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A emissão conservadora se espoja no revés progressista, como se a urna de 2016 fosse a prefiguração automática de 2018.
Desse ângulo da arquibancada ideológica o tucano Geraldo Alckmin é aclamado ‘o’ presidenciável campeão.
Credencia-o, diz a ‘crônica uniformizada’, o espraiamento do PSDB no país, mas sobretudo no estado onde o partido já é governo há um quarto de século.
Ter São Paulo é um trampolim eleitoral respeitável.
Mas o mesmo tucano já bateu a cabeça na piscina seca de votos quando saltou daí para o Brasil, em 2006.
Os tempos são outros.
O mensalão em vigor quando Lula derrotou Alckmin com 60,8% dos votos –quase 20 milhões de eleitores a mais que os do tucano-- era um treino de juniores perto da arremetida atual por terra, mar e ar comandada por Sergio Moro & Cia.
A salmoura à qual o PT foi empurrado, apimentada com a perda de 60% das prefeituras de 2012, não é adoçável sob nenhum ângulo.
Mas a crise econômica agora também mudou de calibre.
O arrocho e a agenda ideológica do golpe, pouco pragmática diante de uma economia que afunda um pouco mais a cada dia, começa a incomodar até o empresariado produtivo.
O conjunto não autoriza a assinatura da extinção eleitoral que a torcida organizada das redações endereça às forças progressistas e a sua principal liderança.
Houvesse tanta certeza, de fato, a caçada a Lula poderia ser suspensa.
A verdade é que questões essenciais do futuro escapam à angulação estreita dos camarotes áulicos.
Todo o sistema partidário brasileiro foi destruído para que o golpe de Estado ancorado na criminalização da política e de suas lideranças, sobretudo as do PT, fosse bem-sucedido.
A aliança da escória com a mídia e o judiciário foi eficaz nisso.
Deixou um cenário de terra arrasada que agora engolfa os próprios ‘vencedores’.
Guardadas as diferenças que separam a grandiosidade literária, da mediocridade elitista, seu triunfo se assemelha ao de Santiago, o pescador de ‘O velho e o Mar’, na novela clássica de Hemingway.
Depois de fisgar um enorme peixe-espada –alguns pesam mais de 500 kg— teve o barco arrastado pela presa para o alto mar, onde tubarões devoram seu troféu.
Santiago retornou à terra atado a uma vitória reduzida a um gigantesco amontoado de ossos.
À montanha desordenada de ossos políticos da qual faz parte o golpismo (mesmo poupado por Moro & mídia) agrega-se agora o esqueleto de outra ruína igualmente inseparável de sua existência: a devastação econômica do país.
A escala épica da demolição não frequentou os palanques dos pleitos municipais, mas dominará o debate no escrutínio de 2018.
Não é um vaticínio agourento.
É a dinâmica visível em um declínio desprovido de freios, uma vez que suprimi-los foi a razão de ser do golpe.
Entregue aos impulsos do mercado --sem ‘o intervencionismo lulodilmista’ – o Brasil resta como o vertedouro do rio submetido às enxurradas que escavam sua precipitação ao abismo.
As enxurradas e afluentes do golpe são os seus compromissos com os mercados e o dinheiro grosso.
Em nome deles a nação está sendo tangida a uma reconversão tardia ao neoliberalismo.
Em um mundo no qual a seita dos livres mercados vive sua deriva crepuscular, preconiza-se manter a sociedade brasileira em estado vegetativo por vinte anos.
Objetivo: reduzir gastos para evitar a tributação justa da riqueza, indispensável à vigência dos direitos sociais da Carta de 1988.
Daí deriva o resto.
A PEC detalha os redemoinhos e afogamentos intrínsecos à des-emancipação social impulsionada pelo caudal golpista.
Sem ilusões, porém: não será um jorro pacífico
A rebelião dos secundaristas do Paraná é o primeiro pedral da série incalculável na qual esbarrará a torrente regressiva.
Não se trata de um acidente aleatório.
O pioneirismo estudantil reúne variáveis que ajudam a entender por que a ‘guinada conservadora’ de hoje não pode ser projetada para o Brasil de amanhã.
Em primeiro lugar, há o problema da truculência da forma.
Concebidas a toque de caixa por quem tem pouco tempo para se viabilizar, as investidas do ‘ajuste’ são transmitidas à sociedade no idioma dos sentenciamentos inapeláveis
Como soavam os atos institucionais da ditadura, em 1964.
O fato de serem sancionados por uma escória parlamentar não muda a percepção antidemocrática que acendeu o pavio da rebelião secundarista.
Mas não explica a sua octanagem.
