Por Tarso Genro
Herzog, o torturado personagem de Saul Below, no seu romance do mesmo nome, num dos seus delírios escreve mentalmente uma carta a Heidegger, na qual pergunta: “Caro ‘doktor’ professor Heidegger, eu gostaria de saber o que o senhor quer dizer com a expressão ‘a queda no cotidiano’. Quando ocorreu essa queda? Onde estávamos quando ela aconteceu?” A pergunta angustiada do autor do romance – pela boca do seu principal personagem- me trouxe imediatamente à memória uma outra pergunta, formulada por Manuel Castells, no seu livro que já nasceu clássico, “Redes de indignação e esperança” (posfácio à edição brasileira), no qual ele se interroga: “Seria uma esperança vã essa volta à normalidade controlada’?”.
Saul Below dramatiza as dúvidas do indivíduo perdido na sociedade que começava a construir novas referências de consumo que, ao fim e ao cabo, tomaram conta da vida comum americana. Castells indaga se depois dos movimentos de junho de 2013 tudo voltaria ao normal, no Brasil, que fora sacudido por fortes movimentos sem demandas unitárias. Mas demandas que trouxeram à tona, no país, inconformidades de todas as ordens: com a democracia, com o capitalismo, com a corrupção, com claros apelos, também, à volta de um regime de força.
A resposta a Castells é mais simples, pois já voltamos à “normalidade controlada” e nela a crise se aprofunda. Mas, quando ocorreu, no país, a “queda no cotidiano”, como pergunta Herzog? E porque a pergunta de Herzog, sobre o cotidiano, é bem mais difícil de responder? Na verdade, apesar de estarmos no limite de uma época de ineficácia da democracia, de crise estrutural dos partidos políticos que chegam aos governos, de submissão completa do Estado à tutela do capitalismo financeiro global (que bloqueia radicalmente as funções públicas do Estado) -apesar deste limite próximo ao abismo- as forças políticas, que se identificam com a democracia, não compuseram uma agenda mínima para mudá-la. Mudá-la para melhor, para salvá-la das suas próprias contradições e ambiguidades, para fazê-la descer ao terreno herege onde vive a cidadania aflita.
É óbvio que não tenho respostas para isso. Nenhum de nós, porém, está impedido de ter opiniões, num mundo em que, até agora, se teorizou bastante sobre a crise econômica do capitalismo, mas não o suficiente sobre as suas relações com a democracia. Nem com a agenda dos direitos humanos, com as guerras que assolam o planeta e com as desigualdades que se alimentam de cada momento de reorganização do sistema, e assim prosperam. O Prêmio Nobel de Economia, professor Maurice Allais, já advertira na década de 80 que “o mundo se converteu num vasto cassino, onde as mesas do jogo estão expostas em todas as longitudes e em todas as latitudes”. Creio que as pessoas sensatas, embora possam divergir sobre como enfrentar esta situação, concordam com o diagnóstico de que vivemos uma irracionalidade financeira global sem precedentes. E que, se ela não for enfrentada dentro da democracia, será enfrentada por regimes de força, fora dela. Assim como está, não vai ficar.
Numa sociedade globalizada, de relações em rede, na qual a política flui sem respeitar as fronteiras nacionais, em que as decisões econômicas sobre o futuro são tomadas em lugares distantes da soberania interna; numa sociedade em que há uma flagrante redução da força política do Estado para decidir (premido pela dívida pública); nesta sociedade global, tanto os Estados organizados de forma vertical (no qual os governantes são separados da cidadania após cada eleição), como os partidos político, também organizados de forma vertical (longe das suas “bases”), tem escassas condições de reagir.
Mas o que seria reagir? Seria ter a capacidade de implementar projetos e políticas públicas, que transformassem a “dependência subordinada” em “cooperação interdependente com soberania”. Mais simples: é uma etapa em que o velho “imperialismo” – pela hegemonia do capital financeiro- se apropriou do Estado sem intervenção militar, através do controle sobre a dívida e pela arbitragem dos seus juros. Por seu turno, os partidos -que desejam um país soberano e socialmente justo- continuam na sua forma de organização tradicional, verticalizada e distante de uma sociedade que funciona principalmente em redes horizontais. Nesta sociedade, a opinião não se forma mais a partir de “grandes narrativas” que podem ser transmitidas de “cima para baixo”, mas através da vivência do cotidiano, aparentemente sem história. Ou no acesso ao consumo manipulado, que trata a todos – ilusoriamente – sem diferenças, com uma “atenção” formal que o Estado endividado não tem condições de oferecer.
