Foto: José Cruz/Agência Brasil |
Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em 1980, precisou falar apenas um minuto no Senado brasileiro para sentir de perto a fúria da oposição que busca derrubar a presidenta Dilma Rousseff. O arquiteto e ativista argentino utilizou a palavra “golpe” para definir o que está acontecendo hoje no Brasil, o que levou a oposição a exigir do senador Paulo Paim (PT-RS), que presidia a sessão, a retirada da palavra dos anais da sessão, demanda que acabou atendida. “Não falei mais de um minuto. Eles me pediram para que eu fizesse uma saudação e eu expliquei por que estava aqui no Brasil, para apoiar a democracia, a continuidade constitucional e evitar a consumação de um golpe de Estado”, relata Esquivel em entrevista ao Sul21.
Na entrevista, o arquiteto e ativista argentino chama a atenção para o fato de que o que está acontecendo no Brasil não é um ponto fora da curva, mas sim parte de um projeto de recolonização da América Latina capitaneado pelos Estados Unidos. Para Esquivel, não há acasos em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de Dilma. “Isso faz parte de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo”, sustenta.
“Esse projeto”, acrescenta, tem como objetivos estratégicos o controle dos nossos recursos naturais e, como já disse Michel Temer, a privatização das empresas estatais”. “Esse é o objetivo do golpe de Estado. Caso ele se consume, o país terá um governo com essa agenda que não foi eleito pelo povo”.
Como o senhor avalia a situação política que o Brasil vive hoje, em especial a tentativa de derrubada do governo da presidente Dilma Rousseff?
Pelo trabalho que realizo, sempre olho para a realidade de um país da América Latina sob a perspectiva de uma visão continental. Não há casualidades em tudo o que está acontecendo agora contra o governo de Dilma. Isso faz parte de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado de um novo tipo. Golpes de Estado que não necessitam dos exércitos. Basta ter os meios de comunicação, alguns juízes e dirigentes políticos da oposição para provocar a desestabilização de um governo.
O que me assombra é que tenham escolhido o Brasil, um país líder no continente, para aplicar esse modelo de golpe. É o mesmo procedimento dos ensaios realizados anteriormente: o uso massivo dos meios de comunicação para alimentar um processo de desprestígio por meio de uma série de acusações, a cumplicidade de alguns juízes, como é o exemplo de Sérgio Moro, que chegou a vazar escutas telefônicas privadas envolvendo o ex-presidente Lula e a própria presidente da República. O que Dilma fez de errado, afinal, para justificar um impeachment? Ela utilizou procedimentos que outros governos anteriores também aplicaram e não sofreram nenhum tipo de sanção por isso. Contra Dilma, bastou isso para justificar um pedido de impeachment. Isso é, abertamente, um golpe de Estado brando. Há alguns dias, disse isso no Senado brasileiro e houve um escândalo. Não falei mais de um minuto…
E pediram para retirar a palavra “golpe” das atas do Senado relativas ao seu pronunciamento…
Eles me pediram para que eu fizesse uma saudação e eu expliquei por que estava aqui no Brasil, para apoiar a democracia, a continuidade constitucional e evitar a consumação de um golpe de Estado. Bastou isso para provocar uma situação conflitiva. Mas é preciso fazer uma leitura mais profunda sobre o que está acontecendo no Brasil. Essa leitura para além da superfície tem a ver com o projeto em curso de recolonização do continente. Esse projeto tem alguns objetivos estratégicos: o controle dos nossos recursos naturais e, como já disse Michel Temer, a privatização das empresas estatais. Esse é o objetivo do golpe de Estado. Caso ele se consume, o país terá um governo que não foi eleito pelo povo, que ficará marginalizado da ação democrática. Como ocorreu em Honduras e no Paraguai, isso terá como consequência uma forte repressão aos movimentos sociais. Essa é a lógica da imposição de uma política regressiva: provocar situações de conflitos sociais e usar a forma repressiva para conter esses conflitos. Já há uma lei antiterrorista aprovada pelo Congresso, como aconteceu em quase todos os países.
Há uma diferença entre o que está acontecendo no Brasil e o que vemos hoje na Argentina, onde a direita chegou ao governo por meio de eleições livres. Ganhou por muito pouco, mas ganhou e está legitimada pelo voto. Nos primeiros quatro meses de governo, Macri levantou impostos que eram cobrados de empresas mineradoras e de latifundiários, entre outras medidas. O Observatório Social da Universidade Católica argentina registrou que, neste período, o país já tem um milhão e quatrocentos mil de pobres a mais e cem mil desempregados a mais. Isso em quatro meses apenas.