A expansão fulminante e a convicção contagiante condensada na intervenção viral da estudante Ana Júlia levam a uma segunda constatação.
Parênteses: não há despropósito em se repensar o modelo do ensino secundário.
Ao contrário. Há pertinência e urgência nisso.
Currículos anacrônicos, extensos, embalsamados em inércia e desinteresse explicam uma parte daelevada evasão escolar que atinge 10% dos alunos na rede pública.
Dos que persistem, 10% apenas, segundo pesquisas, concluem a maratona com aproveitamento razoável.
Para o indecoroso desperdício concorrem variáveis externas aos currículos, igualmente negligenciadas pelos seus formuladores.
O ciclo médio sobrepõe uma das etapas mais delicadas da aprendizagem à um dos momentos mais sensíveis na vida de qualquer geração.
Em meio a uma travessia biológica açulada por inquietações típicas da adolescência dá-se uma espécie de hora da verdade da vida escolar.
Inconsistências e inquietações trazidas da alfabetização, do lar, do país e do espírito tem no ensino secundário seu estuário catalítico.
No Brasil, um em cada três alunos nessa fase cursa uma série defasada em relação a idade.
Some-se a isso a mudança de paradigma escolar.
No ensino secundário, o aluno passa a contar com um número excessivo de matérias (de 15 a 19), ministradas por diferentes professores, com pouca ou nenhuma relação direta com a efervescência adolescente.
Ao desencanto agrega-se frequentemente, no caso dos estudantes da rede pública, a pressão familiar pelo ingresso no mercado de trabalho.
É sobre esse turbilhão hormonal e social que irrompe o golpe de Estado de 31 de agosto.
Na mais fiel tradição gorila latino-americana, uma de suas primeiras intervenções consiste em ‘comunicar’ a esse universo que o currículo escolar sofrerá uma mudança drástica.
Mais que o currículo.
O anúncio é captado corretamente como um redirecionamento do futuro.
Sobre o qual a sua opinião não conta.
Está aceso o pavio.
Negligenciado pela cumplicidade de método e meta dos noticiosos conservadores, o choque de expectativas atinge toda uma geração de jovens brasileiros.
Não qualquer geração.
Mas aqueles nascidos em um período específico de um Brasil abalroado em meio a um ciclo de mutação.
O de meninos e meninas que cresceram em uma década e meia durante a qual a prioridade do Estado foi igualar as oportunidades, independente da origem de berço e renda dos novos integrantes da nação.
Não é pouco mexer com isso.
O impacto dessa reversão de expectativas é tão ou mais importante para projetar 2018 que a derrota progressista nas eleições municipais de 2016.
Por uma razão muito forte.
O projeto mudancista de sociedade em direção a uma democracia social foi escrutinado e revalidado por quatro eleições presidenciais sucessivas.
A assertiva Ana Júlia nasceu, cresceu, aprendeu a ler e a pensar por conta própria, e a ter sonhos de cidadania, nesse curto mas intenso percurso da história.
Abruptamente interrompido pelo golpe de Estado de 31 de agosto.
Ninguém em pleno domínio das faculdades mentais pode afirmar que esse consenso mais geral foi revogado do imaginário popular num pleito de prioridades fragmentadas, como o que acaba de acontecer entre 5.565 municípios.
Ainda que o ambiente de descrença na política e nos políticos tenha marcado os resultados em grandes capitais, permanece o fato incontornável: o golpe rebaixou por decreto o horizonte de futuro arraigado na vida de toda uma geração.
A geração nascida nos anos 2000.
Os filhos do pré-sal.
Filhos de uma certeza subversiva.
Aquela disseminada diuturnamente nos discursos de Lula e Dilma por quatorze anos seguidos
A mesma que FHC denomina de ‘voluntarismo populista’.
Ou seja, a esperança de que o Brasil construía um novo e promissor capítulo de sua história.
E de que nele os filhos do pre-sal seriam a geração da virada.
Mil escolas ocupadas é pouco perto da nitroglicerina que a reversão desse sonho em pesadelo condensa.
Seu teor de conflito é suficiente para implodir muito mais que as ligeirezas mecanicistas que extraem das urnas de 2016 o desfecho de 2018.
Há encadeamentos intrínsecos que não deveriam ser negligenciados por quem de direito.
A sublevação do secundaristas não colide apenas com os planos educacionais do golpe.
Sua rota de colisão é mais extensa e transformadora.
Envelopado em ‘boas’ intenções pedagógicas reserva-se à juventude –sobretudo aos filhos da classe média remediada e pobre— um claro destino de segunda mão.
Não muito diferente do de hoje ainda.
Mas é pior que ser igual.
A reforma do golpe sepulta o compromisso do Estado nos últimos quinze anos de romper a inércia da desigualdade trazida do berço.
