Por Osvaldo Bertolino, no site da Fundação Maurício Grabois:
Na década passada, a primeira leva de trabalhadores nascidos após a Segunda Guerra Mundial (conhecidos como a geração do baby boom) chegou à idade de se aposentar, um fato que trouxe considerável pressão sobre os orçamentos da seguridade social. Com o fraco crescimento das finanças públicas, decorrente de uma pequena expansão do Produto Interno Bruto (PIB) na maioria dos países, desde então a ofensiva neoliberal contra a previdência pública começou a fazer com que em muitos países estourassem grandes manifestações de trabalhadores. O dilema decorre de uma pergunta que a humanidade precisa responder: envelhecer é uma coisa boa ou ruim? Em sua essência, trata-se evidentemente de uma coisa boa. Afinal, a maioria das pessoas prefere viver mais a viver menos.
Vida mais longa é um dos resultados positivos mais evidentes do fantástico crescimento econômico e do avanço tecnológico ocorrido no século XX. Trata-se de uma conquista da humanidade. Mas é preciso definir uma forma de lidar com a nova situação. Proporcionalmente, há cada vez mais pessoas fora das cadeias de produção em comparação com as que estão na ativa. Um número menor de trabalhadores poderia ser um problema econômico muito grave se implicasse um obstáculo à produção, mas o risco não é esse. No longo prazo, o verdadeiro crescimento é causado essencialmente por novas tecnologias e por mais eficiência, e não necessariamente por mais braços.
Mundo das realidades
É o fenômeno da produtividade, tão comentado pelos economistas e brilhantemente dissecada por Karl Marx, principalmente em O Capital. Aumento da produtividade quer dizer, sucintamente, mais valor agregado à produção por cada hora trabalhada. A apropriação deste valor é a grande questão. Daí a constatação de que não é possível imaginar o capitalismo sem classes e luta entre elas. O ponto é: como o Estado deve atuar nessa equação? Para a ideologia neoliberal, esse ponto simplesmente não existe. Em todo o planeta há uma percepção, cada vez mais forte, de que o padrão de vida dos trabalhadores está sendo ameaçado pelo imenso poder concedido aos grandes grupos privados.
Ou seja: as privatizações e a busca agressiva da produtividade por meio da pressão sobre os países para a liberalização de suas economias — principalmente a chamada “flexibilização” das leis de proteção social e trabalhista — representam uma barreira que o capital tenta erguer contra o trabalho. Atualmente, além do desemprego gigantesco existem muitos fatores que indicam um acirramento dessa luta. Baixos salários, regimes de superexploração, trabalho escravo - principalmente de presos e infantil - e restrições à liberdade sindical são cada vez mais frequentes no mundo.
Para os neoliberais, no entanto, seu programa não deve ser julgado em termos de “contra” e “a favor”. Como eles se imaginam os donos do mundo, acham que podem impor seu pensamento único como um conjunto de realidades que passaram a fazer parte da vida econômica mundial desde que surgiram como força política hegemônica. Eles julgam a resistência dos povos confusamente, alguma coisa tramada por “esquerdistas”, não se sabe bem como, e promovida mundo afora por sindicatos e Ongs. E disso vem, de um jeito ou de outro, a responsabilidade pela maioria das coisas erradas que existem por aí, a começar pelo sistema de aposentadoria. No mundo das realidades, a história é bem diferente.
Princípios da verdade
No Brasil, por exemplo, a Previdência Social surgiu no contexto da modernização das relações sociais da Revolução de 1930, especialmente como instrumento de distribuição de renda. Algo moderníssimo para a condição brasileira, mas muito distante do que aconteceu na Europa com o Estado de bem-estar social, concebido para injetar compaixão no capitalismo. Por toda parte, surgiram benefícios para idosos, desempregados e pobres em geral. Foram estabelecidas regras para aumentar os salários, garantir empregos e melhorar as condições de trabalho.
Afirmar que não dá mais para bancar todos esses benefícios, mesmo com os elevados ganhos de produtividade da segunda metade do século XX, é faltar com os mais elementares princípios da verdade. Por isso, os esforços para cortar benefícios enfrentam cada vez mais resistência popular — como as sucessivas greves na Europa. A questão real é que a sobrevivência do Estado de bem-estar social e da Previdência Social brasileira seria a condição para evitar a volta do capitalismo sem freios do século XIX. Os trabalhadores brasileiros têm muito a aprender com a resistência de seus congêneres europeus.
Em 1988, Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, já antecipava as dificuldades à frente das tentativas reformistas. “A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros”, afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira — e lá ficou até que o presidente Jacques Chirac foi reeleito. A “reforma” da previdência, já encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 1990, virou a grande prioridade de seu governo. Chirac quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro capaz de fazer o termômetro social atingir as mais elevadas temperaturas.
