Por Miguel Martins, na revista CartaCapital:
"As declarações de (Léo) Pinheiro Filho soam críveis", assinala Sergio Moro na sentença que condenou Lula a nove anos e meio de prisão, prestes a ser analisada em segunda instância pela Justiça.
O magistrado diz não vislumbrar motivo para o delator do ex-presidente no processo do tríplex admitir "a prática de um crime de corrupção", no caso, o repasse de propina ao petista na forma do imóvel, e negar "o outro", relativo ao recebimento de vantagens ilícitas para o armazenamento do acervo presidencial.
"Caso sua intenção fosse mentir em Juízo em favor próprio e do ex-presidente, (Pinheiro) negaria ambos os crimes", conclui o magistrado. "Caso a intenção fosse mentir em Juízo somente para obter benefícios legais, afirmaria os dois crimes."
A argumentação do juiz pressupõe que a confirmação de um crime e a negação de outro permitem concluir pela veracidade da narrativa de Léo Pinheiro. Como a tese de Moro não pode ser verificada a partir do raciocínio lógico, sua conclusão pode ser considerada uma falácia de "apelo à crença", de acordo com o filósofo Euclides André Mance.
Assim como os desembargadores do TRF-4, que julgarão em segunda instância a condenação de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, o pesquisador debruçou-se sobre a sentença de Moro contra Lula. Em vez de avaliá-la do ponto de vista jurídico, seu objetivo foi identificar equívocos de raciocínio, ou argumentações sem consistência lógica (confira alguns exemplos). A falácia do apelo à crença é apenas um dos erros lógicos identificados pelo filósofo.
Integrante da coordenação geral do Instituto de Filosofia da Libertação e ex-professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estado que abriga a força-tarefa da Lava Jato comandada pelo juiz, Mance está prestes a publicar o livro "Falácias de Moro", que estará disponível para compra no site da Editora IFIBE nas próximas semanas.
Na obra, o autor identifica dezenas de equívocos lógicos do magistrado na peça. O estudo não é uma abordagem jurídica ou mesmo política da sentença, mas uma verificação das conclusões do magistrado a partir de suas premissas.
Embora tenha sentido pejorativo no senso comum, uma falácia não é necessariamente um ato de má fé. Se for cometida sem intenção, lembra Mance, trata-se de um paralogismo. Quando realizada de forma proposital, é um sofisma. "Os defensores do autor da sentença, possivelmente, verão nessas falácias apenas paralogismos oriundos da análise lógica de um problema bastante complexo. Seus críticos poderão entendê-las como sofismas politicamente motivados", escreve o filósofo.
Mance diz que, ao ler a sentença de Moro, começou a perceber algumas inconsistências. "Lecionei lógica e filosofia da linguagem por alguns anos e percebi essas particularidades". O filósofo elaborou uma versão preliminar do estudo e solicitou a contribuição de outros professores de filosofia. Ele diz não ter parâmetros para avaliar se a sentença de Moro tem mais erros lógicos que a média das peças jurídicas no País. "É a primeira vez que analiso uma sentença, mas fiquei estarrecido".
Muitas das falácias identificadas estão relacionadas a erros de inconsistência ou equivocação, quando há duas afirmações excludentes sobre um mesmo fato. Para reconhecê-las, o filósofo teve de confrontar passagens que estão a centenas de parágrafos de distância.
Em seu estudo, o pesquisador notou que Moro trata o apartamento no Guarujá em certa passagem como um duplex, e mais à frente como um tríplex. A ambiguidade é importante, pois Moro afirma que já havia anotações sobre o tríplex em documentos de aquisição de direitos subscritos pela ex-primeira dama Marisa Letícia, quando na verdade o apartamento ainda era um duplex, diz Mance.
O filósofo lembra ainda da afirmação de Léo Pinheiro de que não havia contado a ninguém no interior da OAS sobre as ilicitudes relacionadas ao tríplex. Em seu depoimento, Agenor Medeiros, diretor da empreiteira, contradiz Pinheiro ao afirmar ter ouvido dele numa viagem que os prejuízos com o tríplex seriam abatidos de uma conta de propinas. "Isso revela que um dos dois, ou talvez ambos, tenham faltado com a verdade em juízo."
Conheça outras falácias identificadas por Mance em seu livro.
"Já foi me dito que era do presidente”: Falácia do apelo à crença comum
O primeiro equívoco lógico apontado pelo filósofo está relacionado à afirmação de Léo Pinheiro de que o apartamento no Guarujá era de fato de Lula. No depoimento a Moro, Pinheiro afirma: "Desde o dia em que me passaram para estudar os empreendimentos da Bancoop, já foi me dito que era do presidente Lula e de sua família, que eu não comercializasse e tratasse aquilo como uma coisa de propriedade do presidente".
