Por Rafael Evangelista, no site Outras Palavras:
Em julho, fui convidado para uma mesa sobre direitos humanos e internet no Fórum da Internet, realizado pelo Comitê Gestor (CGI). Na ocasião defendi, entre outros pontos, que os grandes negócios da internet de hoje se baseiam em vigilância e, no limite, em uma violação cotidiana da privacidade dos usuários das diversas plataformas. Na mesa estava também um representante do Google, que rechaçou a afirmação, apontando que, tecnicamente, juridicamente, não se tratava de violação de privacidade, pois todos aceitamos termos de uso que autorizam as empresas a coletar dados.
Parte da audiência protestou, não reconhecendo esse caráter “voluntário” da adesão aos termos de uso. São longos, complexos, abusivos e feitos para não serem lidos. Usar ou não usar essas plataformas está longe de ser uma escolha livre das pessoas, somos levados a aceitar os termos não porque concordamos com eles, mas porque estar fora de muitas dessas redes sociais e plataformas da internet em parte significa isolar-se socialmente e mesmo profissionalmente.
Mas, para além dos termos de uso, esse debate nos permite discutir aspectos importantes do mercado atual de internet, mostrando como os dados trocados entre as pessoas na rede são o combustível que alimenta o motor de lucro das grandes empresas.
É lugar comum nos cursos de comunicação o professor perguntar aos alunos, logo quando ingressam, qual é o real produto vendido pelo jornal. Com misto de incredulidade e surpresa, ouvem que a mercadoria ali não é a notícia, mas o leitor. É ele, a mirada de seus olhos no papel, que será vendida ao anunciante. Da mesma forma, é a atenção de milhões de pessoas presas à tela da tevê que vai justificar os milhares de reais pagos pelos vendedores de produtos às emissoras que exploram o espectro eletromagnético e fazem televisão.
Até aí, sem muita novidade, na internet isso também acontece. “No Facebook o produto é você” é uma frase popular e igualmente verdadeira: quanto mais usuários na rede social, mais valor de mercado ganha a empresa. É aspecto da economia dos sistemas de informação, a escassez de atenção que se dá pelo excesso de produção informativa. Nosso tempo consumindo mídia se tornou um bem escasso, já que há tanta produção de mídia por aí.
Prender a atenção das pessoas é algo crucial e essa é uma das razões que fazem as redes sociais viverem mexendo nos algoritmos que determinam o que vemos e o que não vemos nos nossos feeds, nas nossas linhas do tempo. Num polêmico estudo, o Facebook alterou os posts que seriam vistos normalmente pelos usuários, para testar como variaria seu humor. “Para nós, é importante o impacto emocional do Facebook nas pessoas que o usam, por isso fizemos o estudo. Sentíamos que era importante avaliar se ver conteúdo positivo dos amigos os fazia continuar dentro, ou se o fato de que o que se contava era negativo os convidada a não visitar o Facebook. Não queríamos irritar ninguém”, escreveu um dos coautores do estudo
Ter contato com algo muito contrário ao que acreditamos nos causa cansaço, repulsa; algo muito semelhante à nossa opinião nos dá tédio, é repetição. Como um cassino que quer prender os jogadores o máximo de tempo em frente aos caça-níqueis, as redes querem os usuários deslizando os dedos na tela, buscando por incessantes novidades de seus “amigos”.
Contudo, a elogiada interatividade da internet, a troca em mão dupla das informações na rede, dá novas características a essa relação comercial da economia da atenção. Além de receberem informações, os usuários também as enviam, mesmo involuntariamente, e isso é incorporado pelas empresas numa espiral de valorização que vai além dos mecanismos tradicionais. Seus próprios dados de usuário não têm valor comercial para quem os produz, mas ao serem circulados pelas empresas tornam-se um produto com valor de mercado ou um insumo ao aprimoramento da publicidade. Ninguém em sã consciência pensaria em cobrar por um post no Facebook, ou pela visualização de uma foto no Instagram ou por uma piadinha no Twitter. Para o amigo que vê aquilo tem valor de uso, informa ou diverte. Mas, se o produtor tentasse cobrar por isso dificilmente encontraria compradores. Já dados de navegação, lista de amigos, buscas na internet são de valor ainda menos evidente e impossíveis de serem colocados no mercado, por seus próprios produtores, em unidades comercializáveis. Porém, quando organizadas em grandes conjuntos, pelas plataformas que se tornam legalmente proprietárias dos dados que doamos ao assinarmos os famigerados termos de uso, essas informações viram algo muito bem pago.
