Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:
No ainda inédito e valioso depoimento que escreveu sob o título Anos setenta: a UnB e a definição das políticas de comunicação no Brasil (a ser publicado pela Editora da UnB), o professor Marco Antonio Rodrigues Dias – ex-professor, chefe do antigo Departamento de Comunicação (COM), decano de Extensão e vice-reitor – lembra:
“[A posição do Ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira] começou a despertar o interesse dos cursos de comunicação pelo país afora e teve um impacto espetacular quando o ministro, em agosto de 1975, abriu, na UnB, um seminário latino-americano de comunicação, na presença dos maiores especialistas e estudiosos da comunicação naquela época em vários países da América Latina” (grifo nosso).
Embora muito mais seja dito sobre a importância histórica do ministro Quandt de Oliveira e do grupo de professores-pesquisadores em comunicação da UnB, à época, o professor Marco Antonio nada mais acrescenta sobre o “seminário latino americano de comunicação”.
No portal da UnB, a página da Faculdade de Comunicação faz apenas um breve registro do referido seminário:
Aos poucos o Departamento começa a dar os primeiros passos fora do campus. O primeiro foi o inicio, em julho de 1974, do Programa de Mestrado (...). O outro acontecimento importante foi a realização, em 1975, na UnB, do I Seminário Latino-Americano de Comunicação, sobre “Comunicação e Desenvolvimento”, do qual participaram especialistas de renome nacional e internacional.
Este artigo pretende registrar o significado singular que o referido seminário teve (1) como referência para o debate sobre políticas públicas de comunicações; e (2) na pesquisa da comunicação, tanto no Brasil como na América Latina.
O contexto dos anos 1970
Primeiro é preciso lembrar que vivíamos tempos sombrios. Era o início do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) com promessas de abertura política, resistência dos militares da chamada “linha-dura” e violenta repressão aos movimentos de oposição à ditadura. O clima de insegurança se refletia, por óbvio, na atividade acadêmica, sobretudo, na Arquitetura e na Comunicação, historicamente vistas pelos órgãos de segurança – internos e externos – como áreas “problemáticas” na UnB.
Em artigo anterior, relatei um encontro acontecido, por iniciativa da Globo, na UnB (1975), entre professores do COM e altos dirigentes do poderoso grupo de mídia, entre eles Walter Clark (diretor geral), Luiz Eduardo Borgerth (diretor), Otto Lara Resende (assessor da presidência), infelizmente já falecidos. O encontro tinha por objetivo “trocar idéias sobre as comunicações no Brasil”. Lembrei, então, o contexto em que o encontro ocorreu, pontuando, dentre outros:
* O Ministro das Comunicações (Quandt de Oliveira) vinha fazendo uma série de críticas públicas à televisão brasileira, todas de grande repercussão. Uma delas, a aula inaugural no curso de comunicação do CEUB, Centro de Ensino Unificado de Brasília, sobre “A televisão no Brasil” (17/2/1975). Na sua fala ele destacava os “perigos do monopólio” tanto de canais, quanto de audiência, quanto na programação “alienígena”.
* Estava em andamento a criação da Radiobras [Lei n. 6301 de 15/12/1975] que era vista com desconfiança pela Globo temerosa de que se transformasse em destinação preferencial de verbas publicitárias do governo.
* Estava em discussão, dentro do governo, um pré-projeto de regulação da radiodifusão que deveria substituir o [já àquela época] superado Código Brasileiro de Telecomunicações [Lei 4. 117/1962].
* O Departamento de Comunicação da UnB era uma unidade acadêmica que produzia pesquisa crítica sobre a radiodifusão brasileira e acabara de elaborar um pioneiro projeto de unificação das televisões públicas que recebeu o nome de SINTIS, Sistema Nacional de Televisão de Interesse Social. Além disso, circulava que alguns de seus professores tinham acesso ao ministro das Comunicações e o abasteciam com dados nos quais ele fundamentava sua posição, direta e/ou indiretamente, contrária à hegemonia da Globo.