Segundo Mance, o fato de Moro utilizar essa afirmação como evidência de que Lula era o destinatário do imóvel é uma falácia do argumento ad populum,ou de apelo à crença comum. Pinheiro afirma que "já foi me dito que era do presidente Lula", mas a sentença não elucida quem na OAS teria informado Pinheiro do esquema.
Assim, a forma argumentativa de Pinheiro aceita por Moro seria:
Se já foi me dito que o triplex era do presidente, então, o triplex era do presidente.
A argumentação, diz o filósofo, é semelhante a afirmar que:
Se já foi me dito que um extraterrestre pousou em Varginha, então, um extraterrestre pousou em Varginha.
A Matéria de "O Globo": Falácia de circularidade
Na sentença, Moro cita como um elemento probatório de que o tríplex era de Lula uma matéria do jornal O Globo publicada em 2010. Na reportagem, intitulada "Caso Bancoop: triplex do casal Lula está atrasado", Lula e Marisa são apontados como donos de uma cobertura no Guarujá.
Mance lembra que Moro não questiona a veracidade da matéria jornalística publicada e a valoriza como elemento probatório. Segundo o filósofo, trata-se de uma falácia de circularidade, quando a premissa e a conclusão apresentam um círculo vicioso. A forma argumentativa de Moro, segundo o filósofo, é a seguinte:
A afirmação, publicada na matéria em 2010, de que o ex-presidente é proprietário do imóvel é elemento probatório de que o ex-presidente é proprietário do imóvel. Porque se ele não fosse proprietário do imóvel, não existiria essa afirmação na matéria em 2010
Mance argumenta que a falácia é semelhante à seguinte:
A afirmação, relatada na bíblia, de que Deus criou o mundo é elemento probatório de que Deus criou o mundo. Porque se Deus não tivesse criado o mundo não haveria essa afirmação relatada na bíblia.
“As reformas foram feitas por solicitação do ex-Presidente”: Falácia non sequitur
Uma das controvérsias do processo reside sobre Lula eMarisa terem solicitado reformas no imóvel. Segundo Mance, Moro considera que o fato de eles terem autorizado mudanças no apartamento constitui prova de sua propriedade sobre o imóvel. Mance considera esse argumento um falácia no sequitur, quando não há conexão entre as premissas e a conclusão.
A forma argumentativa de Moro, segundo o filósofo, é:
Se alguém é proprietário de um imóvel, então aprova as reformas.
Ora, o ex-presidente aprova as reformas
Então ele é proprietário do imóvel.
De acordo com Mance, o argumento é falacioso pois não há uma relação necessária e suficiente entre autorizar reformas e ser o proprietário de um imóvel. A forma argumentativa de Moro permitiria também dizer que:
Se alguém é proprietário de um imóvel, então aprova as reformas.
Ora, o arquiteto, o engenheiro e o corpo de bombeiros aprovaram as reformas do imóvel.
Então, o arquiteto, o engenheiro e o corpo de bombeiros são proprietários do imóvel.
“Reformas não seriam pagas”: Falácia de apelo à presciência
Na sentença, Moro argumenta que os gastos das reformas do apartamento "não seriam pagos pelo ex-presidente e por sua esposa", mas seriam consumidas como vantagem indevida em um acerto de corrupção. Mance considera a argumentação falaciosa por utilizar o futuro do pretérito como tempo verbal. Segundo o autor, a afirmação "toma por fato acontecido o que era mera suposição do que poderia ser dar no futuro".
Moro acaba por confiar que Lula "não pagaria" as reformas, mas não tem conhecimento do futuro para saber se os custos ficariam a cargo do ex-presidente ou da OAS. É um argumento que considera apenas um cenário em meio a outros tantos possíveis. Na lógica, esse tipo de presciência sobre o futuro, diz Mance, costuma ser reservado apenas a entidades divinas. No âmbito da teologia, Deus é o único capaz de prever o futuro.
“Foi abatido nesse encontro de contas”: Falácia do argumentum ad hominem
Um dos pontos centrais da argumentação de Moro para condenar Lula reside na declaração de Pinheiro de que a diferença entre o preço do imóvel comprado pelo ex-presidente e Marisa em 2005 e o valor do tríplex reservado ao casal posteriormente teria sido abatido de uma conta de propinas.
Segundo Mance, Moro não investigou o destino do valor supostamente abatido das contas de propina, cerca de 800 mil reais, embora a própria sentença afirme que ele não foi gasto com as reformas. Além disso, o magistrado não comprova, segundo o filósofo, "a real ocorrência daquilo que é afirmado".
Ao tomar como verdadeiro algo que Pinheiro diz sem verificar, Moro incorre, segundo Mance, em uma falácia do tipo argumentum ad hominem, quando reputa-se a condição da pessoa, as circunstâncias em que se encontra ou a sua atitude para confirmar a validade do que ela afirma.
