segunda-feira, 10 de junho de 2024

Europa: o Partido da Guerra perdeu

Por Antonio Martins, no site Outras Palavras

Ao dissolver a Assembleia Nacional e convocar eleições antecipadas no domingo (9/6), logo depois de sofrer derrota política avassaladora, o presidente da França, Emmanuel Macron, deu o tom das manchetes e análises sobre o resultado da disputa pelo Parlamento Europeu. A extrema direita teria obtido, em todo o velho continente, uma grande vitória. O resultado estaria fazendo tremer as instituições. Somado à alta probabilidade de triunfo de Donald Trump nos EUA, em novembro, ele pressagiaria o pior.

Esta análise oculta mais do que revela. O avanço da ultradireita é real. Mas sua causa maior não é uma onda súbita e incompreensível de conservadorismo do eleitorado. Como nos anos 1920 e 30, o avanço do “neo” fascismo deve-se ao fiasco desastroso dos governos que adotaram nos últimos anos políticas ultraliberais. Destacam-se os da França e Alemanha, eixo permanente da União Europeia. Ao embarcarem de armas e bagagens na guerra dos EUA contra a Rússia, eles debilitaram suas economias, agravaram a crise social e ampliaram o descrédito na democracia. O retrocesso, portanto, não é um destino, mas o resultado de políticas reversíveis. Os fatos podem dizer muito também ao Brasil. Porém, a mídia conservadora calará a respeito e apenas parte da esquerda parece atentar para o problema real.

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Os gráficos a seguir – do The Guardian e Le Monde – são um primeiro elemento para compreender o resultado além dos mitos. Ele mostra que as duas principais correntes da ultradireita europeia cresceram de fato – porém, moderadamente. O grupo parlamentar ECR (Conservadores e Reformistas da Europa) que é pró-OTAN e cuja referência principal é a primeira ministra italiana, Giorgia Meloni, conquistou quatro novas cadeiras (+5,8%). Agora tem 73 dos 720 assentos do parlamento, ou 10,1%. A facção Identidade e Democracia (ID), liderada pela francesa Marine Le Pen e contrária à guerra na Ucrânia, cresceu 18,3% e formou uma bancada de 58 parlamentares. A estes somam-se ultradireitistas rejeitados no momento pelos dois blocos (por sua proximidade com o nazismo), em especial a Alternativa para a Alemanha (AfD), que elegeu 15 eurodeputados (tinha 11).

As imagens mostram que as oscilações principais não foram estas – e sim as que puniram os partidos mais favoráveis à guerra e que mais se identificaram com o ataque aos direitos sociais. O Renovação, de Emmanuel Macron, abertamente neoliberal, perdeu 22,5% de sua bancada e se reduziu a 79 parlamentares. Os Verdes, da ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, talvez a política europeia mais belicista, recuaram ainda mais (-27,8%). Os demais blocos mantiveram, grosso modo, as representações anteriores. A centro-direita, que se autodenomina Partido Popular Europeu (EEP) manteve-se dominante, com 185 cadeiras (nove a mais que em 2019). Os social-democratas perderam dois assentos mas mantêm-se como o segundo maior bloco, com 137. A esquerda perdeu 1 e ficou com 36 – mas aí não estão contados os seis da Iniciativa Sarah Wagenknecht (BSW), recém-fundada na Alemanha, outra vitoriosa no pleito (veja nosso texto a seu respeito).

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Mas o cômputo geral dos resultados ainda é insuficiente para identificar o fenômeno mais marcante das eleições. Ele surge quando se examinam os movimentos na França e Alemanha – o núcleo histórico da União Europeia (UE) e os países em que se se produziram os fenômenos mais destacados do pleito. Ambos foram o eixo do alinhamento da UE à guerra dos EUA e da OTAN contra a Rússia, na Ucrânia. A atitude de seus chefes de governo – Emmanuel Macron e Olaf Scholz – foi vista pela mídia internacional como marco da emergência de uma “nova Europa” [Veja, por exemplo, estas matérias (1 2), na revista Economist]. Nos dois casos, os governos sofreram no último domingo derrotas dramáticas.