No campo das comunicações, este foi também o período em que começava a ganhar corpo internacionalmente o debate sobre as políticas nacionais de comunicação e a Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic), que provocou a crise que resultou na saída dos EUA (1984) e da Inglaterra (1985) da Unesco (ver “Ideia é relançada 30 anos depois“).
O COM havia iniciado no ano anterior (2º semestre de 1974) o seu programa de mestrado em Comunicação, apenas o quarto a funcionar no país – depois da USP, da PUC-SP e da UFRJ. Apesar de conter um componente de desenvolvimento rural ligado à presença de pesquisadores externos que colaboraram no seu planejamento, o convite a professores visitantes de diferentes orientações teóricas – e o fato de estar em Brasília – fez com que o viés das políticas públicas de comunicação também se vinculasse ao programa. Ademais, já existia um forte conteúdo crítico no COM, expresso na posição antioligopolista e de defesa do conteúdo nacional na radiodifusão brasileira sustentada publicamente por vários de seus professores.
O Seminário Latino Americano de Comunicação
A idéia de se realizar um grande evento acadêmico na área de comunicação havia surgido originalmente para marcar o início do funcionamento do programa de mestrado. Como isso não fora possível, quando o programa completava seu primeiro ano de funcionamento, organizou-se o Seminário Latino Americano de Comunicação (SLAC)que aconteceu na semana entre 24 a 29 de agosto de 1975, no Auditório Dois Candangos.
O pouco tempo de funcionamento do mestrado tinha deixado clara a quase inexistência de reflexões locais e regionais sobre as questões de comunicação. Naquela época, por exemplo, o trabalho pioneiro de crítica ao extensionismo rural e de teorização sobre a comunicação dialógica que Paulo Freire havia começado a desenvolver no Chile era praticamente desconhecido entre nós. Tornava-se imperativo, portanto, valorizar as experiências latino-americanas e criar um referencial prático e teórico que expressasse a realidade social e cultural da região.
Um dos objetivos do SLAC era exatamente reunir os principais pesquisadores da comunicação na América Latina e refletir criticamente sobre a pesquisa e o ensino da comunicação, sobretudo, em nível de pós-graduação. Foram convidados e estiveram no SLAC Antonio Pasquali (Venezuela), Juan Dias Bordenave (Paraguai), Luiz Ramiro Beltrán (Colômbia), Manoel Calvelo Rios (Peru) e Marco Ordoñez (Equador). Veio também Alberto Obligado Nasar, argentino, à época subdiretor geral de informação da Unesco. Entre os brasileiros, além dos professores do COM, estiveram presentes Gabriel Cohn (USP), Muniz Sodré (UFRJ), Eduardo Diatay (UFCE) e representantes do CNPq e da Embrapa que discutiram os desafios da pós-graduação nas ciências humanas em países como o Brasil.
Estiveram também presentes o ministro das Comunicações e um representante da Secretaria de Planejamento da Presidência da República para discutir o II Plano Nacional de Desenvolvimento.
O discurso de abertura do SLAC, pronunciado pelo ministro das Comunicações, teve grande repercussão pública. Quandt de Oliveira era o símbolo de importantes contradições que, àquela altura, existiam no interior do regime autoritário. Ao contrário de seus antecessores, questionava diretamente o controle da mídia, sobretudo da radiodifusão, por uns poucos grupos privados. Em sintonia com questões que estavam sendo levantadas, à época, na Unesco, perguntou:
“Possuímos meios de comunicação de massa em quantidade suficiente para atender as nossas necessidades? De que maneira estão distribuídos os meios de comunicação de massa? Essa distribuição é homogênea em todo o país ou revela desequilíbrios que devem ser corrigidos? Finalmente, qual é a natureza do conteúdo dos meios de comunicação? Este conteúdo é relevante para o desenvolvimento do país ou é composto de material predominantemente trivial, banal?”