Na sua avaliação, esse projeto de recolonização tem os Estados Unidos como centro de origem e de articulação?
Sim, é uma política dos Estados Unidos, que nunca abriu mão de seu objetivo de ter a América Latina como seu quintal. A política norte-americana nos golpes em Honduras e no Paraguai ficou muito clara. É preciso ter em mente que os Estados Unidos e também a Europa estão esgotando seus recursos e necessitam dos recursos naturais de nossos países, incluindo recursos minerais estratégicos e os recursos do Aquífero Guarani, uma das grandes reservas mundiais de água, um bem cada vez mais escasso. Então, não são pequenos os interesses dos Estados Unidos na região. Não é por outra razão que eles mantém bases militares na América Latina.
Se olharmos para a história recente da América Latina, houve outras tentativas de golpe de Estado no Equador, na Bolívia e na Venezuela que vive uma situação crítica, onde a posição ganhou o Parlamento e o governo de Nicolas Maduro está muito debilitado, com graves problemas econômicos, fundamentalmente causados pela queda do preço do petróleo, base da economia venezuelana. Então, as tentativas de golpe de Estado na América Latina não terminaram. Houve algumas muito violentas, com muitas mortes, como a que ocorreu no massacre de Pando, na Bolívia. No Equador, tivemos uma tentativa de golpe disfarçada de uma mobilização salarial da polícia. Era uma tentativa de golpe de Estado contra Rafael Correa. Esse é o panorama que temos hoje na região. Teríamos que falar ainda de Haiti, Guatemala, El Salvador e Honduras onde ocorreu uma repressão brutal, com mortes como a de Berta Caceres, uma dirigente do povo Lenca com a qual trabalhamos em Honduras.
Voltando um pouco à situação da Argentina, nos primeiros meses do governo Macri houve também um aumento da repressão aos movimentos sociais e um dos principais símbolos disso foi a prisão de Milagro Sala. Qual é o cenário atual desse quadro de repressão e violação de direitos?
Milagro Sala é uma presa política. Ela foi presa por conta de um protesto social organizado por cooperativas e pelo grupo Tupac Amaru. Nós fomos visitá-la na prisão, na província de Jujuy, cerca de 1.500 quilômetros de Buenos Aires. Falamos também com o governador de Jujuy, Ruben Gerardo Morales. Após a prisão de Milagro Sala começaram a surgir uma série de outras acusações contra ela, envolvendo denúncias de corrupção e outras coisas. Mas ela foi condenada antes de ser julgada. Ela é uma presa política já há quatro meses e nós cobramos isso do governador. Houve também uma forte repressão policial em Buenos Aires e em outros lugares contra protestos de trabalhadores. O governo Macri vai avançando em suas políticas neoliberais. Até agora, não falou abertamente sobre isso, mas planeja a privatização de empresas do Estado.
Macri também está fazendo um acordo com os fundos abutres para o pagamento de uma dívida externa imoral e ilegítima. Aí temos um problema que vem dos governos anteriores que não fizeram uma auditoria para determinar o que é dívida legítima e o que não é. Agora, Macri necessita de recursos para enfrentar a situação do país e está tentando obter empréstimos com altas taxas de juro. Os orçamentos para educação e políticas sociais sofreram grandes cortes e as obras do Estado estão paralisadas. As universidades também sofreram um drástico corte orçamentário. De modo geral, elas têm recursos para pagar os salários do mês de junho e depois não se sabe como será.
Diante desse cenário de avanço conservador, qual é, na sua opinião, a capacidade de reação dos movimentos sociais e do movimento sindical na Argentina, no Brasil e em outros países da América Latina? Há força suficiente para resistir a esse projeto de recolonização?
