Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
O noticiário de terça-feira (14/4) ainda faz o rescaldo das manifestações realizadas no domingo anterior, e os principais diários de circulação nacional tentam compor um quadro no qual a cena central é o movimento da própria imprensa em favor do impeachment da presidente da República.
O conteúdo das reportagens sobre a crise política, editoriais, artigos e até algumas notas daquelas colunas de inconfidências e fofocas convergem para uma ideia estapafúrdia: justificar um pedido de interrupção do mandato da presidente com base numa pesquisa Datafolha. A lógica dessa manobra depõe não apenas contra a honestidade intelectual dos autores da ideia e dos editores que a abrigam, mas chega a lançar uma sombra de dúvida sobre a sanidade das mentes que conduzem as decisões editoriais da mídia tradicional.
Trata-se do seguinte: se o Datafolha registra que 63% dos consultados são a favor de um processo de impeachment, então há uma maioria de brasileiros que querem reverter o resultado das eleições. Observe-se que não se está falando apenas da lógica falaciosa que se tornou parte central do discurso jornalístico no Brasil. Diferente do paralogismo – que, segundo filósofos e estudiosos da linguística, não é produzido de má-fé, com intenção de enganar, mas nasce da ignorância de quem o produz –, o que estamos observando é a utilização de sofismas maliciosos como suporte para uma proposta moralmente indefensável.
O editorial do Estado de S. Paulo merece ser guardado para uma leitura mais criteriosa, longe do calor da atual crise política (ver “O não a Dilma persiste”). O núcleo de seu raciocínio está na seguinte frase: “O apoio popular ao impeachment de Dilma Rousseff existe, por ampla maioria, como comprovam as pesquisas de opinião pública”. Restaria, apenas, segundo o raciocínio do jornal, “caracterizar a base legal para levar a presidente da República a julgamento”.
Não seja por isso: em perfeita sintonia com a imprensa, o PSDB escala, para “caracterizar a base legal”, o jurista Miguel Reale Jr., que herdou do pai o nome honrado mas ainda luta para compor sua própria biografia. Uma vez que a primeira tentativa, pelas mãos do tributarista Ives Gandra Martins, não produziu efeito, convoca-se o Júnior para a tarefa controversa.
Risco de descontrole
A estratégia de revestir a proposta de impeachment com uma embalagem de legitimidade inclui uma seleção das bases que o jornal paulista chama de “apoio popular” – por isso, a imprensa isolou as facções que defendem o golpe militar puro e simples, e outros propagandistas de ações violentas, que alguns líderes das manifestações chamam de “neuróticos alucinados”. A imprensa reconhece agora como válidos apenas os grupos intitulados “Movimento Brasil Livre” e “Vem pra Rua”.
A mídia tradicional quer substituir o processo eleitoral pelos editoriais, criando a nova receita pela qual o Datafolha vai às ruas, no momento em que se articulam as manifestações, e “constata” a aceitação, por uma maioria contingencial, de um processo de impeachment. Daí, essa aceitação da hipótese de um processo é transformada em verdade absoluta, por meio de artigos, editoriais e reportagens baseadas em declarações.
Em texto analítico (ver aqui), o Estado de S. Paulo apresenta uma visão oposta à que tem sido aqui oferecida, segundo a qual a imprensa brasileira se comporta como o Tea Party, organização de extrema-direita que mobiliza os setores mais conservadores do Partido Republicano nos Estados Unidos. O jornal tenta desvincular movimentos golpistas surgidos na internet, e abrigados pela mídia, da ação de orientação partidária que caracteriza o Tea Party, mas a manobra para legitimar a proposta de impeachment demonstra que a imprensa cria uma agenda favorável a essa oposição que não se conforma com o resultado das urnas.
Os artífices do impeachment teriam que negociar, paralelamente, uma blindagem para Renan Calheiros e Eduardo Cunha, na sequência do caso Lava Jato, e apoiar a agenda conservadora que vai tramitando no Congresso à sombra da crise: propostas como liberação do porte de armas, redução da maioridade penal e extinção de direitos civis e trabalhistas.
Parte do PSDB, que, segundo alguns colunistas, rejeita uma guinada à direita, recomenda cautela, mas alguns de seus aliados, em especial os antigos comunistas do PPS, forçam a agenda do golpe dissimulado.