Estados pobres, alunos pobres, cidades pobres, bairros pobres e periferias metropolitanas –ou seja, a ampla maioria— adaptarão suas escolas a uma especialização precoce de currículos, enxugando as ‘trilhas’ opcionais da reforma para adestrar secundaristas no papel de coadjuvante, ’técnico’, do enredo de sonhos de sua geração.
A condenação à mão de obra barata completar-se-á com o desmonte previsto da CLT, que reserva aos que chegarem ao mercado nos próximos anos, a condição de trabalhadores terceirizados (projeto nesse sentido, 4330-2004, já aprovado pela Câmara, libera a terceirização em qualquer setor e função, revogando a CLT que perderá espaço também com a prevalência do negociado sobre o legislado, já adotada pelo STF).
A frustração inflamável tem combustível para ir longe, portanto.
Até o golpe de agosto, a geração de Ana Júlia tinha na soberania brasileira sobre o pre-sal seu passaporte para a cidadania e o sonho.
Está órfã.
O fato de a Petrobrás ter se transformado no ciclo de vida desses adolescentes, na empresa estatal detentora da segunda maior reserva de óleo do mundo, credenciava-a como fiadora da esperança.
O salto da escola pública –e daí à universidade-- estava condicionado à dotação de 10% do PIB à educação, como decidiu o Plano Nacional do setor (PNE), ancorado no fluxo da renda de longo prazo do pré-sal.
Em setembro de 2013, a presidente Dilma Rousseff assinaria a lei que destinava a maior parte dos royalties das reservas à educação
A economia vivia tempos de otimismo e o petróleo era cotado internacionalmente a US$ 110 o barril.
Caiu à metade disso.
Em compensação, a produtividade dos poços surpreendeu.
Cresceu 56% em 2015; já representa mais de 40% da produção do país; pode atingir um milhão de barris/ dia este ano.
A curva ascendente autoriza a previsão de se extrair dois milhões de barris do pre-sal até 2020, ou antes disso.
A lei assinada por Dilma determina que 75% dos royalties do petróleo e 50% do chamado Fundo Social do Pré-Sal sejam destinados à educação, como uma espécie de poupança deslocada de um recurso finito para outro permanente: a juventude brasileira.
Nada disso mais é certeza.
O golpe violou o regime de partilha.
Não apenas para ‘acelerar’ a exploração.
A Petrobrás perdeu a jurisdição, a participação cativa e o poder fiscalizador sobre uma riqueza cobiçada por interesses predadores internacionais.
O conteúdo nacional obrigatório na aquisição de máquinas, navios e equipamentos para a exploração das reservas, desenhado para ser o impulso industrializante do país no século XXI, está em vias de ser revogado.
O conjunto é um violento tapa na cara da geração dos filhos do pré-sal.
Essa da qual Ana Júlia é a porta-voz precursora.
Quantos lutarão com a contundência que ela expressa?
Depende da organização política capaz de vocalizar os sonhos frustrados pelo moedor de carne golpista.
A formação do discernimento social brasileiro está asfixiada por uma implacável máquina de supressão da autoestima nacional.
Tudo o que não é mercado é corrupção.
Tudo o que não é mercado é ineficiente.
Tudo o que não é mercado é populismo, custo fiscal e desperdício.
Esse é o martelete que ordena a narrativa do jornalismo aliado à escória e ao judiciário partidarizado a serviço do mercado.
O jogral não apenas dificulta a busca de soluções para a transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país, como nega à sociedade competência para fazê-lo de forma coordenada e democrática.
‘Melhor entregar o destino aos mercados’.
Recusa-se aos locais a competência até mesmo para discutir uma reforma do ensino médio, que dirá gerir as maiores reservas de óleo descobertas no planeta no século XXI?
Ou construir o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro, sob o emblema da convergência da riqueza e do direito a um mesmo ponto de partida igual para todos.
Era esse o diferencial da geração de Ana Júlia.
Não é mais uma certeza.
Mas ainda pulsa como possibilidade na clareza contagiante da qual ela se faz portadora.
O ciclo de governos petistas colecionou erros graves no seu percurso.
Mas espetou essa dissonância incontornável no metabolismo da nação.
Ao trazer 60 milhões de brasileiros ao mercado e à cidadania esburacou de maneira formidável a estrada na qual o conservadorismo costumava engatar a ré e acelerar o retrocesso sem nem consultar o espelho retrovisor.
Talvez não seja mais possível faze-lo assim.
Provar que não mesmo, no tempo curto que resta, é a tarefa que cumpre compartilhar com a geração de Ana Júlia.
Antes que fique escuro demais para tentar.
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