Por Margarida Salomão, no site Mídia Ninja:
Sessenta e quatro: Anatomia da Crise, de Wanderley Guilherme dos Santos, é uma das mais emblemáticas produções da Ciência Política brasileira. Há ali, ao menos, dois razoáveis méritos. Primeiro, apresentar um conteúdo fruto de profunda pesquisa empírica, alcançando conclusões que em nada parecem com certa visão depreciativa (e etnocentrista) anteriormente vigente sobre o sistema político brasileiro.
De outro modo, o autor ainda alcançou identificar no processo de acirramento da polarização política no sistema partidário nacional, as razões para o golpe de 64. Tal radicalização acabou por impossibilitar qualquer tipo de cooperação parlamentar ou mesmo entre executivo e legislativo. Daí a paralisia decisória e a ruptura autoritária da democracia.
Com a mesma lucidez, vem agora Wanderley Guilherme dos Santos ponderar para a inequívoca participação do judiciário brasileiro no mais recente golpe sofrido pela democracia brasileira, o golpe de 16.
Trata-se de um golpe parlamentar, é fato, mas que carrega consigo outras marcas.
Em seu mais recente livro, A democracia impedida, Wanderley pondera sobre a natureza da ruptura democrática de 2016. De modo mais claro, há o verniz de legalidade. O golpe de Temer e camarilha se valeu de mecanismos de operação normal das instituições em favor de objetivos ilegítimos.
Há que se considerar que não se toma o butim de uma só vez. De fato, não uma, mas várias ilegalidades foram cometidas em todo o processo que apeou Dilma da presidência. E desde então, várias outras situações minimamente pitorescas vem recebendo destaque.
Não há chance de tal ordem de coisas ganhar efetividade num golpe exclusivamente parlamentar. Não haveria chances de Temer alcançar o poder sem que o processo que permitiu isso fosse assistido por um judiciário partícipe.
“Um golpe parlamentar supõe concordância tácita quanto a procedimentos e, tão importante, também quanto a silêncios.”
O golpe de 16 foi, portanto, fruto de um inesperado arranjo institucional, em que um acordo tácito entre a mais estéril fatia do Parlamento teve suporte do Judiciário brasileiro, no caso, o Supremo Tribunal Federal – sendo ainda financiados pela Fiesp e favorecidos por uma mídia retrógrada.
Há ineditismo no arranjo, mas não no comportamento do Judiciário. Como bem lembra Wanderley, a virulência dos juízes data desde a Ação Penal 470. Desde então, há intervenção jurídica na ordem política, mas utilizando-se de pretexto sem fundamento real para instaurar processos políticos de degradação, além daqueles de punição penal, com apoio midiático e apelo classista.
Há, desde então, a evidenciação da falência epistemológica da produção de decisões jurídicas. Os juízos explicitam não o teste de hipóteses e de dados coletados, mas a concatenação de versões e teorias que sirvam ao clamor do momento.
Foi assim que a AP 470 encontrou seus culpados – seriam aqueles que, pelo contexto, estariam impossibilitados de não ter conhecimento dos crimes praticados, sendo por isso responsáveis. Pouco importa a inexistência de provas que evidenciasse ligação direta com o fato apurado. A mera proximidade hierárquica seria condição suficiente para a condenação.
O mesmo ocorre agora, com Janot, nas recentes denúncias contra Lula e Dilma. São acusados meramente porque chefiavam o Planalto enquanto eventuais crimes foram cometidos.
É o que se mostra patente nos processos contra Lula, conduzidos a mão de ferro pelo juizado de Curitiba. Trata-se de uma situação que beira ao absurdo, uma vez que os elementos condenatórios têm sido produzidos ex post facto.
Não há planilhas que mencionem Lula, muito menos gravações, quanto mais contas na Suíça ou apartamentos abarrotados de dinheiro.
O que supostamente há é o testemunho colhido de figuras que há meses encontram-se presas, algumas delas já condenadas, movidas pela promessa de redução de pena.