Os movimentos sociais estão muito fragmentados e isso coloca-os em uma forte situação de debilidade. Não há coesão ou força integradora entre eles. No caso da Argentina e de outros países da América Latina, a política de direitos humanos também enfrenta sérias dificuldades já há algum tempo. Esse projeto de recolonização terá um impacto negativo muito grande para a população, especialmente para os setores mais carentes. Há uma cláusula democrática dentro de organismos regionais como Mercosul e Unasul, que já foi aplicada ao Paraguai por ocasião do golpe contra Lugo. O Paraguai foi suspenso desses blocos regionais. Não sei se isso vai acontecer com o Brasil. Se, do golpe, surgir um governo Temer penso que ele terá o reconhecimento ao menos dos Estados Unidos e da Argentina. Na Argentina, o governo Macri está rechaçando os acordos regionais.
Aqui no Brasil, estamos assistindo à emergência de grupos de direita e mesmo de extrema direita, com traços fascistas, que contam inclusive com representação parlamentar como é o caso do deputado Bolsonaro que, recentemente, voltou a fazer apologia de torturadores. Esse fenômeno também está ocorrendo na Argentina ou em outros países da região? Até que ponto, essa emergência preocupa?
Na Argentina, isso não é muito evidente. Houve editoriais apoiando a ditadura, como o publicado pelo jornal La Nación no dia seguinte à posse de Macri, defendendo a libertação de militares condenados por crimes na ditadura. Há grupos de direita, mas, neste momento, como estão praticamente no governo, não se manifestam publicamente. Isso não significa que não existam. Aqui no Brasil me chama muito a atenção o fato de um deputado ter feito a defesa de um torturador. Isso é a apologia de um crime, um delito. Não sei como vão tratar isso, pois os deputados têm foro privilegiado. A questão importante é se haverá unidade dos movimentos sociais e populares para enfrentar essa situação.
O senhor acompanha a situação dos direitos humanos na América Latina há muitos anos. Após um ciclo de ditaduras houve um período de redemocratização e uma ascensão de governos de esquerda e progressistas na região. Agora, parece que estamos entrando mais uma vez em um período conservador com regressão no campo dos direitos. Parece que parcelas importantes das sociedades latino-americanas abrem mão muito facilmente de direitos. Como avalia a situação atual após um período em que ocorreram importantes avanços na área dos direitos humanos e sociais?
Neste último período, nós acompanhamos com preocupação a situação dos direitos humanos mesmo em governos democráticos. Há governos que não têm políticas repressivas, mas há como que uma base já institucionalizada. Em muitos países, as torturas em prisões e delegacias de polícia, por exemplo, continuam até o dia de hoje. Na Argentina, esse problema é tremendo. Nós fizemos um trabalho de monitoramento da situação em prisões e delegacias. No ano passado registramos mais de 100 mil casos de tortura em 50 instituições penitenciárias. Não são políticas de Estado, mas sim mecanismos e práticas que seguiram vivas nas forças de segurança e que seguem vigentes.
Os direitos humanos seguem sendo violados porque há impunidade jurídica. Quem viola os direitos humanos sempre é o Estado. Fora disso, há os delitos que devem ser enquadrados na legislação vigente. A situação dos direitos humanos, considerados em sua integralidade, é preocupante em muitos países. Não estou falando apenas de torturas ou mortes, mas também de problemas ambientais, dos agrotóxicos, do impacto das grandes mineradoras. Há casos como o do Chile, onde a lei antiterrorista foi aplicada contra o povo mapuche.
Direitos humanos e democracia são valores indivisíveis. Se os direitos humanos são violados, a democracia se debilita. Estamos trabalhando para tentar uma mudança de comportamento e de mentalidade, mas há muitas consciências armadas com práticas repressivas. Antes de vir ao Brasil, estivemos no México, país que tem mais desaparecidos que a Argentina na época da ditadura, com governos constitucionais. Em Cidade Juarez, até sairmos de lá, havia a marca de 1.500 mulheres assassinadas por feminicídios. Estamos falando da fronteira com os Estados Unidos. No estado de Guerrero, temos o caso dos 43 estudantes que desapareceram e sobre os quais não há notícia até hoje. Passou um ano e meio e não se sabe absolutamente nada do paradeiro de 43 estudantes. Não estamos falando de uma ditadura.
