Rod Anderson |
As edições dos jornais de terça-feira (12/2) devem ser guardadas como lembrança e material de estudo por quem ainda se interessa pela imprensa. O anúncio da renúncia do papa Bento 16, na manhã da segunda-feira de carnaval, quebra a estrutura dos jornais e expõe a inadequação do formato com que o noticiário precisa ser organizado nos diários de papel.
Surpreendidas pela decisão do pontífice, as sonolentas redações foram obrigadas a rever o planejamento feito para os dias de folia e a encontrar espaço para o inusitado acontecimento. O resultado é o retrato da esquizofrenia que se tornou característica da mídia tradicional.
O papa pode renunciar à representação oficial da divindade, mas a imprensa não pode abrir mão de mediar os festejos carnavalescos. O caráter esquizofrênico do noticiário fica exposto pela obrigatoriedade de agrupar as narrativas em espaços específicos, o que eventualmente implica colocar o fato histórico relevante lado a lado com as banalidades dos foliões.
Não é fácil conciliar duas temáticas tão controversas entre si, mesmo no formato digital, muito mais versátil do que o meio físico. No papel, o produto dessas escolhas vira uma espécie de Frankenstein.
Curiosamente, o jornal que encara esse desafio com mais leveza é o Globo, cuja sede fica na cidade onde o carnaval é uma razão de viver para milhões de pessoas. Na primeira página do jornal carioca, a renúncia do papa vem como tema principal, com manchete de lado a lado: “Trono vazio no Vaticano”. Abaixo da dobra, quase no rodapé, o assunto oficial da semana vira um título subalterno.
Os leitores são avisados de que o interior do jornal foi dividido em dois campos inconciliáveis. Sobre a manchete, vai uma chamada: “O sagrado”. Encimando o noticiário do carnaval, a antítese: “O profano”.
O conflito entre sagrado e o profano está presentes quase todo dia na imprensa, mais ou menos dissimulado nos assuntos que os editores consideram representativos da realidade do dia anterior. Trata-se de um aspecto do maniqueísmo que marca a visão de mundo da imprensa. No entanto, são raros os dias em que essa dicotomia se apresenta assim, de maneira tão explícita, como na terça-feira (12).
Tudo muito mundano
Para uma “edição de feriado”, como avisa a Folha de S. Paulo no alto da primeira página, até que os diários reagiram bem ao insólito acontecimento. Dadas as circunstâncias, com as redações em ritmo de plantão e jornalistas trocando o dia pela noite, a cobertura não decepciona. Mas boa parte desse mérito cabe ao protagonista principal: Bento 16 poderia ter deixado para fazer seu anúncio mais tarde, diante do balcão que dá para a Praça de São Pedro, falando diretamente às centenas de fiéis que ali costumam se aglomerar, o que deixaria a imprensa com menos tempo para absorver o impacto da notícia. Mas ele preferiu falar aos seus pares, em latim, numa cerimônia discreta testemunhada por apenas quatro jornalistas presentes à sala de imprensa do Vaticano.
Com a vantagem do fuso horário, foi possível aos jornais brasileiros digerir a informação, mobilizar especialistas e reverter o espaço de cadernos planejados para o noticiário sobre o carnaval. Por essa razão central, os leitores dos jornais puderam conhecer já no dia seguinte as causas prováveis da renúncia, partilhar detalhes de teorias conspiratórias e apreciar os perfis apressados sobre a figura do papa renunciante.
Os estudiosos do catolicismo e do poder clerical tiveram espaço para fazer suas análises, antigos correspondentes foram convocados a dar sua visão sobre os bastidores da igreja católica, e as inevitáveis especulações sobre o sucessor ganham espaço: como sempre, há os que sonham com um papa brasileiro, os que esperam o papa africano e os saudosos da Teologia da Libertação, que celebram o fim do reinado de um pontífice ultraconservador.
Curiosamente, alguns textos permitem dar uma olhada no interior da vetusta organização religiosa e observar sinais de conflitos tipicamente mundanos: querelas políticas, eminências pardas, pecados encobertos, como os milhares de casos de pedofilia, e disputas de poder. Tudo muito mundano.
Quem aprecia a leitura sutil deve observar que, no Globo, a cobertura da renúncia do papa vem dentro do caderno de Economia. E termina com uma reportagem que mistura samba com religião, registrando as primeiras anedotas sobre o fim do reinado de Bento 16 publicadas nas redes sociais. Com a foto de um cidadão de nome Goldzweig fantasiado de papa num bloco carnavalesco, o jornal carioca capricha no título: “Agora o carnaval está como o diabo gosta”.