A adesão de Emmanuel Macron à cruzada para liquidar Putin foi tão completa que ele chegou a falar por duas vezes no envio aberto de soldados franceses à Ucrânia – algo que nem Joe Biden cogitou, em relação aos EUA. A oferta faria parte de um estranho passo da UE em busca de maior presença geopolítica no mundo. Diante das incertezas sobre as eleições norte-americanas, não caberia à Europa buscar paz e estabilidade – mas tornar-se uma espécie de ponta de lança dos interesses do Ocidente diante da Rússia e da China. O presidente francês seguiu o script comme il faut.

Ao mesmo tempo resignou-se às políticas de “austeridade” ditadas pelo Banco Central Europeu. Por isso, os recursos extraordinários destinados à ampliação do orçamento militar resultaram em cortes nos gastos sociais. O efeito mais grave foi a contrarreforma da Previdência. Entre janeiro e abril de 2023, Macron fez tramitar um projeto de lei que retirava diversos direitos relacionados à Seguridade Social – e elevava a idade mínima de aposentadoria de 62 para até 67 anos. A proposta não enfrentou apenas a reação dos sindicatos, que realizaram três greves gerais com enorme adesão. Ela era rechaçada por 70% dos eleitores e não obteve a maioria parlamentar necessária – até que Macron recorreu a um dispositivo autoritário (o artigo 47-1 da Constituição) que permite ao Executivo legislar, restando aos que se opõem derrubá-lo por uma improvável moção de censura.

A França foi forçada a engolir a redução dos direitos, mas o resultado eleitoral deste domingo expõe o desgaste de Macron. O bloco parlamentar do presidente, que obteve 44,8% das cadeiras na Assembleia Nacional há menos de dois anos, despencou para 16%. Diante da divisão da esquerda e centro-esquerda, os dois grupos de ultradireita dispararam. A Reunião Nacional (de Marine Le Pen) avançou para 31,4% (contra 18,7% em 2022) e a Reconquista (ligada à ECR e hoje sem representação na Assembleia) obteve 5,5%.

Algo semelhante se deu na Alemanha, embora sem um crescimento notável do fascismo. Em nome de um alinhamento total com os EUA, que contraria décadas de pusca de independência por parte de Berlim, o chanceler Olaf Scholz (do Partido Social-Democrata – SDP) abriu mão das bases em que se sustentava a indústria do país – em especial, o acesso fácil e barato à energia exportada pela Rússia. A submissão chegou a ponto de não investigar a explosão dos gasodutos NordStream 1 e 2, provavelmente perpretada por Washington.

O gás russo foi substituído pelo GLP norte-americdano, muito mais caro e devastador do ambiente (precisa ser transportado em incontáveis viagens de navio…) A indústria alemã perdeu competitividade. O país entrou em recessão e a renda dos trabalhadores despencou. Nada disso sensibilizou Scholz, muito menos sua coalizão de governo, que inclui os partidos Verde e Liberal. Ao contrário: o governo impôs um tributo sobre o diesel destinado aos tratores, despertando a ira dos agricultores (o mesmo ocorreu na França) e tentou obrigar a população a pagar o custo da troca dos aquecedores domésticos por outros – menos poluentes, mas muito mais caros. Como sustentar esta proposta, em meio ao empobrecimento da população? Não satisfeito em em assumir o desgaste que ela implicava, Scholz prometeu elevar os gastos militares e encerrar as salvaguardas que limitam, desde o final da II Guerra, os gastos da Alemanha com armamentos.

Tambem em seu caso, a punição veio nas urnas. A coalizão no governo, que tem 56,7% das cadeiras do Bundestag alemão, ficou reduzida a 31%. A direita conservadora avançou de 26,7% para 30%. E a ultradireita, de 10,5% para 15,9%. A mídia aplaudiu Scholz. Eleito em dezembro de 2021, seu governo viverá até 2025 acuado, sob pressão permanente dos mais conservadores.

