A Boitempo acaba de publicar o oitava livro da coletânea de Karl Marx e Friedrich Engels – “Sobre a questão judaica”. A série teve início com a edição comemorativa dos 150 anos do “Manifesto Comunista”. Em seguida foram lançados: “A sagrada família”, “Os manuscritos econômico-filosóficos”, “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, “Sobre o suicídio”, “A ideologia alemã” e “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. O novo lançamento traz a apresentaçao de Daniel Bensaïd, num dos últimos textos escritos pelo filósofo e militante político francês falecido em janeiro último. Reproduzo abaixo a resenha de Arlene Clemesha:
“Sobre a questão judaica”, ensaio de Karl Marx redigido em 1843 e publicado em 1844 no único número dos Anais Franco-Alemães, é considerado um marco na passagem do democratismo liberal-radical de sua primeira juventude em direção ao comunismo. Foi também seu único texto dedicado exclusivamente ao tema. Com seu modo caracteristicamente antitético de escrever, “Sobre a questão judaica” provocou as reações mais diversas. Marx viria a ser acusado de antijudeu, não obstante sua conhecida origem judaica; e seu ensaio, de constituir um chamado precoce à aniquilação física dos judeus da Europa, cem anos antes do nazismo. Acusações estas que seriam, no mínimo, decorrência de leituras superficiais e fora de contexto. Na realidade, Marx transforma a análise da religião e da questão judaica em uma profunda crítica social. O verdadeiro problema colocado aos judeus, diria Marx, seria ultrapassar o estágio da conquista da igualdade civil – resultado da emancipação política – rumo à verdadeira igualdade, como fruto da emancipação social.
O Estado moderno, outra preocupação central de Marx nesse momento, seria a própria expressão de uma sociedade fundada sobre a desigualdade entre os homens. Ao realizar a igualdade no plano político – mediante a concessão de direitos iguais a todos os cidadãos independentemente de posse, religião ou etnia –, o Estado moderno preservava a desigualdade real entre os homens. Daí a passagem mais polêmica, na qual Marx explica que para se libertar verdadeiramente, os judeus devem se emancipar do elemento social que ao longo da história moderna possibilitou, ao mesmo tempo, a preservação do judaísmo e a perseguição aos judeus, qual seja, o próprio capitalismo (“a emancipação social do judeu equivale à emancipação da sociedade em relação ao judaísmo”, diria Marx, empregando “judaísmo”, isto é, Judentum, no sentido derivativo de “comércio” que o termo possuía na época, sob influência de seus contemporâneos Moses Hess e Feuerbach). Hoje, pode-se dizer que o texto de Marx é tão atual quanto a constatação de que sequer a criação de um Estado judeu foi capaz de resolver a questão judaica. Pelo contrário, o Estado exclusivista judeu, fundado sobre a base da segregação racial dos árabes palestinos, apenas acrescentou ao problema judeu o problema palestino.
Longe de constituir um lapso na trajetória intelectual de Marx, como quiseram alguns, o ensaio aqui apresentado marca o assentamento das bases do materialismo histórico, mediante a total integração, pela primeira vez na obra de Marx, do homem na sociedade e da atividade humana na atividade social. Ou seja, a união interativa entre sujeito e objeto, entre o homem e o seu meio. Sem ter chegado ainda à visão do proletariado como a única classe portadora do universal, o profundo humanismo expresso por Marx nos Anais Franco-Alemães é inseparável da defesa da transformação social.
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