Recentemente, o Facebook obteve direitos comerciais exclusivos sobre a maneira como os usuário estão conectados em uma rede. Basicamente, patenteou a possibilidade de uso comercial das listas de amigos. Uma das aplicações imediatas, registrada na patente, é odigital redlining, a prática de usar a informação sobre quem são seus amigos para conceder ou negar crédito. Como o Facebook não está no ramo de emprestar dinheiro, supõe-se que ele vá vender esse serviço a bancos, ou seja, lucrará com a informação sobre quem são os nossos amigos na rede.
Quando acusadas, durante o caso Snowden, de coletarem dados pessoais de seus usuários, os mesmos que acabaram sendo utilizados pela NSA, as empresas defenderam-se afirmando a anonimização, o que quer dizer que elas retirariam a ligação entre o dado de identificação e os dados produzidos pelos usuários. Porém, anonimizados ou não, os dados, manipulados como metadados (dados sobre dados), são úteis para tornarem a publicidade mais direcionada e efetiva e, por isso, com maior valor de mercado. Não apenas o fato de alguém marcar o seu time do coração com um like, ou dizer que assistiu o filme x ou y é algo incorporado, mas os comentários sobre a mais recente vitória do Palmeiras ou a menção feita a um amigo sobre o último show visto ajudam a melhorar a precisão da publicidade, que agora é individualizada. Tudo o que se faz ou diz nas redes, toda produção ou exibição de gosto pessoal, acaba servindo ao marketing ou à valorização de bens vendidos no mercado.
O mesmo vale para a navegação rastreada por cookies, aquelas pistas que vamos deixando dos sites acessados e que se tornam informação usada para direcionar a publicidade. Esta em geral nem será vista ali, por onde se passou, mas no site de um terceiro.
Ao ser lançado, o hoje hegemônico Gmail causou um certo incômodo público, já que seu modelo de negócio, a maneira escolhida para financiar o então inédito espaço de armazenamento oferecido ao usuário, passa por um bisbilhotar ativo do que se escrevem na mensagem. Ainda que por um robô, toda comunicação trocada via Gmail é lida e informa os bancos de dados do Google. A princípio, isso é utilizado para mostrar uma publicidade direcionada ao próprio usuário, mas nada impede que seja também usada como um termômetro do mercado. Pode servir para antecipar a produção de algum produto, cuja demanda potencial foi medida e estaria prestes a aumentar. Ou até mesmo orientar a compra de ações da empresa responsável por essa produção.
O usuário não precisa nem apertar da tecla “enter” de seu computador para ter a informação processada, como mostram as sugestões de complemento para as buscas feitas automaticamente pelo Google Search. O mesmo vale para textos no Facebook, que já usou a autocensura dos usuários, aquilo que eles escrevem mas acabam não enviando, como objeto de estudo. Seja em pesquisas, seja em melhoramento direto e automatizado do mecanismo de busca, essas entradas de dados dos usuários servem para melhorar – e valorizar comercialmente – as plataformas de busca e sociais.
Google, Facebook, Twitter e outros não produzem conteúdo, apenas intermediam trocas comunicativas e operam seleções personalizadas sobre o que é trocado. O objetivo é reter a atenção e, ao mesmo tempo, estimular mais produção de comunicação entre os usuários, que entretêm a si mesmos, seja com produção criativa própria, seja com seleção de material jornalístico, informativo, artístico ou de entretenimento encontrado na web pelas próprias pessoas.
O lucro, por sua vez, não está somente na intermediação, mas em um conjunto de práticas de rastreio, vigilância, armazenamento, processamento e apropriação privada de dados. São elas que permitem o melhoramento dos serviços das plataformas e a constituição de novos produtos informacionais, que servem a todo um conjunto de atores do mercado capitalista.
As empresas de tecnologia da informação estão hoje entre as maiores do mundo, junto com bancos e empresas de petróleo, e se sobressaem por sua lucratividade aliada ao baixo uso de mão de obra. Entender melhor a natureza do enriquecimento dessas empresas, buscando destrinchar no que se baseia esse crescimento é vital para enfrentar em lutas concretas as desigualdades que o capitalismo produz.