O magistrado diz não vislumbrar motivo para o delator do ex-presidente no processo do tríplex admitir "a prática de um crime de corrupção", no caso, o repasse de propina ao petista na forma do imóvel, e negar "o outro", relativo ao recebimento de vantagens ilícitas para o armazenamento do acervo presidencial.
"Caso sua intenção fosse mentir em Juízo em favor próprio e do ex-presidente, (Pinheiro) negaria ambos os crimes", conclui o magistrado. "Caso a intenção fosse mentir em Juízo somente para obter benefícios legais, afirmaria os dois crimes."
A argumentação do juiz pressupõe que a confirmação de um crime e a negação de outro permitem concluir pela veracidade da narrativa de Léo Pinheiro. Como a tese de Moro não pode ser verificada a partir do raciocínio lógico, sua conclusão pode ser considerada uma falácia de "apelo à crença", de acordo com o filósofo Euclides André Mance.
Assim como os desembargadores do TRF-4, que julgarão em segunda instância a condenação de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, o pesquisador debruçou-se sobre a sentença de Moro contra Lula. Em vez de avaliá-la do ponto de vista jurídico, seu objetivo foi identificar equívocos de raciocínio, ou argumentações sem consistência lógica (confira alguns exemplos). A falácia do apelo à crença é apenas um dos erros lógicos identificados pelo filósofo.
Integrante da coordenação geral do Instituto de Filosofia da Libertação e ex-professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estado que abriga a força-tarefa da Lava Jato comandada pelo juiz, Mance está prestes a publicar o livro "Falácias de Moro", que estará disponível para compra no site da Editora IFIBE nas próximas semanas.
Na obra, o autor identifica dezenas de equívocos lógicos do magistrado na peça. O estudo não é uma abordagem jurídica ou mesmo política da sentença, mas uma verificação das conclusões do magistrado a partir de suas premissas.
Embora tenha sentido pejorativo no senso comum, uma falácia não é necessariamente um ato de má fé. Se for cometida sem intenção, lembra Mance, trata-se de um paralogismo. Quando realizada de forma proposital, é um sofisma. "Os defensores do autor da sentença, possivelmente, verão nessas falácias apenas paralogismos oriundos da análise lógica de um problema bastante complexo. Seus críticos poderão entendê-las como sofismas politicamente motivados", escreve o filósofo.
Mance diz que, ao ler a sentença de Moro, começou a perceber algumas inconsistências. "Lecionei lógica e filosofia da linguagem por alguns anos e percebi essas particularidades". O filósofo elaborou uma versão preliminar do estudo e solicitou a contribuição de outros professores de filosofia. Ele diz não ter parâmetros para avaliar se a sentença de Moro tem mais erros lógicos que a média das peças jurídicas no País. "É a primeira vez que analiso uma sentença, mas fiquei estarrecido".
Muitas das falácias identificadas estão relacionadas a erros de inconsistência ou equivocação, quando há duas afirmações excludentes sobre um mesmo fato. Para reconhecê-las, o filósofo teve de confrontar passagens que estão a centenas de parágrafos de distância.
Em seu estudo, o pesquisador notou que Moro trata o apartamento no Guarujá em certa passagem como um duplex, e mais à frente como um tríplex. A ambiguidade é importante, pois Moro afirma que já havia anotações sobre o tríplex em documentos de aquisição de direitos subscritos pela ex-primeira dama Marisa Letícia, quando na verdade o apartamento ainda era um duplex, diz Mance.
O filósofo lembra ainda da afirmação de Léo Pinheiro de que não havia contado a ninguém no interior da OAS sobre as ilicitudes relacionadas ao tríplex. Em seu depoimento, Agenor Medeiros, diretor da empreiteira, contradiz Pinheiro ao afirmar ter ouvido dele numa viagem que os prejuízos com o tríplex seriam abatidos de uma conta de propinas. "Isso revela que um dos dois, ou talvez ambos, tenham faltado com a verdade em juízo."
Conheça outras falácias identificadas por Mance em seu livro.
"Já foi me dito que era do presidente”: Falácia do apelo à crença comum
O primeiro equívoco lógico apontado pelo filósofo está relacionado à afirmação de Léo Pinheiro de que o apartamento no Guarujá era de fato de Lula. No depoimento a Moro, Pinheiro afirma: "Desde o dia em que me passaram para estudar os empreendimentos da Bancoop, já foi me dito que era do presidente Lula e de sua família, que eu não comercializasse e tratasse aquilo como uma coisa de propriedade do presidente".