A resposta às questões levantadas pelo ministro, por óbvio, era negativa e foi oferecida no próprio seminário. O professor Marco Antonio, por exemplo, que falou dois dias depois, sugeriu:
“A definição de uma política nacional de comunicação é crucial, pois, de acordo com sua motivação, os veículos de massa poderão servir, prioritariamente, a uma finalidade social e cultural ou poderão ter objetivos meramente comerciais, servindo apenas de instrumentos de marketing para melhorar as vendas de determinados produtos. E, neste caso, falar de produção nacional ou estrangeira deixa de ter sentido. (...) O estudo sobre o novo Código Postal e de Telecomunicações é também de fundamental importância. Espera-se que a nova legislação a ser proposta pelo Executivo e discutida pelo Legislativo dê força de lei a princípios e medidas que garantam o uso social dos meios de comunicação. Entre estas, destacam-se: (1) consolidação da adoção do sistema misto de radiodifusão, devendo colaborar todos, governo e grupos privados, no esforço para atingir o desenvolvimento social; (2) medidas que visam a enfraquecer a tendência da concentração da propriedade e da produção e (3) defesa dos valores da cultura nacional, através da obrigatoriedade de porcentagem significativa de produção nacional na programação.”
Inexplicavelmente, a coletânea dos textos apresentados ao longo do SLAC, que deveria ter sido publicada em livro, se perdeu no COM. Hoje, salvo uns poucos originais, não há registro da riqueza das contribuições oferecidas.
A criação de uma associação de pesquisadores
Outro resultado do SLAC foi o nascimento do embrião da Associação Latino Americana de Pesquisadores da Comunicação (Alaic), que viria a ser criada três anos depois em Caracas, na Venezuela.
No último dia do SLAC, 29 de agosto, reuniram-se os pesquisadores Antonio Pasquali (Ininco, Venezuela), José Salomão David Amorim (Abepec, Brasil), Juan Dias Bordenave (Iica), Luiz Ramiro Beltrán (Cida, Colombia), Lytton Guimarães (UnB), Manoel Calvelo Rios (FAO, Peru), Marco Ordoñez (Ciespal, Equador), Ubirajara da Silva (UnB), Venício A. de Lima (UnB) e Vicente Alba (IICA e Embrapa, Brasil) e decidiram criar o “Comitê Latino Americano de Pesquisadores em Comunicação Social”. A secretaria executiva seria na sede do Ciespal, o presidente o professor Salomão Amorim e o secretario executivo, Marco Ordoñez.
Na ocasião foi redigida uma ata, subscrita tanto pelo professor Salomão quanto por Marco Ordoñez, que diagnosticava a situação da pesquisa em comunicação na América Latina pela “falta de planificação, de coordenação e de intercâmbio”. Essa situação, portanto, “configura a necessidade de se criar uma entidade destinada a sanar estes inconvenientes”. Além disso, a Ata registrava, dentre outros, os seguintes propósitos do Comitê:
* racionalizar e tornar congruentes os trabalhos de investigação que, neste setor, se realizam na América Latina;
* planificar, na medida do possível, a pesquisa regional em comunicação social;
* favorecer o intercâmbio de experiências e determinar, de comum acordo, sistemas de prioridades;
* favorecer, por todos os meios, a formulação, execução e avaliação das políticas nacionais de comunicação.
É interessante observar que, no portal da própria Alaic, não se encontra qualquer informação sobre a história de criação da entidade.
Por outro lado, em entrevista concedida em 1999, a ex-presidente da Alaic, professora. Margarida Kunsch, afirma:
“A Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación – Alaic – foi fundada em novembro de 1978, em Caracas, Venezuela. Ela surgiu graças à iniciativa de um grupo de pesquisadores (Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán, Jesus Martín-Barbero, Alejandro Alfonso, Marco Ordoñez, entre outros), que vislumbraram a importância e a necessidade da comunidade acadêmica de comunicação na América Latina se articular” (ver aqui).