Em julho, fui convidado para uma mesa sobre direitos humanos e internet no Fórum da Internet, realizado pelo Comitê Gestor (CGI). Na ocasião defendi, entre outros pontos, que os grandes negócios da internet de hoje se baseiam em vigilância e, no limite, em uma violação cotidiana da privacidade dos usuários das diversas plataformas. Na mesa estava também um representante do Google, que rechaçou a afirmação, apontando que, tecnicamente, juridicamente, não se tratava de violação de privacidade, pois todos aceitamos termos de uso que autorizam as empresas a coletar dados.
Parte da audiência protestou, não reconhecendo esse caráter “voluntário” da adesão aos termos de uso. São longos, complexos, abusivos e feitos para não serem lidos. Usar ou não usar essas plataformas está longe de ser uma escolha livre das pessoas, somos levados a aceitar os termos não porque concordamos com eles, mas porque estar fora de muitas dessas redes sociais e plataformas da internet em parte significa isolar-se socialmente e mesmo profissionalmente.
Mas, para além dos termos de uso, esse debate nos permite discutir aspectos importantes do mercado atual de internet, mostrando como os dados trocados entre as pessoas na rede são o combustível que alimenta o motor de lucro das grandes empresas.
É lugar comum nos cursos de comunicação o professor perguntar aos alunos, logo quando ingressam, qual é o real produto vendido pelo jornal. Com misto de incredulidade e surpresa, ouvem que a mercadoria ali não é a notícia, mas o leitor. É ele, a mirada de seus olhos no papel, que será vendida ao anunciante. Da mesma forma, é a atenção de milhões de pessoas presas à tela da tevê que vai justificar os milhares de reais pagos pelos vendedores de produtos às emissoras que exploram o espectro eletromagnético e fazem televisão.
Até aí, sem muita novidade, na internet isso também acontece. “No Facebook o produto é você” é uma frase popular e igualmente verdadeira: quanto mais usuários na rede social, mais valor de mercado ganha a empresa. É aspecto da economia dos sistemas de informação, a escassez de atenção que se dá pelo excesso de produção informativa. Nosso tempo consumindo mídia se tornou um bem escasso, já que há tanta produção de mídia por aí.
Prender a atenção das pessoas é algo crucial e essa é uma das razões que fazem as redes sociais viverem mexendo nos algoritmos que determinam o que vemos e o que não vemos nos nossos feeds, nas nossas linhas do tempo. Num polêmico estudo, o Facebook alterou os posts que seriam vistos normalmente pelos usuários, para testar como variaria seu humor. “Para nós, é importante o impacto emocional do Facebook nas pessoas que o usam, por isso fizemos o estudo. Sentíamos que era importante avaliar se ver conteúdo positivo dos amigos os fazia continuar dentro, ou se o fato de que o que se contava era negativo os convidada a não visitar o Facebook. Não queríamos irritar ninguém”, escreveu um dos coautores do estudo
Ter contato com algo muito contrário ao que acreditamos nos causa cansaço, repulsa; algo muito semelhante à nossa opinião nos dá tédio, é repetição. Como um cassino que quer prender os jogadores o máximo de tempo em frente aos caça-níqueis, as redes querem os usuários deslizando os dedos na tela, buscando por incessantes novidades de seus “amigos”.
Contudo, a elogiada interatividade da internet, a troca em mão dupla das informações na rede, dá novas características a essa relação comercial da economia da atenção. Além de receberem informações, os usuários também as enviam, mesmo involuntariamente, e isso é incorporado pelas empresas numa espiral de valorização que vai além dos mecanismos tradicionais. Seus próprios dados de usuário não têm valor comercial para quem os produz, mas ao serem circulados pelas empresas tornam-se um produto com valor de mercado ou um insumo ao aprimoramento da publicidade. Ninguém em sã consciência pensaria em cobrar por um post no Facebook, ou pela visualização de uma foto no Instagram ou por uma piadinha no Twitter. Para o amigo que vê aquilo tem valor de uso, informa ou diverte. Mas, se o produtor tentasse cobrar por isso dificilmente encontraria compradores. Já dados de navegação, lista de amigos, buscas na internet são de valor ainda menos evidente e impossíveis de serem colocados no mercado, por seus próprios produtores, em unidades comercializáveis. Porém, quando organizadas em grandes conjuntos, pelas plataformas que se tornam legalmente proprietárias dos dados que doamos ao assinarmos os famigerados termos de uso, essas informações viram algo muito bem pago.
