Toda decisão do Estado, em qualquer dos Três Poderes, é política, pois implica em cursos de ação com obrigatoriedade de cumprimento, garantida, no limite, pelo uso monopolístico da força, que o poder público proclama assentar-se na legitimidade. O veredito jurídico é uma decisão política do Poder Judiciário.
No entanto, enquanto tende a ser aceitavelmente alto o grau de politização de uma decisão sobre política pública ou sobre as regras do jogo político (a chamada reforma política, por exemplo), a decisão jurídica deve se pautar em critérios de racionalização técnica de corte mais universal, como as teorias doutrinárias e a jurisprudência. Afinal, a Justiça não é cega, ainda que ela seja um órgão político cumpridor de uma função institucional essencial do poder do Estado? Em que medida o julgamento de Lula não tem sido conduzido pelo processo de politização que tem caracterizado a ação do populismo jurídico emergente no Brasil, onde a polarização política alcançou expressão inédita?
Como já apontado nessa coluna, o ativismo do sistema jurídico-policial abriu seu caminho de ação no processo político movido pela vontade de passar o país a limpo e inaugurar uma nova etapa da história nacional. Mas não compete a esse sistema, composto por pessoal não eleito pelo voto popular, assumir as rédeas de um projeto de país, adentrar no terreno contingente da política programática e desincumbir-se dos procedimentos técnicos regulamentados aos quais seus integrantes são investidos do poder-dever de cumprir.
Segundo a Constituição, todo poder emana do povo, que escolhe seus representantes políticos em eleições livres e regulares. As flagrantes ilegitimidade e ilegalidade da usurpação da soberania popular pelos estamentos jurídico-repressores, assim como a irresponsabilidade de sua conduta, motivada por um projeto salvacionista de “lavar a jato” o país, sem atentar para as conseqüências de suas escolhas e ações, colocam os sistemas político, econômico e social do Brasil em uma encruzilhada histórica. Perante tais ambições higienistas, onde fica a maioria da população, que depende de políticas públicas para ter acesso a um mínimo de bem-estar? Onde fica a produção nacional, questão estratégica não só internamente, para o abastecimento doméstico dos cidadãos, mas também para a segurança internacional, dada a competição interestatal? E onde ficam os direitos civis? Em março de 2015, por exemplo, o juiz Sérgio Moro deixou vazar conteúdo de grampo telefônico ilegal, que prejudicou tanto Lula quanto a então presidenta Dilma.
Há uma grande disputa política no Brasil na qual o Poder Judiciário está inserido, mesmo que, formalmente, por via indireta. Por um lado, estão Lula e o PT e a esquerda com capacidade e disposição de governar, defensores de um projeto de desenvolvimento com inclusão social, experimentado, com sucessos e fracassos, de 2003 até a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, após quatro vitórias consecutivas nas urnas. Tais forças estão sob fogo cruzado desde as eleições de 2014, alvos prioritários da Operação Lava-Jato, iniciada em março daquele ano (lembremos, por exemplo, das capas da revista Veja durante o pleito presidencial ou do centro do PowerPoint de Deltan Dallagnol). Por outro lado, há a direita, o projeto neoliberal-conservador, no qual, por várias mediações, abriga-se a Lava Jato. Esta, em nome do combate à corrupção, tornou-se peça-chave na conjuntura do golpe institucional contra a presidenta eleita e na função de criminalização do partido que é ainda hoje a única ameaça efetiva à política de Estado mínimo e de terra arrasada ditada pelos interessados nos mercados livres.
Não há santos nem de um lado e nem de outro, como o ingênuo maniqueísmo poderia imaginar. O julgamento de Lula é a cereja do bolo da Lava Jato e insere-se nesse cenário político polarizado. A burocracia togada tornou-se ator político no sentido amplo do termo, e não meramente no natural sentido estrito, decorrente da sua função oficial no Estado. Conforme vários juristas e criminalistas têm apontado, constituem indícios da politização indevida do Judiciário no processo do ex-presidente, entre outros pontos: a sua condenação por corrupção passiva, não associada a ato de ofício; a não-comprovação de que ele possuía o triplex; o reconhecimento de Moro, por escrito, em resposta a um embargo de declaração da defesa, de que o réu não se beneficiou de vantagem indevida com os recursos da Petrobras desviados pela construtora OAS; a tramitação veloz da ação penal em Curitiba e o agendamento do recurso no TRF-4 compassado ao calendário eleitoral, ambos desviando-se da média temporal de procedimentos técnicos afins, ensejando avaliar que um poder do Estado sem mandato e legitimidade para interferir na política competitiva está extrapolando suas funções.