Não há, portanto, qualquer menção ao Comitê ou ao encontro em Brasília, três anos antes, do qual participaram pelo menos três dos pesquisadores explicitamente mencionados como “pais” da iniciativa, isto é, Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán e Marco Ordoñez.
Lições para o presente
O SLAC foi pioneiro e ajudou a introduzir as políticas nacionais de comunicação como pauta de interesse público. Trinta e sete anos depois, elas continuam mais que necessárias e boicotadas na agenda da grande mídia. Questões e propostas colocadas na década de 1970, apesar das normas e princípios inseridos na Constituição de 1988, persistem sem solução. Na verdade, políticas nacionais de comunicação ainda constituem um tabu. Basta considerar que não temos, em 2012, um projeto de marco regulatório para o setor de comunicações.
Da mesma forma, os propósitos do Comitê Latino Americano de Pesquisadores continuam incrivelmente atuais. A regulação democrática da mídia que vem ocorrendo em vários países nossos vizinhos precisa ser estudada aqui e o intercâmbio e a integração da pesquisa nunca foram tão necessários.
Recorro ao que escrevi em relação a outra memória singular do COM-UnB (ver “Relato de uma experiência, 40 anos depois“): a experiência – assim como a memória, diria Pedro Nava – é um farol que ilumina para trás. Mesmo assim, o registro de ambas faz parte da reafirmação de nossa própria identidade e se torna necessário, pelo menos, para nós mesmos.
Chefe do COM à época da realização do Seminário Latino Americano de Comunicação,ex-professor e ex-coordenador do programa de mestrado em Comunicação, busco resgatar não só a memória de um importante evento esquecido, como, sobretudo, prestar uma homenagem aos colegas, funcionários e alunos que trabalharam duramente para que tudo isso acontecesse em tempos e circunstâncias adversas.
Essa é também, acredito, uma maneira de celebrar os primeiros cinquenta anos da Universidade de Brasília.
No ainda inédito e valioso depoimento que escreveu sob o título Anos setenta: a UnB e a definição das políticas de comunicação no Brasil (a ser publicado pela Editora da UnB), o professor Marco Antonio Rodrigues Dias – ex-professor, chefe do antigo Departamento de Comunicação (COM), decano de Extensão e vice-reitor – lembra:
“[A posição do Ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira] começou a despertar o interesse dos cursos de comunicação pelo país afora e teve um impacto espetacular quando o ministro, em agosto de 1975, abriu, na UnB, um seminário latino-americano de comunicação, na presença dos maiores especialistas e estudiosos da comunicação naquela época em vários países da América Latina” (grifo nosso).
Embora muito mais seja dito sobre a importância histórica do ministro Quandt de Oliveira e do grupo de professores-pesquisadores em comunicação da UnB, à época, o professor Marco Antonio nada mais acrescenta sobre o “seminário latino americano de comunicação”.
No portal da UnB, a página da Faculdade de Comunicação faz apenas um breve registro do referido seminário:
Aos poucos o Departamento começa a dar os primeiros passos fora do campus. O primeiro foi o inicio, em julho de 1974, do Programa de Mestrado (...). O outro acontecimento importante foi a realização, em 1975, na UnB, do I Seminário Latino-Americano de Comunicação, sobre “Comunicação e Desenvolvimento”, do qual participaram especialistas de renome nacional e internacional.
Este artigo pretende registrar o significado singular que o referido seminário teve (1) como referência para o debate sobre políticas públicas de comunicações; e (2) na pesquisa da comunicação, tanto no Brasil como na América Latina.
O contexto dos anos 1970
Primeiro é preciso lembrar que vivíamos tempos sombrios. Era o início do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) com promessas de abertura política, resistência dos militares da chamada “linha-dura” e violenta repressão aos movimentos de oposição à ditadura. O clima de insegurança se refletia, por óbvio, na atividade acadêmica, sobretudo, na Arquitetura e na Comunicação, historicamente vistas pelos órgãos de segurança – internos e externos – como áreas “problemáticas” na UnB.