Rápido envelhecimento
Foi exatamente o que se viu: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades francesas, e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando todas as expectativas iniciais. A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. “As ruas não governam o país”, reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Europeia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a “reforma” da previdência voltou para a gaveta.
O sistema de bem-estar social teve seu apogeu na Guerra Fria. Com a derrocada do bloco soviético, o caráter ideológico da discussão entre as vantagens do capitalismo “menos desumano” sobre o capitalismo selvagem se acentuou. Os governos dos países europeus começaram a fazer contas e, do nada, “descobriram” que o chamado welfare state havia se tornado caro e pesado demais para ser mantido. A Inglaterra iniciou o processo em 1979 pelas mãos liberalizantes da dama de ferro, Margaret Thatcher.
Em meados da década passada o governo britânico publicou uma lei que prevê um aumento progressivo da idade da aposentadoria, até chegar a 68 anos. Além disso, a pensão não é mais indexada à inflação, mas no aumento dos rendimentos. Na Alemanha, o governo de “grande coalizão” de Angela Merkel anunciou que fixará o aumento da idade legal de aposentadoria para 67 anos até 2029. A Itália, em grave crise política, anuncia negociações para uma nova “reforma”, que pode aumentar a idade da aposentadoria. A Comissão Europeia pediu que os países da União Europeia (UE) “intensifiquem seus esforços de reforma diante do rápido envelhecimento das populações”.
Economia dinâmica
Os neoliberais perdem a razão quando se constata, entre outros dados, que por trás dos sistemas de aposentadoria existe uma indústria trabalhando a todo o vapor. Dos medicamentos e serviços de saúde aos automóveis, dos alimentos ao setor financeiro, não há área de negócios que escape da influência das mudanças demográficas em curso. Em 2025, o Brasil passará da 16ª posição à sexta na lista dos países com o maior número de idosos. Serão 33 milhões de pessoas com mais de 60 anos de idade — o equivalente a duas vezes a população do Estado de Minas Gerais.
Um levantamento do grupo francês Sodexho avalia em US$ 25 bilhões o potencial de mercado dos idosos em 11 países. Devido ao envelhecimento da população, a Sodexho estima que até 2025 seus negócios - que vão desde serviços de alimentação, limpeza e lavanderia até o acompanhamento de idosos e os cuidados com eles - cresçam 27% na Espanha, 13% no Reino Unido e 3% na França e na Itália. Não é possível imaginar uma economia dinâmica e em desenvolvimento sem levar em conta a necessidade de um sistema de aposentadoria minimamente decente.
Na década passada, a primeira leva de trabalhadores nascidos após a Segunda Guerra Mundial (conhecidos como a geração do baby boom) chegou à idade de se aposentar, um fato que trouxe considerável pressão sobre os orçamentos da seguridade social. Com o fraco crescimento das finanças públicas, decorrente de uma pequena expansão do Produto Interno Bruto (PIB) na maioria dos países, desde então a ofensiva neoliberal contra a previdência pública começou a fazer com que em muitos países estourassem grandes manifestações de trabalhadores. O dilema decorre de uma pergunta que a humanidade precisa responder: envelhecer é uma coisa boa ou ruim? Em sua essência, trata-se evidentemente de uma coisa boa. Afinal, a maioria das pessoas prefere viver mais a viver menos.
Vida mais longa é um dos resultados positivos mais evidentes do fantástico crescimento econômico e do avanço tecnológico ocorrido no século XX. Trata-se de uma conquista da humanidade. Mas é preciso definir uma forma de lidar com a nova situação. Proporcionalmente, há cada vez mais pessoas fora das cadeias de produção em comparação com as que estão na ativa. Um número menor de trabalhadores poderia ser um problema econômico muito grave se implicasse um obstáculo à produção, mas o risco não é esse. No longo prazo, o verdadeiro crescimento é causado essencialmente por novas tecnologias e por mais eficiência, e não necessariamente por mais braços.
Mundo das realidades
É o fenômeno da produtividade, tão comentado pelos economistas e brilhantemente dissecada por Karl Marx, principalmente em O Capital. Aumento da produtividade quer dizer, sucintamente, mais valor agregado à produção por cada hora trabalhada. A apropriação deste valor é a grande questão. Daí a constatação de que não é possível imaginar o capitalismo sem classes e luta entre elas. O ponto é: como o Estado deve atuar nessa equação? Para a ideologia neoliberal, esse ponto simplesmente não existe. Em todo o planeta há uma percepção, cada vez mais forte, de que o padrão de vida dos trabalhadores está sendo ameaçado pelo imenso poder concedido aos grandes grupos privados.
Ou seja: as privatizações e a busca agressiva da produtividade por meio da pressão sobre os países para a liberalização de suas economias — principalmente a chamada “flexibilização” das leis de proteção social e trabalhista — representam uma barreira que o capital tenta erguer contra o trabalho. Atualmente, além do desemprego gigantesco existem muitos fatores que indicam um acirramento dessa luta. Baixos salários, regimes de superexploração, trabalho escravo - principalmente de presos e infantil - e restrições à liberdade sindical são cada vez mais frequentes no mundo.
