Por Gilson Caroni Filho, no sítio Carta Maior:
O jogo é repleto de velhos subterfúgios. A grande imprensa, na tentativa de desconstruir o legado do governo Lula, organiza o movimento, mas não pode revelar o sujeito do enunciado. As últimas manifestações contra a corrupção, urdidas nas oficinas do Instituto Millenium, não evidenciam apenas o vazio de uma oposição sem projeto. Vão além. Seus verdadeiros objetivos são por demais ambiciosos para serem expostos à luz do dia. Na verdade, o que se tem em mente é o combate às políticas de redistribuição de renda e os diversos programas de inclusão social levados a cabo nos últimos nove anos de governo petista.
Para tanto, as redações interagem com os “indignados" das redes sociais, apresentados como protagonistas de uma nova esfera pública singular. Sem organicidade, enraizamento e ojeriza a qualquer coisa que coisa que remeta a práticas políticas transformadoras, os “movimentos espontâneos" são a imagem espelhada de tantos setores que endossam a verdadeira corrupção a ser combatida: aquela que promove a concentração de renda, de terras e a exclusão social, além de assegurar os privilégios das corporações midiáticas.
Mais uma vez, é preciso voltar no tempo para apreender a dinâmica do ocultamento das taxonomias, pressuposto básico para a eficácia do poder simbólico, da capacidade, cada vez mais limitada, de formatar antigas agendas.
Terça-feira, 20 de março de 2007. Mais uma vez, "empenhado" em repor a verdade factual de episódio recente da política brasileira, Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, voltava à página de "Opinião" do jornal da família Marinho. Desta vez escreveu um artigo que tinha por título "Collor". Como de hábito, uma redação formalmente correta, escorreita e elegante. Como sempre, uma petição de meias verdades. Algo como um Legacy com problemas no mapa aeronáutico e no painel do tranponder. Se a história tomasse a forma de um Boeing, uma colisão inevitável teria que desaparecer do noticiário do Jornal Nacional.
Dizendo-se chocado com a "reação do Senado ao discurso de estréia de Fernando Collor" na quinta-feira (15/3), o jornalista abria o artigo manifestando indignação com a forma como o ex-presidente classificou seu impeachment: "Uma litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de ultrajes e acúmulo de violações das mais comezinhas normas legais".
Para Kamel, a passividade dos senadores deu margem a uma perigosa releitura da história. Segundo ele, o que Collor queria caracterizar como momento de arbítrio, foi, na verdade, "um exemplo pleno do funcionamento de nossa democracia". Até aqui não havia o que objetar ao texto do segundo cargo de maior importância na hierarquia da Central Globo de Jornalismo. Os problemas começavam quando, após relato detalhado do funcionamento da CPI e do julgamento de Collor pelo STF, Kamel explicitava o que o levou a escrever o artigo: "A preocupação com os jovens, que não conhecem essa história". Se a motivação fosse sincera, deveria, então, contar o processo histórico inteiro, não se atendo apenas a seus momentos finais.
Teria que recordar que o ex-presidente foi uma aposta de Roberto Marinho para dar início à desconstrução do Estado, conforme solicitava o receituário neoliberal. O criador do maior conglomerado de mídia e entretenimento do Brasil não hesitou em jogar sujo para assegurar a vitória do "caçador de marajás" em 1989.
A apresentação do debate de Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 1989, é um exemplo dos métodos empregados por Roberto Marinho quando resolvia intervir na política. Em matéria para o Estado de S.Paulo (8/8/2003), José Maria Mayrink revela que...
"...Roberto Marinho não gostou da edição que a Rede Globo fez no noticiário da tarde e determinou que o diretor de jornalismo, Alberico Souza Cruz, reeditasse o material. Seu argumento era que estava parecendo que Lula ganhara o debate quando, de fato, o vencedor havia sido Collor. O episódio provocou uma crise interna na emissora e levou o candidato do PT a dizer que perdeu a eleição por causa da TV Globo".
Em sua dissertação de mestrado, "Marajás e Caras-Pintadas: a memória do governo Collor nas páginas de O Globo", o professor e jornalista Luis Felipe Oliveira mostra como a mídia construiu representações identitárias que marcaram o período Collor, da ascensão ao impeachment. Da necessidade de apresentar, acatando a agenda do neoliberalismo ascendente, o serviço público como algo oneroso, inoperante e injusto, nasceu a funcionalidade do "marajá". Um construto tão eficaz quanto simplificadora.