Inverte-se o estatuto da delação premiada. Mais do que os delatores, quem verdadeiramente se beneficia são os acusadores, que por meio do testemunho forçado dos condenados alcançam montar um quebra-cabeça que sustente a hipótese que desde sempre acreditavam.
Como lembra Wanderley, há duas consequências claras produzidas por esse tipo de prática. Primeiro, permite uma ampla partidarização do processo judicial. Os culpados são conhecidos de antemão – são aqueles representantes das camadas populares da sociedade.
De outro modo, trata-se do próprio sequestro poder constituinte, da soberania popular, manifestada por meio do sufrágio eleitoral. O que esses juízos têm feito, inclusive o STF durante o processo contra Dilma, é trazer para os tribunais o espaço de decisão de quem governa.
Na prática, o “todo poder emana do povo”, presente em nossa Constituição, acaba substituído mediocremente pelo “a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que ela é”, expresso pelo ex-magistrado Joaquim Barbosa, anos atrás.
Aparentemente, essa tragédia brasileira, de implosão da justiça, representa uma face da ofensiva mundial do neoliberalismo, de desconstrução interna do estado. De fazer com que as instituições sirvam não ao poder constituinte, mas sim aos interesses do establishment.
Basta lembrar que o golpe parlamentar-jurídico brasileiro foi precedido de episódio semelhante na Bolívia. Fato semelhante ocorreu na rica Finlândia, com um governo popular sendo deposto sob o argumento de substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo.
Esse estado de coisas exige da esquerda a tempestividade de uma agenda democrática. Cabe a nós, como sempre, armar trincheiras contra o desmonte do estado, expresso tanto na dilapidação de patrimônios públicos, como a Petrobras e a Eletrobras, bem como no desmonte do já limitado sistema de proteção social brasileiro, processo hoje operado por meio das reformas trabalhista e da previdência.
De outro modo, é também necessário coragem e ousadia para reformar democraticamente nossas instituições. Isso passa, evidentemente, por uma reforma política adequada, que dê o devido valor aos partidos e ao processo eleitoral.
Contudo, passa também por resgatar à cidadania a soberania sobre todos os poderes do estado, entre os quais o Judiciário e instâncias a ele relacionadas, como o Ministério Público. É inadmissível que seus operadores atuem à revelia popular, sem qualquer tipo de controle social.
De outro modo, o autor ainda alcançou identificar no processo de acirramento da polarização política no sistema partidário nacional, as razões para o golpe de 64. Tal radicalização acabou por impossibilitar qualquer tipo de cooperação parlamentar ou mesmo entre executivo e legislativo. Daí a paralisia decisória e a ruptura autoritária da democracia.
Com a mesma lucidez, vem agora Wanderley Guilherme dos Santos ponderar para a inequívoca participação do judiciário brasileiro no mais recente golpe sofrido pela democracia brasileira, o golpe de 16.
Trata-se de um golpe parlamentar, é fato, mas que carrega consigo outras marcas.
Em seu mais recente livro, A democracia impedida, Wanderley pondera sobre a natureza da ruptura democrática de 2016. De modo mais claro, há o verniz de legalidade. O golpe de Temer e camarilha se valeu de mecanismos de operação normal das instituições em favor de objetivos ilegítimos.
Há que se considerar que não se toma o butim de uma só vez. De fato, não uma, mas várias ilegalidades foram cometidas em todo o processo que apeou Dilma da presidência. E desde então, várias outras situações minimamente pitorescas vem recebendo destaque.
Não há chance de tal ordem de coisas ganhar efetividade num golpe exclusivamente parlamentar. Não haveria chances de Temer alcançar o poder sem que o processo que permitiu isso fosse assistido por um judiciário partícipe.
“Um golpe parlamentar supõe concordância tácita quanto a procedimentos e, tão importante, também quanto a silêncios.”
O golpe de 16 foi, portanto, fruto de um inesperado arranjo institucional, em que um acordo tácito entre a mais estéril fatia do Parlamento teve suporte do Judiciário brasileiro, no caso, o Supremo Tribunal Federal – sendo ainda financiados pela Fiesp e favorecidos por uma mídia retrógrada.