Segundo Mance, o fato de Moro utilizar essa afirmação como evidência de que Lula era o destinatário do imóvel é uma falácia do argumento ad populum,ou de apelo à crença comum. Pinheiro afirma que "já foi me dito que era do presidente Lula", mas a sentença não elucida quem na OAS teria informado Pinheiro do esquema.
Assim, a forma argumentativa de Pinheiro aceita por Moro seria:
Se já foi me dito que o triplex era do presidente, então, o triplex era do presidente.
A argumentação, diz o filósofo, é semelhante a afirmar que:
Se já foi me dito que um extraterrestre pousou em Varginha, então, um extraterrestre pousou em Varginha.
A Matéria de "O Globo": Falácia de circularidade
Na sentença, Moro cita como um elemento probatório de que o tríplex era de Lula uma matéria do jornal O Globo publicada em 2010. Na reportagem, intitulada "Caso Bancoop: triplex do casal Lula está atrasado", Lula e Marisa são apontados como donos de uma cobertura no Guarujá.
Mance lembra que Moro não questiona a veracidade da matéria jornalística publicada e a valoriza como elemento probatório. Segundo o filósofo, trata-se de uma falácia de circularidade, quando a premissa e a conclusão apresentam um círculo vicioso. A forma argumentativa de Moro, segundo o filósofo, é a seguinte:
A afirmação, publicada na matéria em 2010, de que o ex-presidente é proprietário do imóvel é elemento probatório de que o ex-presidente é proprietário do imóvel. Porque se ele não fosse proprietário do imóvel, não existiria essa afirmação na matéria em 2010
Mance argumenta que a falácia é semelhante à seguinte:
A afirmação, relatada na bíblia, de que Deus criou o mundo é elemento probatório de que Deus criou o mundo. Porque se Deus não tivesse criado o mundo não haveria essa afirmação relatada na bíblia.
“As reformas foram feitas por solicitação do ex-Presidente”: Falácia non sequitur
Uma das controvérsias do processo reside sobre Lula eMarisa terem solicitado reformas no imóvel. Segundo Mance, Moro considera que o fato de eles terem autorizado mudanças no apartamento constitui prova de sua propriedade sobre o imóvel. Mance considera esse argumento um falácia no sequitur, quando não há conexão entre as premissas e a conclusão.
A forma argumentativa de Moro, segundo o filósofo, é:
Se alguém é proprietário de um imóvel, então aprova as reformas.
Ora, o ex-presidente aprova as reformas
Então ele é proprietário do imóvel.
De acordo com Mance, o argumento é falacioso pois não há uma relação necessária e suficiente entre autorizar reformas e ser o proprietário de um imóvel. A forma argumentativa de Moro permitiria também dizer que:
Se alguém é proprietário de um imóvel, então aprova as reformas.
Ora, o arquiteto, o engenheiro e o corpo de bombeiros aprovaram as reformas do imóvel.
Então, o arquiteto, o engenheiro e o corpo de bombeiros são proprietários do imóvel.
“Reformas não seriam pagas”: Falácia de apelo à presciência
Na sentença, Moro argumenta que os gastos das reformas do apartamento "não seriam pagos pelo ex-presidente e por sua esposa", mas seriam consumidas como vantagem indevida em um acerto de corrupção. Mance considera a argumentação falaciosa por utilizar o futuro do pretérito como tempo verbal. Segundo o autor, a afirmação "toma por fato acontecido o que era mera suposição do que poderia ser dar no futuro".
Moro acaba por confiar que Lula "não pagaria" as reformas, mas não tem conhecimento do futuro para saber se os custos ficariam a cargo do ex-presidente ou da OAS. É um argumento que considera apenas um cenário em meio a outros tantos possíveis. Na lógica, esse tipo de presciência sobre o futuro, diz Mance, costuma ser reservado apenas a entidades divinas. No âmbito da teologia, Deus é o único capaz de prever o futuro.
“Foi abatido nesse encontro de contas”: Falácia do argumentum ad hominem
Um dos pontos centrais da argumentação de Moro para condenar Lula reside na declaração de Pinheiro de que a diferença entre o preço do imóvel comprado pelo ex-presidente e Marisa em 2005 e o valor do tríplex reservado ao casal posteriormente teria sido abatido de uma conta de propinas.
Segundo Mance, Moro não investigou o destino do valor supostamente abatido das contas de propina, cerca de 800 mil reais, embora a própria sentença afirme que ele não foi gasto com as reformas. Além disso, o magistrado não comprova, segundo o filósofo, "a real ocorrência daquilo que é afirmado".
Ao tomar como verdadeiro algo que Pinheiro diz sem verificar, Moro incorre, segundo Mance, em uma falácia do tipo argumentum ad hominem, quando reputa-se a condição da pessoa, as circunstâncias em que se encontra ou a sua atitude para confirmar a validade do que ela afirma.
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