Resta saber até onde iria a imprensa. Um processo como esse carrega um alto risco de descontrole, porque não se sabe com se comportariam os que votaram em Dilma Rousseff. Eles não leem o editorial do Estado. Eles não usam black-tie.
O conteúdo das reportagens sobre a crise política, editoriais, artigos e até algumas notas daquelas colunas de inconfidências e fofocas convergem para uma ideia estapafúrdia: justificar um pedido de interrupção do mandato da presidente com base numa pesquisa Datafolha. A lógica dessa manobra depõe não apenas contra a honestidade intelectual dos autores da ideia e dos editores que a abrigam, mas chega a lançar uma sombra de dúvida sobre a sanidade das mentes que conduzem as decisões editoriais da mídia tradicional.
Trata-se do seguinte: se o Datafolha registra que 63% dos consultados são a favor de um processo de impeachment, então há uma maioria de brasileiros que querem reverter o resultado das eleições. Observe-se que não se está falando apenas da lógica falaciosa que se tornou parte central do discurso jornalístico no Brasil. Diferente do paralogismo – que, segundo filósofos e estudiosos da linguística, não é produzido de má-fé, com intenção de enganar, mas nasce da ignorância de quem o produz –, o que estamos observando é a utilização de sofismas maliciosos como suporte para uma proposta moralmente indefensável.
O editorial do Estado de S. Paulo merece ser guardado para uma leitura mais criteriosa, longe do calor da atual crise política (ver “O não a Dilma persiste”). O núcleo de seu raciocínio está na seguinte frase: “O apoio popular ao impeachment de Dilma Rousseff existe, por ampla maioria, como comprovam as pesquisas de opinião pública”. Restaria, apenas, segundo o raciocínio do jornal, “caracterizar a base legal para levar a presidente da República a julgamento”.
Não seja por isso: em perfeita sintonia com a imprensa, o PSDB escala, para “caracterizar a base legal”, o jurista Miguel Reale Jr., que herdou do pai o nome honrado mas ainda luta para compor sua própria biografia. Uma vez que a primeira tentativa, pelas mãos do tributarista Ives Gandra Martins, não produziu efeito, convoca-se o Júnior para a tarefa controversa.
Risco de descontrole
A estratégia de revestir a proposta de impeachment com uma embalagem de legitimidade inclui uma seleção das bases que o jornal paulista chama de “apoio popular” – por isso, a imprensa isolou as facções que defendem o golpe militar puro e simples, e outros propagandistas de ações violentas, que alguns líderes das manifestações chamam de “neuróticos alucinados”. A imprensa reconhece agora como válidos apenas os grupos intitulados “Movimento Brasil Livre” e “Vem pra Rua”.
A mídia tradicional quer substituir o processo eleitoral pelos editoriais, criando a nova receita pela qual o Datafolha vai às ruas, no momento em que se articulam as manifestações, e “constata” a aceitação, por uma maioria contingencial, de um processo de impeachment. Daí, essa aceitação da hipótese de um processo é transformada em verdade absoluta, por meio de artigos, editoriais e reportagens baseadas em declarações.
Em texto analítico (ver aqui), o Estado de S. Paulo apresenta uma visão oposta à que tem sido aqui oferecida, segundo a qual a imprensa brasileira se comporta como o Tea Party, organização de extrema-direita que mobiliza os setores mais conservadores do Partido Republicano nos Estados Unidos. O jornal tenta desvincular movimentos golpistas surgidos na internet, e abrigados pela mídia, da ação de orientação partidária que caracteriza o Tea Party, mas a manobra para legitimar a proposta de impeachment demonstra que a imprensa cria uma agenda favorável a essa oposição que não se conforma com o resultado das urnas.
Os artífices do impeachment teriam que negociar, paralelamente, uma blindagem para Renan Calheiros e Eduardo Cunha, na sequência do caso Lava Jato, e apoiar a agenda conservadora que vai tramitando no Congresso à sombra da crise: propostas como liberação do porte de armas, redução da maioridade penal e extinção de direitos civis e trabalhistas.
Parte do PSDB, que, segundo alguns colunistas, rejeita uma guinada à direita, recomenda cautela, mas alguns de seus aliados, em especial os antigos comunistas do PPS, forçam a agenda do golpe dissimulado.
Resta saber até onde iria a imprensa. Um processo como esse carrega um alto risco de descontrole, porque não se sabe com se comportariam os que votaram em Dilma Rousseff. Eles não leem o editorial do Estado. Eles não usam black-tie.
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