Em artigo anterior, relatei um encontro acontecido, por iniciativa da Globo, na UnB (1975), entre professores do COM e altos dirigentes do poderoso grupo de mídia, entre eles Walter Clark (diretor geral), Luiz Eduardo Borgerth (diretor), Otto Lara Resende (assessor da presidência), infelizmente já falecidos. O encontro tinha por objetivo “trocar idéias sobre as comunicações no Brasil”. Lembrei, então, o contexto em que o encontro ocorreu, pontuando, dentre outros:
* O Ministro das Comunicações (Quandt de Oliveira) vinha fazendo uma série de críticas públicas à televisão brasileira, todas de grande repercussão. Uma delas, a aula inaugural no curso de comunicação do CEUB, Centro de Ensino Unificado de Brasília, sobre “A televisão no Brasil” (17/2/1975). Na sua fala ele destacava os “perigos do monopólio” tanto de canais, quanto de audiência, quanto na programação “alienígena”.
* Estava em andamento a criação da Radiobras [Lei n. 6301 de 15/12/1975] que era vista com desconfiança pela Globo temerosa de que se transformasse em destinação preferencial de verbas publicitárias do governo.
* Estava em discussão, dentro do governo, um pré-projeto de regulação da radiodifusão que deveria substituir o [já àquela época] superado Código Brasileiro de Telecomunicações [Lei 4. 117/1962].
* O Departamento de Comunicação da UnB era uma unidade acadêmica que produzia pesquisa crítica sobre a radiodifusão brasileira e acabara de elaborar um pioneiro projeto de unificação das televisões públicas que recebeu o nome de SINTIS, Sistema Nacional de Televisão de Interesse Social. Além disso, circulava que alguns de seus professores tinham acesso ao ministro das Comunicações e o abasteciam com dados nos quais ele fundamentava sua posição, direta e/ou indiretamente, contrária à hegemonia da Globo.
No campo das comunicações, este foi também o período em que começava a ganhar corpo internacionalmente o debate sobre as políticas nacionais de comunicação e a Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic), que provocou a crise que resultou na saída dos EUA (1984) e da Inglaterra (1985) da Unesco (ver “Ideia é relançada 30 anos depois“).
O COM havia iniciado no ano anterior (2º semestre de 1974) o seu programa de mestrado em Comunicação, apenas o quarto a funcionar no país – depois da USP, da PUC-SP e da UFRJ. Apesar de conter um componente de desenvolvimento rural ligado à presença de pesquisadores externos que colaboraram no seu planejamento, o convite a professores visitantes de diferentes orientações teóricas – e o fato de estar em Brasília – fez com que o viés das políticas públicas de comunicação também se vinculasse ao programa. Ademais, já existia um forte conteúdo crítico no COM, expresso na posição antioligopolista e de defesa do conteúdo nacional na radiodifusão brasileira sustentada publicamente por vários de seus professores.
O Seminário Latino Americano de Comunicação
A idéia de se realizar um grande evento acadêmico na área de comunicação havia surgido originalmente para marcar o início do funcionamento do programa de mestrado. Como isso não fora possível, quando o programa completava seu primeiro ano de funcionamento, organizou-se o Seminário Latino Americano de Comunicação (SLAC)que aconteceu na semana entre 24 a 29 de agosto de 1975, no Auditório Dois Candangos.
O pouco tempo de funcionamento do mestrado tinha deixado clara a quase inexistência de reflexões locais e regionais sobre as questões de comunicação. Naquela época, por exemplo, o trabalho pioneiro de crítica ao extensionismo rural e de teorização sobre a comunicação dialógica que Paulo Freire havia começado a desenvolver no Chile era praticamente desconhecido entre nós. Tornava-se imperativo, portanto, valorizar as experiências latino-americanas e criar um referencial prático e teórico que expressasse a realidade social e cultural da região.