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Em meio a este cenário desfavorável, como se saiu a esquerda? Os resultados gerais são frágeis, se se considera que o capitalismo vive sob crise prolongada mas chama atenção a ausência de alternativas. O bloco intitulado A Esquerda já reuniu 52 parlamentares (em 2014), mas vê-se reduzido agora a 36 (ou 42, se computados os 6 da BSW alemã). Porém destacam-se, em meio ao estancamento, dois resultados que podem indicar tendências.

O primeiro é o da própria Alemanha. Constituído apenas em janeiro, a partir da deputada Shara Wagenknecht, o embrionário BSW no patamar animador de 6,2% dos votos. Sustenta um programa claramente voltado à justiça social e à redistribuição de riquezas. Porém, faz restrições à entrada “livre” de imigrantes (por julgar que ela tende a favorecer a formação de um exército de reserva de trabalhadores, em favor dos empresários) e, embora feminista, considera a pauta do identitarismo de gênero sobrevalorizada.

O segundo é o ressurgimento do velho Partito Democratico (PD), na Itália. Depois de seu fiasco nas últimas eleições parlamentares em seu país, em setembro de 2022 (quando obteve apenas 15,4% dos votos), muitos julgavam moribunda esta organização, originária do lendário PCI. Mas, segundo o cientista político Giancarlo Summa, ela conseguiu um sopro novo de vida sob a liderança renovadora da secretária-geral Elly Schlein, de 38 anos e claramente contrária ao aumento do gasto militar para sustentar a guerra na Ucrânia. Além de obter 27,6% dos votos na eleições para o parlamento europeu (ficando agora apenas quatro pontos atrás do partido de ultradireita de Georgia Meloni), o PD venceu neste domingo a maior parte das eleições locais e regionais de que participou – entre elas as de Florença, Bari, Cagliari, Perugia e Bergamo, e as do Piemonte e Emilia Romana. Talvez menos vistosos, mas ainda assim significativos, foram os resultados de partidos claramente à esquerda na Finlândia (Aliança de Esquerda: 17.3%), Grécia (Coalizão de Esquerda Radical: 14,9%), Suécia (Partido de Esquerda: 10,9%), Portugal (Bloco de Esquerda e PC somaram 8,4%) e Bélgica (Partido do Trabalho, com 5,6%),

Embora não favoreçam diretamente a esquerda, os resultados em dois dos países nórdicos sugerem um forte desgaste da ultradireita no poder. Na Suécia, os “neo” fascistas autointitulados “Democratas” caíram para 14,3% dos votos (obtiveram 20,6% dos assentos do Parlamento, em 2022, e emprestam apoio à coalizão no poder). Na Finlândia, os Verdadeiros Finlandeses, de ultradireita, reduziram-se a 7,6% (dos 22,5% de cadeiras que controlam no parlamento nacional, onde fazem parte da coalizão no poder).

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No mundo eurocêntrico, o avanço da ultradireita é real. Mas nas mídias de mercado, aparece como um estranho fenômeno sem causa. É como se não pudéssemos conhecer suas origens, nem rever o que o provoca. Os liberais derrotados no domingo não estão dispostos a rever suas políticas. Num novo sinal de que a democracia está se tornando insensível ao desejo político das maiorias, a derrota evidente do Partido da Guerra não levou a nenhum recuo de seus líderes. Mal forma abertas as urnas, no domingo à noite, a deputada alemã Ursula von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia (o Poder Executivo da UE), proferiu discurso diante de burocratas em Bruxelas, anunciando que disputará um segundo mandato (indireto). É como se este nada tivesse a ver com a reação dos eleitores, apoiando-se apenas em arranjos entre os líderes dos partidos.

É assim que se convoca o fascismo, ensina a cientista política Clara Mattei em A Ordem do Capital. Quando a democracia divorcia-se dos interesses e anseios das maiorias e ataca seus direitos, quem a defenderá? Há alternativas?

Em todo o Ocidente, esta pergunta tem sido evitada. No terceiro mandato de Lula, o Brasil permanece aprisionado aos limites do liberalismo. O desgaste resultante é claro. Resta saber o que aprenderemos com ele.

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