A declaração do procurador Dallagnol de que Lula deverá ser preso logo após ocorrer a por ele desejada confirmação da condenação do réu pela Corte Recursal também evidencia o caráter político do processo. Seria no mínimo controversa a necessidade de prisão no caso em tela. Recentemente veio a público, pelas redes sociais, que a chefe de gabinete da Presidência do TRF-4, Daniela Tagliari K. Lau, milita pela prisão de Lula. Não à toa, seu direitismo se faz acompanhar do apoio ao Exército nas ruas, ao MBL e ao “Escola sem Partido”.
Mas a hipótese do caráter político da condenação de Lula e do julgamento do recurso, agendado pelo TRF-4 para 24 de janeiro, não se esgota no Judiciário. Há uma coalizão de interesses em torno da condenação do líder isolado nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais de 2018. Poucas semanas atrás, em 12 de dezembro, editorial de O Globo, supostamente em defesa da igualdade de todos perante a lei, afirmou o seguinte, ao criticar Fernando Henrique Cardoso, que disse preferir combater Lula nas urnas a vê-lo preso: “O Brasil de hoje felizmente é outro: um país em que as instituições republicanas estão sendo reconstruídas a duras penas”. Tamanha desfaçatez para um órgão da grande mídia só é inteligível considerando-se que se trata de “imprensa com partido”, que investe na criminalização do PT e de seu líder máximo. Por duas vezes, nos últimos seis meses, escândalos gêmeos de repercussão internacional envolveram a enlameada Câmara dos Deputados: vitaminada com uma liberação recorde de emendas parlamentares pelo Executivo, que alcançou a bagatela de R$ 10,7 bilhões em 2017, a casa dos representantes do povo se negou a autorizar processo de Temer pelo STF.
Jamais o mercado, a grande mídia e a sociedade civil da direita, como os paneleiros revoltados das varandas elegantes e pró-MBL, aceitariam tal desfecho se fosse para livrar os ex-presidentes Lula e Dilma de processo semelhante. Porém, como o governo tem sido generoso com os endinheirados dos mercados, o sentimento desses poderosos, que financiam e estimulam as novas direitas, não foi de indignação, mas de alívio e euforia. Assim informou a Folha de S.Paulo em 3 de agosto, quando o presidente escapou da primeira ação penal: “Investidores aproveitaram a quinta-feira [...] para embolsar lucro após cinco sessões seguidas de alta da Bolsa brasileira e depois de os aliados do presidente Michel Temer conseguirem barrar, no Congresso, a denúncia contra o peemedebista por corrupção passiva”. O sumido “Vem pra Rua”, que nada fez contra Temer, saiu da toca agora para informar que está organizando manifestações simultâneas em várias cidades, na véspera do julgamento do recurso da defesa de Lula, para demandar e apoiar a confirmação de sua condenação.
O TRF-4 encontra-se perante uma decisão política crucial, de grande envergadura histórica, que deve ser tomada no mais rigoroso insulamento burocrático e no rigor do Direito. No entanto, o relator do recurso, desembargador João Pedro Gebran Neto, é amigo muito próximo do juiz Sergio Moro, cuja isenção funcional está sob suspeita. Aliás, a popularidade do juiz de Curitiba vem caindo. Segundo pesquisa recente do Ipsos, 53% dos entrevistados o reprovam. Ademais, o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, que não é relator do recurso e nem compõe a Turma de julgamento do caso, elogiou a sentença condenatória. Segundo alguns especialistas, tal posicionamento fere a Lei Orgânica da Magistratura, por se tratar de processo em tramitação.
Enfim, é muito preocupante que, diante de uma decisão de profundo impacto na ordem política nacional, agentes institucionais do Poder Judiciário exibam, de algum modo, sua suscetibilidade às intensas pressões da coalizão antipetista, em relação à qual não haveria outra postura aceitável a não ser o isolamento hermético. A polarização política aberta desde 2014 tem feito o Estado Democrático de Direito retroceder substantivamente em seus níveis de democracia e de legalidade. Aliás, veio do TRF-4, no contexto da Lava Jato, uma das aberrações monstrengas do ideário sombrio atual da direita emergente: “uma situação excepcional exige condutas excepcionais”. O vir-a-ser do processo de desadjetivação do Estado brasileiro sinaliza a versão pós-moderna do Leviatã de Thomas Hobbes? (Agradeço à colaboração de Felipe Maruf Quintas.)
* Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do INCT-PPED, realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia.
* Publicado originalmente no Jornal do Brasil.
1 comentários:
Excelente analise de Marcus Ianoni.Eh exatamente o que acontece no Brasil. O Judiciário brasileiro estah totalmente corrompido e assumiu a direção do Golpe de 2016. Acabou a farsa de um Judiciário independente e imparcial e de Juízes impolutos e incorruptíveis. O ultimo morreu num desastre de avião. Agora eh a ditadura do Judiciário a serviço escancarado da classe dominante, da direita reacionária, conservadora e hipócrita. O Brasil vai assim mergulhando em uma degradação total e retrocedendo do seu incipiente estado de desenvolvimento por causa das forcas do atraso e da barbárie, na contra-mão da historia.
Postar um comentário