Um dos objetivos do SLAC era exatamente reunir os principais pesquisadores da comunicação na América Latina e refletir criticamente sobre a pesquisa e o ensino da comunicação, sobretudo, em nível de pós-graduação. Foram convidados e estiveram no SLAC Antonio Pasquali (Venezuela), Juan Dias Bordenave (Paraguai), Luiz Ramiro Beltrán (Colômbia), Manoel Calvelo Rios (Peru) e Marco Ordoñez (Equador). Veio também Alberto Obligado Nasar, argentino, à época subdiretor geral de informação da Unesco. Entre os brasileiros, além dos professores do COM, estiveram presentes Gabriel Cohn (USP), Muniz Sodré (UFRJ), Eduardo Diatay (UFCE) e representantes do CNPq e da Embrapa que discutiram os desafios da pós-graduação nas ciências humanas em países como o Brasil.
Estiveram também presentes o ministro das Comunicações e um representante da Secretaria de Planejamento da Presidência da República para discutir o II Plano Nacional de Desenvolvimento.
O discurso de abertura do SLAC, pronunciado pelo ministro das Comunicações, teve grande repercussão pública. Quandt de Oliveira era o símbolo de importantes contradições que, àquela altura, existiam no interior do regime autoritário. Ao contrário de seus antecessores, questionava diretamente o controle da mídia, sobretudo da radiodifusão, por uns poucos grupos privados. Em sintonia com questões que estavam sendo levantadas, à época, na Unesco, perguntou:
“Possuímos meios de comunicação de massa em quantidade suficiente para atender as nossas necessidades? De que maneira estão distribuídos os meios de comunicação de massa? Essa distribuição é homogênea em todo o país ou revela desequilíbrios que devem ser corrigidos? Finalmente, qual é a natureza do conteúdo dos meios de comunicação? Este conteúdo é relevante para o desenvolvimento do país ou é composto de material predominantemente trivial, banal?”
A resposta às questões levantadas pelo ministro, por óbvio, era negativa e foi oferecida no próprio seminário. O professor Marco Antonio, por exemplo, que falou dois dias depois, sugeriu:
“A definição de uma política nacional de comunicação é crucial, pois, de acordo com sua motivação, os veículos de massa poderão servir, prioritariamente, a uma finalidade social e cultural ou poderão ter objetivos meramente comerciais, servindo apenas de instrumentos de marketing para melhorar as vendas de determinados produtos. E, neste caso, falar de produção nacional ou estrangeira deixa de ter sentido. (...) O estudo sobre o novo Código Postal e de Telecomunicações é também de fundamental importância. Espera-se que a nova legislação a ser proposta pelo Executivo e discutida pelo Legislativo dê força de lei a princípios e medidas que garantam o uso social dos meios de comunicação. Entre estas, destacam-se: (1) consolidação da adoção do sistema misto de radiodifusão, devendo colaborar todos, governo e grupos privados, no esforço para atingir o desenvolvimento social; (2) medidas que visam a enfraquecer a tendência da concentração da propriedade e da produção e (3) defesa dos valores da cultura nacional, através da obrigatoriedade de porcentagem significativa de produção nacional na programação.”
Inexplicavelmente, a coletânea dos textos apresentados ao longo do SLAC, que deveria ter sido publicada em livro, se perdeu no COM. Hoje, salvo uns poucos originais, não há registro da riqueza das contribuições oferecidas.
A criação de uma associação de pesquisadores
Outro resultado do SLAC foi o nascimento do embrião da Associação Latino Americana de Pesquisadores da Comunicação (Alaic), que viria a ser criada três anos depois em Caracas, na Venezuela.