Surpreendidas pela decisão do pontífice, as sonolentas redações foram obrigadas a rever o planejamento feito para os dias de folia e a encontrar espaço para o inusitado acontecimento. O resultado é o retrato da esquizofrenia que se tornou característica da mídia tradicional.
O papa pode renunciar à representação oficial da divindade, mas a imprensa não pode abrir mão de mediar os festejos carnavalescos. O caráter esquizofrênico do noticiário fica exposto pela obrigatoriedade de agrupar as narrativas em espaços específicos, o que eventualmente implica colocar o fato histórico relevante lado a lado com as banalidades dos foliões.
Não é fácil conciliar duas temáticas tão controversas entre si, mesmo no formato digital, muito mais versátil do que o meio físico. No papel, o produto dessas escolhas vira uma espécie de Frankenstein.
Curiosamente, o jornal que encara esse desafio com mais leveza é o Globo, cuja sede fica na cidade onde o carnaval é uma razão de viver para milhões de pessoas. Na primeira página do jornal carioca, a renúncia do papa vem como tema principal, com manchete de lado a lado: “Trono vazio no Vaticano”. Abaixo da dobra, quase no rodapé, o assunto oficial da semana vira um título subalterno.
Os leitores são avisados de que o interior do jornal foi dividido em dois campos inconciliáveis. Sobre a manchete, vai uma chamada: “O sagrado”. Encimando o noticiário do carnaval, a antítese: “O profano”.
O conflito entre sagrado e o profano está presentes quase todo dia na imprensa, mais ou menos dissimulado nos assuntos que os editores consideram representativos da realidade do dia anterior. Trata-se de um aspecto do maniqueísmo que marca a visão de mundo da imprensa. No entanto, são raros os dias em que essa dicotomia se apresenta assim, de maneira tão explícita, como na terça-feira (12).
Tudo muito mundano
Para uma “edição de feriado”, como avisa a Folha de S. Paulo no alto da primeira página, até que os diários reagiram bem ao insólito acontecimento. Dadas as circunstâncias, com as redações em ritmo de plantão e jornalistas trocando o dia pela noite, a cobertura não decepciona. Mas boa parte desse mérito cabe ao protagonista principal: Bento 16 poderia ter deixado para fazer seu anúncio mais tarde, diante do balcão que dá para a Praça de São Pedro, falando diretamente às centenas de fiéis que ali costumam se aglomerar, o que deixaria a imprensa com menos tempo para absorver o impacto da notícia. Mas ele preferiu falar aos seus pares, em latim, numa cerimônia discreta testemunhada por apenas quatro jornalistas presentes à sala de imprensa do Vaticano.
Com a vantagem do fuso horário, foi possível aos jornais brasileiros digerir a informação, mobilizar especialistas e reverter o espaço de cadernos planejados para o noticiário sobre o carnaval. Por essa razão central, os leitores dos jornais puderam conhecer já no dia seguinte as causas prováveis da renúncia, partilhar detalhes de teorias conspiratórias e apreciar os perfis apressados sobre a figura do papa renunciante.
Os estudiosos do catolicismo e do poder clerical tiveram espaço para fazer suas análises, antigos correspondentes foram convocados a dar sua visão sobre os bastidores da igreja católica, e as inevitáveis especulações sobre o sucessor ganham espaço: como sempre, há os que sonham com um papa brasileiro, os que esperam o papa africano e os saudosos da Teologia da Libertação, que celebram o fim do reinado de um pontífice ultraconservador.
Curiosamente, alguns textos permitem dar uma olhada no interior da vetusta organização religiosa e observar sinais de conflitos tipicamente mundanos: querelas políticas, eminências pardas, pecados encobertos, como os milhares de casos de pedofilia, e disputas de poder. Tudo muito mundano.
Quem aprecia a leitura sutil deve observar que, no Globo, a cobertura da renúncia do papa vem dentro do caderno de Economia. E termina com uma reportagem que mistura samba com religião, registrando as primeiras anedotas sobre o fim do reinado de Bento 16 publicadas nas redes sociais. Com a foto de um cidadão de nome Goldzweig fantasiado de papa num bloco carnavalesco, o jornal carioca capricha no título: “Agora o carnaval está como o diabo gosta”.
1 comentários:
Até nessa hora a Igreja pisa na bola, pô, o cara não podia deixar passar o Carnaval para renunciar?
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