No México, nos reunimos com o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos e ele nos relatou as muitas dificuldades enfrentadas para avançar nas investigações sobre casos de violações de direitos naquele país. Há uma situação de terror muito grande. Tanto é assim que o governo dos Estados Unidos emitiu um comunicado recomendando aos turistas norte-americanos para que não viajem ao estado de Guerrero, em especial para Acapulco. Estivemos em Acapulco e os hotéis estão vazios. Claro que, no caso do México, penetrou com muita força o problema da droga, dos carteis do narcotráfico. Uma coisa que nós podemos comprovar na América Latina é que as guerras, hoje, são financiadas com a droga. Isso está acontecendo agora no Oriente Médio também. As guerras têm que ser financiadas de algum modo e estão sendo pelas drogas. Por isso, elas não vão desaparecer tão facilmente assim. O narcotráfico está desempenhando um papel sumamente importante hoje na economia das guerras.
Então, quando falamos da realidade da América Latina hoje supomos que todos os governos são democráticos, mas isso não é assim. Veja o caso da Colômbia também, onde agora está prestes a ser assinado um acordo de paz com as FARC. Mas o problema da Colômbia não se resume à relação entre as FARC e o governo de Santos. São quase 60 anos de guerrilha, mas também de narcotráfico, de grupos paramilitares e parapoliciais. O panorama do continente é muito complexo.
O senhor está pessimista em relação ao futuro?
Eu sempre digo que sou um pessimista esperançoso. Eu não penso que não há saída para todos esses problemas. Sempre há saídas e possibilidades de mudança, desde que o povo se una. Na América Latina, as esquerdas estão divididas. A direita tem dificuldades, mas não está dividida porque tem objetivos claros. Mas as esquerdas estão muito divididas na Argentina, no Brasil, em qualquer país. Assim, é difícil construir frentes que possam oferecer alternativas a essa situação da qual falamos. Se o golpe se consumar aqui no Brasil o que vai ocorrer com a população. Estamos aqui acompanhados de movimentos sociais e de grupos comprometidos com a defesa da democracia, mas qual é a força real que têm?
O que me preocupa, no caso do Brasil, são as possíveis repercussões em todo o continente e no mundo inteiro. O Brasil é um país líder, com uma presença importante não só na América Latina. Para mim, com tudo o que escutei nestes dias, me parece que o afastamento de Dilma já é praticamente um fato consumado, a não ser que, de última hora, a situação atual possa ser revertida. Mas não é para se desesperar. Sempre há possibilidades de mudanças. O fato é que os Estados Unidos seguem trabalhando pela recolonização da região pois necessitam dos recursos deste continente.
Já devastaram a África, que não é um continente pobre, mas é um continente empobrecido. A África tem grandes recursos que estão sendo explorados por grandes corporações. Eu participei de uma comissão de investigação sobre a África do Sul e a Namíbia. Durante os oito meses que durou a comissão creio que não dormi em função do que vi, os indicadores de pobreza, o saqueio sem piedade dos recursos destes países. Levamos o resultado dessa investigação à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde foram aprovadas sanções que não foram cumpridas.
Eu sempre digo que sou um pessimista esperançoso. Eu não penso que não há saída para todos esses problemas. Sempre há saídas e possibilidades de mudança, desde que o povo se una. Na América Latina, as esquerdas estão divididas. A direita tem dificuldades, mas não está dividida porque tem objetivos claros. Mas as esquerdas estão muito divididas na Argentina, no Brasil, em qualquer país. Assim, é difícil construir frentes que possam oferecer alternativas a essa situação da qual falamos. Se o golpe se consumar aqui no Brasil o que vai ocorrer com a população. Estamos aqui acompanhados de movimentos sociais e de grupos comprometidos com a defesa da democracia, mas qual é a força real que têm?
O que me preocupa, no caso do Brasil, são as possíveis repercussões em todo o continente e no mundo inteiro. O Brasil é um país líder, com uma presença importante não só na América Latina. Para mim, com tudo o que escutei nestes dias, me parece que o afastamento de Dilma já é praticamente um fato consumado, a não ser que, de última hora, a situação atual possa ser revertida. Mas não é para se desesperar. Sempre há possibilidades de mudanças. O fato é que os Estados Unidos seguem trabalhando pela recolonização da região pois necessitam dos recursos deste continente.
Já devastaram a África, que não é um continente pobre, mas é um continente empobrecido. A África tem grandes recursos que estão sendo explorados por grandes corporações. Eu participei de uma comissão de investigação sobre a África do Sul e a Namíbia. Durante os oito meses que durou a comissão creio que não dormi em função do que vi, os indicadores de pobreza, o saqueio sem piedade dos recursos destes países. Levamos o resultado dessa investigação à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde foram aprovadas sanções que não foram cumpridas.
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