domingo, 2 de março de 2014

O carnaval na Criméia e a Rússia

Por Pepe Escobar

O tempo não espera ninguém, mas aparentemente vai esperar pela Criméia. O porta voz do parlamento da Criméia, Vladimir Konstantinov, confirmou que haverá um referendo sobre a autonomia da região em relação à Ucrânia em 25 de maio.

Até então, a Criméia será tão quente e fumegante como o carnaval do Rio - porque a questão da Criméia é toda a respeito de Sebastopol, o porto de escala privilegiada da esquadra russa no Mar Negro.

Se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é o touro, esta é a bandeira vermelha para dar fim à todas as bandeiras vermelhas. Mesmo que você esteja em um profundo nirvana alcoólico dançando e liberando seus problemas no carnaval do Rio - ou Nova Orleans, ou Veneza, ou Trinidad e Tobago - seu cérebro deve ter registrado que o sonho úmido definitivo da OTAN é comandar um governo fantoche na Ucrânia para chutar a marinha russa para fora de sua base em Sebastopol. A utilização do porto pelos russos está negociada até 2042. Ameaças e rumores sobre sua rejeição já haviam surgido.

A maioria absoluta da península da Criméia é habitada por "russian speakers" - cidadãos que tem o russo como primeira língua. Pouquíssimos ucranianos vivem lá. Em 1954, levou apenas 15 minutos para que o ucraniano Nikita Krushchev - aquele dos sapatos barulhentos no piso das Nações Unidas - para doar a Criméia como um presente para a Ucrânia (então parte da URSS). Na Rússia, a Criméia é vista como Russa. Nada muda este fato.

Nós não estamos diante de uma nova Guerra na Criméia - por enquanto. Somente por uma questão. O sonho úmido da OTAN é uma coisa; outra coisa é alcançá-lo - como dar um fim à rotina da esquadra Russa de atravessar o Mar Negro, partindo de Sebastopol, passando por Bosphorus e alcançando Tartus, o porto mediterrâneo Sírio. Então sim, trata-se tanto da Síria como da Criméia.

A nova revolução ucraniana Laranja, Tangerina, Campari, Aperol Spritz ou Tequila Sunrise parece muito longe de ter dado respostas satisfatórias aos devotos da OTAN. Mas é um longo e turbulento caminho para a OTAN reproduzir os anos de 1850 e remixar a Guerra da Criméia original.

Em um futuro previsível, estaremos afundando em um mar branco de banalidades. Como os "alertas" do supremo Chuck Hagen do Pentágono para que a Rússia fique fora da baderna, enquanto os Ministros de Defesa da OTAN requisitam montanhas de declarações (que ninguém lê) "demonstrando apoio" às novas lideranças, e mascates profissionais reassegurem à população de que não se trata de uma nova Guerra Fria (1).

Dancem para a minha estratégia, otários
Onde está H L Mencken quando precisamos dele? Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando as mentiras do sistema Pentágono/OTAN/CIA/Departamento de Estado. Especialmente agora, quando os políticos ucranianos parecem ter sido subcontratados pela administração Obama, por figuras semelhantes à neo-conservadora Victoria "F**se a UE" Nuland, casada com o queridinho de Dubya [*], o neo-conservador Robert Kagan.

Assim como Immanuel Wallerstein (2) já alertou, Nuland, Kagan e a gangue neo-conservadora está tão aterrorizada com a "dominação" russa na Ucrânia, quanto com uma emergência gradual, e eventualmente possível, de uma aliança geopolítica entre a Alemanha (com a França de coadjuvante) e a Rússia. Isso significaria o coração da União Européia forjando um contraponto ao diminuido e vacilante poder Americano.

E como a personificação atual do vacilante poder Americano, a administração Obama está em uma situação peculiar. Eles estão agora perdidos como sua própria e auto-atribuída confusão de pivôs. Qual pivô vem primeiro? Será a China? Mas então precisamos tratar do Irã primeiro - para terminar com a questão do Oriente Médio. Ou talvez não.

Tomem está máxima pronunciada pelo Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, sobre o Irã: "Nós tomamos a iniciativa e avançamos com os esforços para tentar descobrir se antes de partirmos para a guerra realmente pode haver uma solução pacífica".

Então, de repente, não se trata mais de um acordo nuclear que possa ser alcançado em 2014; é sobre "se antes de partirmos para a guerra". É sobre o bombardeio de um possível acordo para que o Império possa bombardear um país - novamente. Ou talvez seja apenas um sonho úmido provido pelos fantoches máximos, os Likudnik.

O grande Michael Hudson tem especulado que o "xadrez multi-dimensional" pode estar "guiando os movimentos dos EUA na Ucrânia". Não mesmo. Parece mais o fato de que se não podem mirar na China - ainda - e se a investida no Irã irá fracassar de qualquer forma (porque querem isto), nós podem mirar em outros. Ah sim, mas há aquele lugar desagradável que os impediu de bombardear a Síria; chamado Rússia. E tudo isso sob a profunda liderança de Victoria "F**se a UE" Nuland. Onde estará o novo Aristophanes para fazer as crônicas destas maravilhas?

E nunca esqueçam a mídia corporativa norte-americana. A corte da CNN esteve "Amanpouring" [**] ultimamente sobre o Acordo de Budapeste - sublinhando que a Rússia deveria ficar fora da Ucrânia. Perceptivelmente, uma horda de produtores "índices-de-audiência-caindo-ao-chão" da CNN nem mesmo leu o Acordo de Budapeste, que, segundo o professor da Universidade de Illinois Francis Boyle destacou, "também aponta que os EUA, a Rússia, a Ucrânia e o Reino Unido devem ser consultados conjuntamente - o que significa que devem se reunir pelo menos os ministros de relações exteriores".