Tudo indica que nesta época histórica – de saberes especializados que remetem diretamente para mais poder – o culto da ignorância e da alienação constitui a forma predominante de estímulo, para que os cidadãos não se interessem pelos negócios públicos. E só manifestem seu interesse por espasmos de desencantamento, através de ações aparentemente “radicais”, que podem ser rapidamente sufocadas ou manipuladas. Nestas ocasiões, o Estado sempre aparece com seu lado repressor, negativo, e cujas respostas são interpretadas, como diz Edgar Morin, “pelo bombardeamento das inumeráveis informações que cotidianamente nos atingem por meio dos jornais, rádios, televisões (…), selecionadas a partir de quem controla as grandes cadeias de comunicação.
A participação “direta” da sociedade nas decisões de governos, seja por meios virtuais, por meio de conselhos ou presenciais, é sempre desconsiderada ou tida como ineficaz: falta capacidade “técnica” aos seus formuladores. As suas repostas jamais são consideradas “aceitáveis”, tecnicamente, pois fogem da agenda dos credores da dívida pública, como se viu nas jornadas de julho. Na verdade, prossegue Morin, “quanto mais técnica se torna a política, mais a competência democrática regride.” As jornadas de julho de 2013, em, regra, pediam mais Estado, mais políticas públicas de qualidade, no transporte, na saúde, na segurança, na educação, mais combate à corrupção. Mas, voltamos à “normalidade controlada”: ao mesmo tempo que não descobrimos novas narrativas, não respondemos aos desafios imediatos do presente.
Na época do predomínio absoluto do capital financeiro e da reprodução do dinheiro sem trabalho – que prescinde do trabalho clássico na indústria e dos investimentos produtivos- época em que a acumulação pode se dar sem gerar emprego e isso pode ombrear com as formas mais arriscadas de ganhar dinheiro (substituindo o investimento industrial pela especulação no mercado financeiro) -nesta época- não é preciso destruir a democracia, para impor um regime de força. O regime de força se instala na natureza mesma do Estado endividado, onde o poder do capital financeiro torna-se superior à força da política e ao poder normativo da constituição. Tal situação não recomenda o fim da democracia, mas a sua redescoberta, de tal forma que o controle público do Estado -pela participação direta da cidadania e pela representação popular rotativa- possa contrapor-se à tutela do capital financeiro sobre o Estado: substituir esta dependência subordinada, pela interdependência cooperativa com soberania.
Uma agenda para tirar o país da crise não precisa ser unânime. Basta que ela seja majoritária e se conforme, em torno dela, um bloco de forças que concorde em disputar as respostas à agenda, dentro das regras do jogo democrático, assim encaminhando “mais democracia”, não “menos democracia”, para buscar outros rumos à nação. Se é verdade que a democracia, assim como está, pode levar o país para um caminho sem saída (pois neste clima dificilmente um próximo governo eleito em 2018, seja de que partido for, será forte pela sua própria legitimidade) qualquer saída por uma via autoritária -seja aberta, seja velada- será muitas vezes pior.
Um projeto democrático renovado exige o fim da “dinheirização” da política, canais de participação direta – conselhista, virtual e presencial- que dialoguem com uma representação política estável e predominante, eleita através de um sistema político-eleitoral mais adequado à época em que vivemos. Nesta, o “recall” já não é mais um luxo, mas uma necessidade vital, para repor o cidadão no centro da política. Sejam estas as soluções -ou não- é preciso acordar que já está maduro o tempo para a convocação, por dentro dos mecanismos da democracia atual, de uma Assembleia Constituinte, especificamente eleita para reformar o sistema político, compreendido nele os processos eleitorais e o regime de partidos.