Para os fins deste artigo, é interessante reproduzir como a Globo afirma suas representações negando o princípio do contraditório. Segundo Luis Felipe...
"...no esforço de representar o marajá, foi preciso evitar que as pessoas identificadas como tal pudessem apresentar ao leitor a sua versão. Nas poucas oportunidades em que permitiu aos acusados o direito de se manifestar, O Globo selecionou e redigiu de tal forma as informações que elas acabavam por corroborar as denúncias das quais os servidores estariam se defendendo. Recursos como este não foram usados apenas com os supostos marajás. Os governadores que não aderiram à caça também eram apresentados nas matérias de O Globo de tal maneira que suas intervenções não faziam efeito".
O protagonismo da Globo na consolidação da imagem de Collor junto a parcela expressiva do eleitorado foi inegável. Marinho nunca ocultou que escondeu suas cartas. Foi enfático quando declarou à imprensa que "até as acusações, o Collor era para mim motivo de orgulho" (Estado de S.Paulo, 12/9/1992).
Deixemos claro que entre a Globo e Collor não houve relação de causalidade. Um precisava do outro para atingir seus fins. Era um típico caso de afinidade eletiva, formatado do princípio ao fim.
Convém lembrar que as Organizações Globo só abriram espaços para as manifestações públicas quando a sustentabilidade de Collor se tornou inviável. Em momento algum houve inflexão ética. Imolaram um personagem para manter intacto o projeto. Na mobilização pelo impeachment, a conhecida antecipação histórica de Roberto Marinho se fez presente. Os caras-pintadas eram o retorno do movimento estudantil como farsa. A ação política teatralizada neutralizava qualquer possibilidade contra-hegemônica. O espetáculo sobrepujava as contradições históricas. A TV Globo aparecia como vanguarda de um processo que, inicialmente, buscou esvaziar.
Já era possível antever, em meados de 1992, que o saldo final do movimento seria favorável às forças conservadoras. O clamor pela ética, quando acompanhado de vazio político, sempre produz um vaudeville burguês. A edição do Jornal Nacional de 2/10/1992, dia do impeachment, foi o modelo acabado da informação espetacularizada. Mostrou multidões concentradas em diversas capitais e terminou ao som de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso.
Ainda que reposta parcialmente, a história da Globo e seu candidato talvez explique melhor porque, segundo Kamel, "este é um país em que o decoro pode ser quebrado sem infringir o Código Penal". Sem meias verdades, encontraremos as digitais do império de Roberto Marinho no que há de mais indecoroso no Brasil. Quem sabe, até o próprio DNA do monopólio informativo.
E que nenhum leitor pense que, passados 18 anos, a Globo atualizou seus métodos. Continua fiel seguidora da velha sentença de Nélson Rodrigues: "Se as versões contrariam os fatos, pior para os fatos." Nos critérios de noticiabilidade da emissora não há lugar para fiascos.
Pior para os gatos-pingados que, no vazio de suas palavras de ordem, perdidos no centro do Rio de Janeiro, ficaram no limbo das editorias que tanto apostaram no êxito das articulações. Os caras-pintadas de 20 de setembro de 2011 conheceram a invisibilidade do próprio fracasso. Foi patético, mas de um didatismo exemplar.
* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.
O jogo é repleto de velhos subterfúgios. A grande imprensa, na tentativa de desconstruir o legado do governo Lula, organiza o movimento, mas não pode revelar o sujeito do enunciado. As últimas manifestações contra a corrupção, urdidas nas oficinas do Instituto Millenium, não evidenciam apenas o vazio de uma oposição sem projeto. Vão além. Seus verdadeiros objetivos são por demais ambiciosos para serem expostos à luz do dia. Na verdade, o que se tem em mente é o combate às políticas de redistribuição de renda e os diversos programas de inclusão social levados a cabo nos últimos nove anos de governo petista.
Para tanto, as redações interagem com os “indignados" das redes sociais, apresentados como protagonistas de uma nova esfera pública singular. Sem organicidade, enraizamento e ojeriza a qualquer coisa que coisa que remeta a práticas políticas transformadoras, os “movimentos espontâneos" são a imagem espelhada de tantos setores que endossam a verdadeira corrupção a ser combatida: aquela que promove a concentração de renda, de terras e a exclusão social, além de assegurar os privilégios das corporações midiáticas.
