honestidade pessoal de um dirigente é importante. Também é muito importante saber quais são os interesses de classe com os quais ele está identificado.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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