Recentemente, o Facebook obteve direitos comerciais exclusivos sobre a maneira como os usuário estão conectados em uma rede. Basicamente, patenteou a possibilidade de uso comercial das listas de amigos. Uma das aplicações imediatas, registrada na patente, é odigital redlining, a prática de usar a informação sobre quem são seus amigos para conceder ou negar crédito. Como o Facebook não está no ramo de emprestar dinheiro, supõe-se que ele vá vender esse serviço a bancos, ou seja, lucrará com a informação sobre quem são os nossos amigos na rede.
Quando acusadas, durante o caso Snowden, de coletarem dados pessoais de seus usuários, os mesmos que acabaram sendo utilizados pela NSA, as empresas defenderam-se afirmando a anonimização, o que quer dizer que elas retirariam a ligação entre o dado de identificação e os dados produzidos pelos usuários. Porém, anonimizados ou não, os dados, manipulados como metadados (dados sobre dados), são úteis para tornarem a publicidade mais direcionada e efetiva e, por isso, com maior valor de mercado. Não apenas o fato de alguém marcar o seu time do coração com um like, ou dizer que assistiu o filme x ou y é algo incorporado, mas os comentários sobre a mais recente vitória do Palmeiras ou a menção feita a um amigo sobre o último show visto ajudam a melhorar a precisão da publicidade, que agora é individualizada. Tudo o que se faz ou diz nas redes, toda produção ou exibição de gosto pessoal, acaba servindo ao marketing ou à valorização de bens vendidos no mercado.
O mesmo vale para a navegação rastreada por cookies, aquelas pistas que vamos deixando dos sites acessados e que se tornam informação usada para direcionar a publicidade. Esta em geral nem será vista ali, por onde se passou, mas no site de um terceiro.
Ao ser lançado, o hoje hegemônico Gmail causou um certo incômodo público, já que seu modelo de negócio, a maneira escolhida para financiar o então inédito espaço de armazenamento oferecido ao usuário, passa por um bisbilhotar ativo do que se escrevem na mensagem. Ainda que por um robô, toda comunicação trocada via Gmail é lida e informa os bancos de dados do Google. A princípio, isso é utilizado para mostrar uma publicidade direcionada ao próprio usuário, mas nada impede que seja também usada como um termômetro do mercado. Pode servir para antecipar a produção de algum produto, cuja demanda potencial foi medida e estaria prestes a aumentar. Ou até mesmo orientar a compra de ações da empresa responsável por essa produção.
O usuário não precisa nem apertar da tecla “enter” de seu computador para ter a informação processada, como mostram as sugestões de complemento para as buscas feitas automaticamente pelo Google Search. O mesmo vale para textos no Facebook, que já usou a autocensura dos usuários, aquilo que eles escrevem mas acabam não enviando, como objeto de estudo. Seja em pesquisas, seja em melhoramento direto e automatizado do mecanismo de busca, essas entradas de dados dos usuários servem para melhorar – e valorizar comercialmente – as plataformas de busca e sociais.
Google, Facebook, Twitter e outros não produzem conteúdo, apenas intermediam trocas comunicativas e operam seleções personalizadas sobre o que é trocado. O objetivo é reter a atenção e, ao mesmo tempo, estimular mais produção de comunicação entre os usuários, que entretêm a si mesmos, seja com produção criativa própria, seja com seleção de material jornalístico, informativo, artístico ou de entretenimento encontrado na web pelas próprias pessoas.
O lucro, por sua vez, não está somente na intermediação, mas em um conjunto de práticas de rastreio, vigilância, armazenamento, processamento e apropriação privada de dados. São elas que permitem o melhoramento dos serviços das plataformas e a constituição de novos produtos informacionais, que servem a todo um conjunto de atores do mercado capitalista.
As empresas de tecnologia da informação estão hoje entre as maiores do mundo, junto com bancos e empresas de petróleo, e se sobressaem por sua lucratividade aliada ao baixo uso de mão de obra. Entender melhor a natureza do enriquecimento dessas empresas, buscando destrinchar no que se baseia esse crescimento é vital para enfrentar em lutas concretas as desigualdades que o capitalismo produz.
1 comentários:
Respondeu a minha dúvida sobre: como WhatsApp ganha dinheiro, no caso, agora o Facebook, que não veicula nenhuma publicidade no App, mas mesmo assim pagou alguns bilhões pelo serviço.
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