Para os neoliberais, no entanto, seu programa não deve ser julgado em termos de “contra” e “a favor”. Como eles se imaginam os donos do mundo, acham que podem impor seu pensamento único como um conjunto de realidades que passaram a fazer parte da vida econômica mundial desde que surgiram como força política hegemônica. Eles julgam a resistência dos povos confusamente, alguma coisa tramada por “esquerdistas”, não se sabe bem como, e promovida mundo afora por sindicatos e Ongs. E disso vem, de um jeito ou de outro, a responsabilidade pela maioria das coisas erradas que existem por aí, a começar pelo sistema de aposentadoria. No mundo das realidades, a história é bem diferente.
Princípios da verdade
No Brasil, por exemplo, a Previdência Social surgiu no contexto da modernização das relações sociais da Revolução de 1930, especialmente como instrumento de distribuição de renda. Algo moderníssimo para a condição brasileira, mas muito distante do que aconteceu na Europa com o Estado de bem-estar social, concebido para injetar compaixão no capitalismo. Por toda parte, surgiram benefícios para idosos, desempregados e pobres em geral. Foram estabelecidas regras para aumentar os salários, garantir empregos e melhorar as condições de trabalho.
Afirmar que não dá mais para bancar todos esses benefícios, mesmo com os elevados ganhos de produtividade da segunda metade do século XX, é faltar com os mais elementares princípios da verdade. Por isso, os esforços para cortar benefícios enfrentam cada vez mais resistência popular — como as sucessivas greves na Europa. A questão real é que a sobrevivência do Estado de bem-estar social e da Previdência Social brasileira seria a condição para evitar a volta do capitalismo sem freios do século XIX. Os trabalhadores brasileiros têm muito a aprender com a resistência de seus congêneres europeus.
Em 1988, Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, já antecipava as dificuldades à frente das tentativas reformistas. “A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros”, afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira — e lá ficou até que o presidente Jacques Chirac foi reeleito. A “reforma” da previdência, já encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 1990, virou a grande prioridade de seu governo. Chirac quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro capaz de fazer o termômetro social atingir as mais elevadas temperaturas.
Rápido envelhecimento
Foi exatamente o que se viu: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades francesas, e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando todas as expectativas iniciais. A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. “As ruas não governam o país”, reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Europeia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a “reforma” da previdência voltou para a gaveta.
O sistema de bem-estar social teve seu apogeu na Guerra Fria. Com a derrocada do bloco soviético, o caráter ideológico da discussão entre as vantagens do capitalismo “menos desumano” sobre o capitalismo selvagem se acentuou. Os governos dos países europeus começaram a fazer contas e, do nada, “descobriram” que o chamado welfare state havia se tornado caro e pesado demais para ser mantido. A Inglaterra iniciou o processo em 1979 pelas mãos liberalizantes da dama de ferro, Margaret Thatcher.
Em meados da década passada o governo britânico publicou uma lei que prevê um aumento progressivo da idade da aposentadoria, até chegar a 68 anos. Além disso, a pensão não é mais indexada à inflação, mas no aumento dos rendimentos. Na Alemanha, o governo de “grande coalizão” de Angela Merkel anunciou que fixará o aumento da idade legal de aposentadoria para 67 anos até 2029. A Itália, em grave crise política, anuncia negociações para uma nova “reforma”, que pode aumentar a idade da aposentadoria. A Comissão Europeia pediu que os países da União Europeia (UE) “intensifiquem seus esforços de reforma diante do rápido envelhecimento das populações”.
Economia dinâmica
Os neoliberais perdem a razão quando se constata, entre outros dados, que por trás dos sistemas de aposentadoria existe uma indústria trabalhando a todo o vapor. Dos medicamentos e serviços de saúde aos automóveis, dos alimentos ao setor financeiro, não há área de negócios que escape da influência das mudanças demográficas em curso. Em 2025, o Brasil passará da 16ª posição à sexta na lista dos países com o maior número de idosos. Serão 33 milhões de pessoas com mais de 60 anos de idade — o equivalente a duas vezes a população do Estado de Minas Gerais.
Um levantamento do grupo francês Sodexho avalia em US$ 25 bilhões o potencial de mercado dos idosos em 11 países. Devido ao envelhecimento da população, a Sodexho estima que até 2025 seus negócios - que vão desde serviços de alimentação, limpeza e lavanderia até o acompanhamento de idosos e os cuidados com eles - cresçam 27% na Espanha, 13% no Reino Unido e 3% na França e na Itália. Não é possível imaginar uma economia dinâmica e em desenvolvimento sem levar em conta a necessidade de um sistema de aposentadoria minimamente decente.
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