Reforçar a importância da política exige abrir, ao controle dos cidadãos, a geração das políticas públicas e a vida dos partidos. Estados e Partidos verticalizados são originários do período absolutista da modernidade democrática, numa sociedade que também se organizava, na reprodução cultural, na política, na produção e na informação, de maneira também hierarquizada e vertical. Foi o período em que as “grandes narrativas” eram impostas ou acolhidas a partir das “luzes” abertas por alguns. Hoje, a história se constrói no anonimato cotidiano de milhões de várias classes e subclasses, que só de maneira espasmódica fazem história. Penso que se os espaços a eles não forem abertos de maneira consciente, na democracia, estes espaços serão arrombados sem destino previsível.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Herzog, o torturado personagem de Saul Below, no seu romance do mesmo nome, num dos seus delírios escreve mentalmente uma carta a Heidegger, na qual pergunta: “Caro ‘doktor’ professor Heidegger, eu gostaria de saber o que o senhor quer dizer com a expressão ‘a queda no cotidiano’. Quando ocorreu essa queda? Onde estávamos quando ela aconteceu?” A pergunta angustiada do autor do romance – pela boca do seu principal personagem- me trouxe imediatamente à memória uma outra pergunta, formulada por Manuel Castells, no seu livro que já nasceu clássico, “Redes de indignação e esperança” (posfácio à edição brasileira), no qual ele se interroga: “Seria uma esperança vã essa volta à normalidade controlada’?”.
Saul Below dramatiza as dúvidas do indivíduo perdido na sociedade que começava a construir novas referências de consumo que, ao fim e ao cabo, tomaram conta da vida comum americana. Castells indaga se depois dos movimentos de junho de 2013 tudo voltaria ao normal, no Brasil, que fora sacudido por fortes movimentos sem demandas unitárias. Mas demandas que trouxeram à tona, no país, inconformidades de todas as ordens: com a democracia, com o capitalismo, com a corrupção, com claros apelos, também, à volta de um regime de força.
A resposta a Castells é mais simples, pois já voltamos à “normalidade controlada” e nela a crise se aprofunda. Mas, quando ocorreu, no país, a “queda no cotidiano”, como pergunta Herzog? E porque a pergunta de Herzog, sobre o cotidiano, é bem mais difícil de responder? Na verdade, apesar de estarmos no limite de uma época de ineficácia da democracia, de crise estrutural dos partidos políticos que chegam aos governos, de submissão completa do Estado à tutela do capitalismo financeiro global (que bloqueia radicalmente as funções públicas do Estado) -apesar deste limite próximo ao abismo- as forças políticas, que se identificam com a democracia, não compuseram uma agenda mínima para mudá-la. Mudá-la para melhor, para salvá-la das suas próprias contradições e ambiguidades, para fazê-la descer ao terreno herege onde vive a cidadania aflita.
É óbvio que não tenho respostas para isso. Nenhum de nós, porém, está impedido de ter opiniões, num mundo em que, até agora, se teorizou bastante sobre a crise econômica do capitalismo, mas não o suficiente sobre as suas relações com a democracia. Nem com a agenda dos direitos humanos, com as guerras que assolam o planeta e com as desigualdades que se alimentam de cada momento de reorganização do sistema, e assim prosperam. O Prêmio Nobel de Economia, professor Maurice Allais, já advertira na década de 80 que “o mundo se converteu num vasto cassino, onde as mesas do jogo estão expostas em todas as longitudes e em todas as latitudes”. Creio que as pessoas sensatas, embora possam divergir sobre como enfrentar esta situação, concordam com o diagnóstico de que vivemos uma irracionalidade financeira global sem precedentes. E que, se ela não for enfrentada dentro da democracia, será enfrentada por regimes de força, fora dela. Assim como está, não vai ficar.
Numa sociedade globalizada, de relações em rede, na qual a política flui sem respeitar as fronteiras nacionais, em que as decisões econômicas sobre o futuro são tomadas em lugares distantes da soberania interna; numa sociedade em que há uma flagrante redução da força política do Estado para decidir (premido pela dívida pública); nesta sociedade global, tanto os Estados organizados de forma vertical (no qual os governantes são separados da cidadania após cada eleição), como os partidos político, também organizados de forma vertical (longe das suas “bases”), tem escassas condições de reagir.
Mas o que seria reagir? Seria ter a capacidade de implementar projetos e políticas públicas, que transformassem a “dependência subordinada” em “cooperação interdependente com soberania”. Mais simples: é uma etapa em que o velho “imperialismo” – pela hegemonia do capital financeiro- se apropriou do Estado sem intervenção militar, através do controle sobre a dívida e pela arbitragem dos seus juros. Por seu turno, os partidos -que desejam um país soberano e socialmente justo- continuam na sua forma de organização tradicional, verticalizada e distante de uma sociedade que funciona principalmente em redes horizontais. Nesta sociedade, a opinião não se forma mais a partir de “grandes narrativas” que podem ser transmitidas de “cima para baixo”, mas através da vivência do cotidiano, aparentemente sem história. Ou no acesso ao consumo manipulado, que trata a todos – ilusoriamente – sem diferenças, com uma “atenção” formal que o Estado endividado não tem condições de oferecer.