Mais uma vez, é preciso voltar no tempo para apreender a dinâmica do ocultamento das taxonomias, pressuposto básico para a eficácia do poder simbólico, da capacidade, cada vez mais limitada, de formatar antigas agendas.
Terça-feira, 20 de março de 2007. Mais uma vez, "empenhado" em repor a verdade factual de episódio recente da política brasileira, Ali Kamel, diretor-executivo de jornalismo da TV Globo, voltava à página de "Opinião" do jornal da família Marinho. Desta vez escreveu um artigo que tinha por título "Collor". Como de hábito, uma redação formalmente correta, escorreita e elegante. Como sempre, uma petição de meias verdades. Algo como um Legacy com problemas no mapa aeronáutico e no painel do tranponder. Se a história tomasse a forma de um Boeing, uma colisão inevitável teria que desaparecer do noticiário do Jornal Nacional.
Dizendo-se chocado com a "reação do Senado ao discurso de estréia de Fernando Collor" na quinta-feira (15/3), o jornalista abria o artigo manifestando indignação com a forma como o ex-presidente classificou seu impeachment: "Uma litania de abusos e preconceitos, uma sucessão de ultrajes e acúmulo de violações das mais comezinhas normas legais".
Para Kamel, a passividade dos senadores deu margem a uma perigosa releitura da história. Segundo ele, o que Collor queria caracterizar como momento de arbítrio, foi, na verdade, "um exemplo pleno do funcionamento de nossa democracia". Até aqui não havia o que objetar ao texto do segundo cargo de maior importância na hierarquia da Central Globo de Jornalismo. Os problemas começavam quando, após relato detalhado do funcionamento da CPI e do julgamento de Collor pelo STF, Kamel explicitava o que o levou a escrever o artigo: "A preocupação com os jovens, que não conhecem essa história". Se a motivação fosse sincera, deveria, então, contar o processo histórico inteiro, não se atendo apenas a seus momentos finais.
Teria que recordar que o ex-presidente foi uma aposta de Roberto Marinho para dar início à desconstrução do Estado, conforme solicitava o receituário neoliberal. O criador do maior conglomerado de mídia e entretenimento do Brasil não hesitou em jogar sujo para assegurar a vitória do "caçador de marajás" em 1989.
A apresentação do debate de Fernando Collor e Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 1989, é um exemplo dos métodos empregados por Roberto Marinho quando resolvia intervir na política. Em matéria para o Estado de S.Paulo (8/8/2003), José Maria Mayrink revela que...
"...Roberto Marinho não gostou da edição que a Rede Globo fez no noticiário da tarde e determinou que o diretor de jornalismo, Alberico Souza Cruz, reeditasse o material. Seu argumento era que estava parecendo que Lula ganhara o debate quando, de fato, o vencedor havia sido Collor. O episódio provocou uma crise interna na emissora e levou o candidato do PT a dizer que perdeu a eleição por causa da TV Globo".
Em sua dissertação de mestrado, "Marajás e Caras-Pintadas: a memória do governo Collor nas páginas de O Globo", o professor e jornalista Luis Felipe Oliveira mostra como a mídia construiu representações identitárias que marcaram o período Collor, da ascensão ao impeachment. Da necessidade de apresentar, acatando a agenda do neoliberalismo ascendente, o serviço público como algo oneroso, inoperante e injusto, nasceu a funcionalidade do "marajá". Um construto tão eficaz quanto simplificadora.
Para os fins deste artigo, é interessante reproduzir como a Globo afirma suas representações negando o princípio do contraditório. Segundo Luis Felipe...
"...no esforço de representar o marajá, foi preciso evitar que as pessoas identificadas como tal pudessem apresentar ao leitor a sua versão. Nas poucas oportunidades em que permitiu aos acusados o direito de se manifestar, O Globo selecionou e redigiu de tal forma as informações que elas acabavam por corroborar as denúncias das quais os servidores estariam se defendendo. Recursos como este não foram usados apenas com os supostos marajás. Os governadores que não aderiram à caça também eram apresentados nas matérias de O Globo de tal maneira que suas intervenções não faziam efeito".