Há ineditismo no arranjo, mas não no comportamento do Judiciário. Como bem lembra Wanderley, a virulência dos juízes data desde a Ação Penal 470. Desde então, há intervenção jurídica na ordem política, mas utilizando-se de pretexto sem fundamento real para instaurar processos políticos de degradação, além daqueles de punição penal, com apoio midiático e apelo classista.
Há, desde então, a evidenciação da falência epistemológica da produção de decisões jurídicas. Os juízos explicitam não o teste de hipóteses e de dados coletados, mas a concatenação de versões e teorias que sirvam ao clamor do momento.
Foi assim que a AP 470 encontrou seus culpados – seriam aqueles que, pelo contexto, estariam impossibilitados de não ter conhecimento dos crimes praticados, sendo por isso responsáveis. Pouco importa a inexistência de provas que evidenciasse ligação direta com o fato apurado. A mera proximidade hierárquica seria condição suficiente para a condenação.
O mesmo ocorre agora, com Janot, nas recentes denúncias contra Lula e Dilma. São acusados meramente porque chefiavam o Planalto enquanto eventuais crimes foram cometidos.
É o que se mostra patente nos processos contra Lula, conduzidos a mão de ferro pelo juizado de Curitiba. Trata-se de uma situação que beira ao absurdo, uma vez que os elementos condenatórios têm sido produzidos ex post facto.
Não há planilhas que mencionem Lula, muito menos gravações, quanto mais contas na Suíça ou apartamentos abarrotados de dinheiro.
O que supostamente há é o testemunho colhido de figuras que há meses encontram-se presas, algumas delas já condenadas, movidas pela promessa de redução de pena.
Inverte-se o estatuto da delação premiada. Mais do que os delatores, quem verdadeiramente se beneficia são os acusadores, que por meio do testemunho forçado dos condenados alcançam montar um quebra-cabeça que sustente a hipótese que desde sempre acreditavam.
Como lembra Wanderley, há duas consequências claras produzidas por esse tipo de prática. Primeiro, permite uma ampla partidarização do processo judicial. Os culpados são conhecidos de antemão – são aqueles representantes das camadas populares da sociedade.
De outro modo, trata-se do próprio sequestro poder constituinte, da soberania popular, manifestada por meio do sufrágio eleitoral. O que esses juízos têm feito, inclusive o STF durante o processo contra Dilma, é trazer para os tribunais o espaço de decisão de quem governa.
Na prática, o “todo poder emana do povo”, presente em nossa Constituição, acaba substituído mediocremente pelo “a Constituição é aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que ela é”, expresso pelo ex-magistrado Joaquim Barbosa, anos atrás.
Aparentemente, essa tragédia brasileira, de implosão da justiça, representa uma face da ofensiva mundial do neoliberalismo, de desconstrução interna do estado. De fazer com que as instituições sirvam não ao poder constituinte, mas sim aos interesses do establishment.
Basta lembrar que o golpe parlamentar-jurídico brasileiro foi precedido de episódio semelhante na Bolívia. Fato semelhante ocorreu na rica Finlândia, com um governo popular sendo deposto sob o argumento de substituição do presidencialismo pelo parlamentarismo.
Esse estado de coisas exige da esquerda a tempestividade de uma agenda democrática. Cabe a nós, como sempre, armar trincheiras contra o desmonte do estado, expresso tanto na dilapidação de patrimônios públicos, como a Petrobras e a Eletrobras, bem como no desmonte do já limitado sistema de proteção social brasileiro, processo hoje operado por meio das reformas trabalhista e da previdência.
De outro modo, é também necessário coragem e ousadia para reformar democraticamente nossas instituições. Isso passa, evidentemente, por uma reforma política adequada, que dê o devido valor aos partidos e ao processo eleitoral.
Contudo, passa também por resgatar à cidadania a soberania sobre todos os poderes do estado, entre os quais o Judiciário e instâncias a ele relacionadas, como o Ministério Público. É inadmissível que seus operadores atuem à revelia popular, sem qualquer tipo de controle social.
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