Tudo indica que nesta época histórica – de saberes especializados que remetem diretamente para mais poder – o culto da ignorância e da alienação constitui a forma predominante de estímulo, para que os cidadãos não se interessem pelos negócios públicos. E só manifestem seu interesse por espasmos de desencantamento, através de ações aparentemente “radicais”, que podem ser rapidamente sufocadas ou manipuladas. Nestas ocasiões, o Estado sempre aparece com seu lado repressor, negativo, e cujas respostas são interpretadas, como diz Edgar Morin, “pelo bombardeamento das inumeráveis informações que cotidianamente nos atingem por meio dos jornais, rádios, televisões (…), selecionadas a partir de quem controla as grandes cadeias de comunicação.
A participação “direta” da sociedade nas decisões de governos, seja por meios virtuais, por meio de conselhos ou presenciais, é sempre desconsiderada ou tida como ineficaz: falta capacidade “técnica” aos seus formuladores. As suas repostas jamais são consideradas “aceitáveis”, tecnicamente, pois fogem da agenda dos credores da dívida pública, como se viu nas jornadas de julho. Na verdade, prossegue Morin, “quanto mais técnica se torna a política, mais a competência democrática regride.” As jornadas de julho de 2013, em, regra, pediam mais Estado, mais políticas públicas de qualidade, no transporte, na saúde, na segurança, na educação, mais combate à corrupção. Mas, voltamos à “normalidade controlada”: ao mesmo tempo que não descobrimos novas narrativas, não respondemos aos desafios imediatos do presente.
Na época do predomínio absoluto do capital financeiro e da reprodução do dinheiro sem trabalho – que prescinde do trabalho clássico na indústria e dos investimentos produtivos- época em que a acumulação pode se dar sem gerar emprego e isso pode ombrear com as formas mais arriscadas de ganhar dinheiro (substituindo o investimento industrial pela especulação no mercado financeiro) -nesta época- não é preciso destruir a democracia, para impor um regime de força. O regime de força se instala na natureza mesma do Estado endividado, onde o poder do capital financeiro torna-se superior à força da política e ao poder normativo da constituição. Tal situação não recomenda o fim da democracia, mas a sua redescoberta, de tal forma que o controle público do Estado -pela participação direta da cidadania e pela representação popular rotativa- possa contrapor-se à tutela do capital financeiro sobre o Estado: substituir esta dependência subordinada, pela interdependência cooperativa com soberania.
Uma agenda para tirar o país da crise não precisa ser unânime. Basta que ela seja majoritária e se conforme, em torno dela, um bloco de forças que concorde em disputar as respostas à agenda, dentro das regras do jogo democrático, assim encaminhando “mais democracia”, não “menos democracia”, para buscar outros rumos à nação. Se é verdade que a democracia, assim como está, pode levar o país para um caminho sem saída (pois neste clima dificilmente um próximo governo eleito em 2018, seja de que partido for, será forte pela sua própria legitimidade) qualquer saída por uma via autoritária -seja aberta, seja velada- será muitas vezes pior.
Um projeto democrático renovado exige o fim da “dinheirização” da política, canais de participação direta – conselhista, virtual e presencial- que dialoguem com uma representação política estável e predominante, eleita através de um sistema político-eleitoral mais adequado à época em que vivemos. Nesta, o “recall” já não é mais um luxo, mas uma necessidade vital, para repor o cidadão no centro da política. Sejam estas as soluções -ou não- é preciso acordar que já está maduro o tempo para a convocação, por dentro dos mecanismos da democracia atual, de uma Assembleia Constituinte, especificamente eleita para reformar o sistema político, compreendido nele os processos eleitorais e o regime de partidos.
Reforçar a importância da política exige abrir, ao controle dos cidadãos, a geração das políticas públicas e a vida dos partidos. Estados e Partidos verticalizados são originários do período absolutista da modernidade democrática, numa sociedade que também se organizava, na reprodução cultural, na política, na produção e na informação, de maneira também hierarquizada e vertical. Foi o período em que as “grandes narrativas” eram impostas ou acolhidas a partir das “luzes” abertas por alguns. Hoje, a história se constrói no anonimato cotidiano de milhões de várias classes e subclasses, que só de maneira espasmódica fazem história. Penso que se os espaços a eles não forem abertos de maneira consciente, na democracia, estes espaços serão arrombados sem destino previsível.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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