Então, quem paga a conta?
O novo Primeiro Ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, é - o que mais seria? - um "reformista tecnocrata" - o mesmo que um fantoche do Ocidente (3). A Ucrânia é um buraco sem fundo. A moeda caiu 20% desde o início de 2014. Milhões de desempregados europeus sabem que a União Européia não tem recursos para ajudar o país (talvez os ucranianos possam pedir ao ex-Primeiro Ministo italiano Silvio Berlusconi por alguma ajuda).

Falando na língua do "Oleogasodustão", a Ucrânia é um apêndice da Rússia; é o gás da Rússia que transita através da Ucrânia para o mercado Europeu. E a indústria ucraniana depende do mercado russo.

Vejamos mais de perto como está a carteira da nova onda revolucionária Aperol Spritz. Todo mês, a conta da importação de gás natural da Rússia fica em torno de US$ 1 bilhão. Em janeiro o país precisou gastar US$ 1.1 bilhões em refinanciamento da dívida. As reservas de moeda estrangeira passaram de US$ 20.4 bilhões para US$ 17 bilhões em 2014. Eles ainda tiveram que cancelar US$ 2 bilhões em eurobônus semana passada.

Honestamente, o Presidente da Rússia Vladimir Putin - Vlad do Martelo - deve estar gargalhando como o gato Cheshire [***]. Ele poderia simplesmente apagar o desconto significativo de 33% do gás importado que ele deu a Kiev no ano passado. Rumores sobre rumores já alertaram - de modo nefasto - que os revolucionários da Aperol Spritz não terão como pagar as pensões e os salários dos servidores públicos. Em junho chega uma conta monstruosa a uma série de credores (chegará a US$ 1 bilhão em dívidas). Depois disso, vai ser mais frio do que a Sibéria no inverno.

A oferta de US$ 1 bilhão dos EUA é risível. E tudo isso após a estratégia "F**se a UE" de Victoria Nuland ter sido torpedeada pelo governo de transição da Ucrânia - a propósito, negociada pela UE e que deve ter mantido os russos no jogo, por sabedoria financeira.

Sem a Rússia a Ucrânia dependerá inteiramente do Ocidente para pagar suas contas, sem mencionar o risco de bancarrota. O que equivale a um montante de US$ 30 bilhões até o fim de 2014. Diferentemente do Egito, eles não podem ligar para a casa dos Sauditas e pedir alguma ajuda em petrodólares. Aqueles US$ 15 bilhões de empréstimo prometidos pela Rússia recentemente podem ser uma mão na roda - mas Moscou precisa ter algo em troca.

A percepção de que Putin ordenará um ataque militar à Ucrânia deveria cair na conta dos intelectuais sub-zoologicos da mídia corporativa estadunidense. Vlad do Martelo só precisa assistir ao circo - tal qual o regateio ocidental para saber onde pegar aqueles bilhões que serão atirados em um buraco sem fundo. Ou o FMI fabricando mais um horrendo "ajuste estrutural" para mandar a população ucraniana de volta ao Paleolítico.

A Criméia poderia até mesmo antecipar a encenação do seu carnaval retardado, votando não só por mais autonomia, mas pelo abandono completo do buraco sem fundo. Neste caso, Putin levaria a Criméia de graça - no estilo Krushcev. Não seria um mal negócio. Graças àquela opção estratégica "F**se a UE" pelo pivô russo.


* Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.

Livros:

- Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.


* Fonte: http://www.opednews.com/articles/1/Carnival-in-Crimea-by-Pepe-Escobar-America_Crimea_Pentagon_Putin-140301-655.html

Notas do autor:
1- EUA e Grã Bretanha dizem que a Ucrânia não é um campo de batalha entre Oriente e Ocidente, Daily Telegraph, 26 de fevereiro de 2014.
2- Immanuel Wallerstein - La geopolítica del cisma en Ucrania - em: http://www.jornada.unam.mx/2014/02/22/index.php?section=opinion&article=022a1mun
3- Biden: os EUA apoiam o novo governo da Ucrânia, Voice of America, 27 de fevereiro de 2014.

Notas da tradutora:

[*] apelido jocoso de Bush.
[**] referência à Christiane Amanpour - âncora da CNN.
[***] personagem do livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol.
* Tradução de Ana Prestes

3 comentários:

Anônimo disse...

Caro Pepe

Brilhante como sempre. Obrigado pela clareza da reportagem, mas repito, não se engane que se houver golpe branco no BRASIL (eu acho que haverá, os EUA não estão mais aguentando o PT no governo. Aecim, presidente), haverá caça as bruxas por que vc sabe muito bem que num estalar dedos dos CIA/NSA/Washington nós seremos agraciados com favores já muito conhecido: Honduras, Venezuela, Equador, Ucrânia, Myanmar, Panamá, Egito, Tunísia, Líbia (atual), ...., tá lembrado do "Ouro para o bem do BRASIL". Te cuida! Não confio neles em nada!

Anônimo disse...

Esqueci.

enganado

Anônimo disse...

Se eu tivesse sabido antes que esse
cidadão só publica em 'ingreis' não
teria perdido meu tempo com esse
apátrida.Pêsames.