No último dia do SLAC, 29 de agosto, reuniram-se os pesquisadores Antonio Pasquali (Ininco, Venezuela), José Salomão David Amorim (Abepec, Brasil), Juan Dias Bordenave (Iica), Luiz Ramiro Beltrán (Cida, Colombia), Lytton Guimarães (UnB), Manoel Calvelo Rios (FAO, Peru), Marco Ordoñez (Ciespal, Equador), Ubirajara da Silva (UnB), Venício A. de Lima (UnB) e Vicente Alba (IICA e Embrapa, Brasil) e decidiram criar o “Comitê Latino Americano de Pesquisadores em Comunicação Social”. A secretaria executiva seria na sede do Ciespal, o presidente o professor Salomão Amorim e o secretario executivo, Marco Ordoñez.
Na ocasião foi redigida uma ata, subscrita tanto pelo professor Salomão quanto por Marco Ordoñez, que diagnosticava a situação da pesquisa em comunicação na América Latina pela “falta de planificação, de coordenação e de intercâmbio”. Essa situação, portanto, “configura a necessidade de se criar uma entidade destinada a sanar estes inconvenientes”. Além disso, a Ata registrava, dentre outros, os seguintes propósitos do Comitê:
* racionalizar e tornar congruentes os trabalhos de investigação que, neste setor, se realizam na América Latina;
* planificar, na medida do possível, a pesquisa regional em comunicação social;
* favorecer o intercâmbio de experiências e determinar, de comum acordo, sistemas de prioridades;
* favorecer, por todos os meios, a formulação, execução e avaliação das políticas nacionais de comunicação.
É interessante observar que, no portal da própria Alaic, não se encontra qualquer informação sobre a história de criação da entidade.
Por outro lado, em entrevista concedida em 1999, a ex-presidente da Alaic, professora. Margarida Kunsch, afirma:
“A Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación – Alaic – foi fundada em novembro de 1978, em Caracas, Venezuela. Ela surgiu graças à iniciativa de um grupo de pesquisadores (Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán, Jesus Martín-Barbero, Alejandro Alfonso, Marco Ordoñez, entre outros), que vislumbraram a importância e a necessidade da comunidade acadêmica de comunicação na América Latina se articular” (ver aqui).
Não há, portanto, qualquer menção ao Comitê ou ao encontro em Brasília, três anos antes, do qual participaram pelo menos três dos pesquisadores explicitamente mencionados como “pais” da iniciativa, isto é, Antonio Pasquali, Luis Ramiro Beltrán e Marco Ordoñez.
Lições para o presente
O SLAC foi pioneiro e ajudou a introduzir as políticas nacionais de comunicação como pauta de interesse público. Trinta e sete anos depois, elas continuam mais que necessárias e boicotadas na agenda da grande mídia. Questões e propostas colocadas na década de 1970, apesar das normas e princípios inseridos na Constituição de 1988, persistem sem solução. Na verdade, políticas nacionais de comunicação ainda constituem um tabu. Basta considerar que não temos, em 2012, um projeto de marco regulatório para o setor de comunicações.
Da mesma forma, os propósitos do Comitê Latino Americano de Pesquisadores continuam incrivelmente atuais. A regulação democrática da mídia que vem ocorrendo em vários países nossos vizinhos precisa ser estudada aqui e o intercâmbio e a integração da pesquisa nunca foram tão necessários.
Recorro ao que escrevi em relação a outra memória singular do COM-UnB (ver “Relato de uma experiência, 40 anos depois“): a experiência – assim como a memória, diria Pedro Nava – é um farol que ilumina para trás. Mesmo assim, o registro de ambas faz parte da reafirmação de nossa própria identidade e se torna necessário, pelo menos, para nós mesmos.
Chefe do COM à época da realização do Seminário Latino Americano de Comunicação,ex-professor e ex-coordenador do programa de mestrado em Comunicação, busco resgatar não só a memória de um importante evento esquecido, como, sobretudo, prestar uma homenagem aos colegas, funcionários e alunos que trabalharam duramente para que tudo isso acontecesse em tempos e circunstâncias adversas.
Essa é também, acredito, uma maneira de celebrar os primeiros cinquenta anos da Universidade de Brasília.
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