O protagonismo da Globo na consolidação da imagem de Collor junto a parcela expressiva do eleitorado foi inegável. Marinho nunca ocultou que escondeu suas cartas. Foi enfático quando declarou à imprensa que "até as acusações, o Collor era para mim motivo de orgulho" (Estado de S.Paulo, 12/9/1992).
Deixemos claro que entre a Globo e Collor não houve relação de causalidade. Um precisava do outro para atingir seus fins. Era um típico caso de afinidade eletiva, formatado do princípio ao fim.
Convém lembrar que as Organizações Globo só abriram espaços para as manifestações públicas quando a sustentabilidade de Collor se tornou inviável. Em momento algum houve inflexão ética. Imolaram um personagem para manter intacto o projeto. Na mobilização pelo impeachment, a conhecida antecipação histórica de Roberto Marinho se fez presente. Os caras-pintadas eram o retorno do movimento estudantil como farsa. A ação política teatralizada neutralizava qualquer possibilidade contra-hegemônica. O espetáculo sobrepujava as contradições históricas. A TV Globo aparecia como vanguarda de um processo que, inicialmente, buscou esvaziar.
Já era possível antever, em meados de 1992, que o saldo final do movimento seria favorável às forças conservadoras. O clamor pela ética, quando acompanhado de vazio político, sempre produz um vaudeville burguês. A edição do Jornal Nacional de 2/10/1992, dia do impeachment, foi o modelo acabado da informação espetacularizada. Mostrou multidões concentradas em diversas capitais e terminou ao som de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso.
Ainda que reposta parcialmente, a história da Globo e seu candidato talvez explique melhor porque, segundo Kamel, "este é um país em que o decoro pode ser quebrado sem infringir o Código Penal". Sem meias verdades, encontraremos as digitais do império de Roberto Marinho no que há de mais indecoroso no Brasil. Quem sabe, até o próprio DNA do monopólio informativo.
E que nenhum leitor pense que, passados 18 anos, a Globo atualizou seus métodos. Continua fiel seguidora da velha sentença de Nélson Rodrigues: "Se as versões contrariam os fatos, pior para os fatos." Nos critérios de noticiabilidade da emissora não há lugar para fiascos.
Pior para os gatos-pingados que, no vazio de suas palavras de ordem, perdidos no centro do Rio de Janeiro, ficaram no limbo das editorias que tanto apostaram no êxito das articulações. Os caras-pintadas de 20 de setembro de 2011 conheceram a invisibilidade do próprio fracasso. Foi patético, mas de um didatismo exemplar.
* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.
3 comentários:
Disse a verdade.
Miro seu teu fã... assumo!
Pauta oca
As manifestações fracassaram. Reunir cem testemunhas sob o Masp ou duas mil na Cinelândia soa mais ou menos desapontador segundo a força midiática a serviço de cada evento, mas as expectativas eram bem outras. E a promessa de engajamento popular não se realizou.
Evito comemorar a tal mobilização da juventude ou uma pretensa conscientização da sociedade como fenômenos positivos em si. Nada disso é novo, nem tão disseminado ou espontâneo quanto alguns acreditam. Pelo contrário. Na tradição de lutas estudantis, sindicais e partidárias, essa gritaria moralista parece algo insípida e mesmo artificial. O Rock in Rio, por sua vez, lotou.
Protestos genéricos fazem sentido quando sua própria realização simboliza uma vitória, como ocorre nos regimes autoritários. Em democracias, repetir jargões difusos redunda em desperdícios de energia contestatória. Ainda que exigissem o afastamento de Dilma Rousseff, os manifestantes pelo menos teriam um diferencial, um objetivo palpável. A fraqueza desses eventos sobressai na maneira como os diversos interesses envolvidos procuram se apropriar deles para atacar ou defender o governo federal, o Congresso, o Poder Judiciário, a mídia, o PT, o PSDB, o capitalismo.
Para evitar novas decepções futuras, seria prudente desmitificar um pouco o papel da militância virtual, conferindo estatura realista às redes sociais. E partir logo para a árdua tarefa de estabelecer plataformas específicas, incontroversas, calcadas em vias legais e objetivas de viabilização. Projetos de lei e votações no STF, por exemplo.
Os festejados movimentos estrangeiros, que encantam os sonhos dos agitadores afoitos, devem-se à natureza das reivindicações e não à plataforma divulgadora. É a mensagem, não o meio, que faz essa diferença.
http://guilhermescalzilli.blogspot.com/
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