Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
O filme Um lugar silencioso, que vem fazendo muito sucesso em todo mundo e está em cartaz no Brasil, diz muito do nosso tempo. Não por acaso, é um filme de terror. Dirigido pelo ator John Krasinski, que também escreveu o roteiro e atua no papel principal, a produção pode ser vista apenas como uma sucessão bem conduzida de situações que despertam nossos temores mais íntimos, com é próprio do gênero. No entanto, o maior horror nos espreita depois do filme, quando entendemos o sentido de tanta exasperação. Krasisnski filmou a metáfora política dos nossos dias.
A história é simples. Quando o filme começa as coisas já estão em andamento. Uma família vive o medo de ser dizimada por monstros que, logo sabemos, foram responsáveis por exterminar grande parte da população do planeta. Para livrar-se do perigo, eles precisam ficar em silêncio. É o barulho que atrai os predadores. Tudo precisa ser protegido da mínima possibilidade de gerar ruído: os caminhos são traçados por uma trilha de areia que amortece o barulho dos passos, as tábuas que podem ranger são marcadas com sinais, e em lugar das palavras as pessoas se comunicam por sinais.
Quanto maior é a aparente paz, mais o perigo se insinua nas sombras. É o silêncio que dá dimensão ao ruído. Não há preocupação sobre a gênese do apocalipse que cai sobre a cabeça dos sobreviventes. Menos ainda sobre as possíveis estratégias para combater um mal que parece invencível. A naturalização da morte como presença que ronda todos os momentos deixa como única saída a obediência ao código do silenciamento compulsório. Um lugar silencioso é um filme de terror americano com tudo que essa definição aponta: foi feito para dar sustos. E vale o ingresso para quem procura esse tipo de sensação. Mas o motivo que faz com que o medo pareça maior que o revelado na tela pode ter outra explicação.
Há uma inflação de medo no mundo. Do desemprego, do desamparo, da desesperança. O monstro que nos vigia cobra silêncio e obediência. Naturaliza a opressão. Faz parecer que a melhor saída é seguir a violência de seus mandamentos. Ficar calado. Não buscar a raiz das coisas. Aceitar a inferioridade. Não reagir. No território inquestionável da injustiça, a vítima é sempre culpada de seu destino infeliz. Precisa espalhar areia no chão de seus dias. Pisar leve para continuar andando para lugar nenhum. O mundo se tornou um lugar silencioso habitado por monstros. Silêncio ou morte.
O terror está entre nós. Entre as mais recentes regressões que nos afrontam está a retomada do projeto de destruição do Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo comido pelas beiradas nos últimos tempos: criação de planos de saúde para pobres com baixíssima cobertura, questionamento da luta antimanicomial e fim das farmácias populares. E ainda: proibição de novos cursos de medicina, limitação constitucional de recursos para o setor independentemente do aumento da demanda, ataque ao programa Mais Médicos, entre outros crimes de lesa-direitos. O propósito mais que evidente é o de inviabilizar o direito universal à saúde para beneficiar a atenção como um bem de mercado. A saúde pública ficaria com a parte menos lucrativa, liberando a vertente liberal para recrutar novos clientes. Mas nem todos.
A investida que acaba de ser deflagrada vem exatamente do setor da medicina privada, por meio das administradoras dos planos de saúde. Seguras do projeto determinado de inviabilizar o SUS, já colocam as manguinhas de fora e anunciam novos contratos com uso de franquias, ou seja bandeiradas para poder começar a usar o plano pelo qual pagam todos os meses, mesmo que não adoeçam. Sem o menor pudor, comparam saúde com carro amassado. Quem migrou para os planos na ilusão de melhor assistência, não terá condições de manter os pagamentos, já que terá que pagar duas vezes. A franquia, somada à coparticipação, se torna uma sobretaxa que dobra o custo do plano. Derrotado, ao retornar para o SUS, verá que SUS já não há mais. O país fica dividido entre os que podem pagar pela saúde e os pobres, que passarão a receber uma saúde pobre.
É a vitória da estratégia do silêncio. Quanto mais se ameaçou o direito, menos se lutou para mantê-lo e ampliá-lo. Quem nunca atirou uma pedra ao SUS? Agora, para sobreviver, o melhor é aceitar passivamente. Quem sabe torcer para o retorno da benemerência que acolhia indigentes? Quem escarnece dos direitos herda a indignidade.
Na educação a situação segue o mesmo roteiro de filme de terror. Depois do extermínio dos programas como Ciência sem Fronteiras, das politicas de inclusão e cotas, e do Fies, entre outros, o saber foi expulso para o fim da fila em nome dos interesses do lucrativo mercado educacional. O curioso é que o discurso da prioridade em educação, que sempre aparece como justificativa ideológica da igualdade de oportunidades e argumento financeiro das políticas de corte em investimentos sociais, mantém-se de forma cínica.
São vários os ataques. Aumentaram a carga de ensino à distância sem controle de qualidade, afrontando a relação pedagógica e desvalorizando o professor. Foram abertas brechas para as propostas conservadoras e mesmo reacionárias, num incentivo indisfarçável ao fundamentalismo. A formação dos jovens está sendo entregue aos interesses do mercado. Recentemente, uma pesquisa publicada com estardalhaço na imprensa, apontava que os maus resultados em matemática no Brasil se devem ao ensino de sociologia e filosofia. Enquanto isso, uma das escolas mais caras do mundo chega ao Brasil com seu projeto de formar líderes mundiais. A meritocracia brasileira é tinhosa, precisa tirar a competição de campo para deixar jogar apenas os donos da bola. Destruir a educação pública é forma mais covarde de assumir sua hipocrisia.
Mais uma vez a paz dos cemitérios, o silêncio constrangido. Como na saúde, há a instauração de dois mundos: uma educação de qualidade para a elite, um arremedo de treinamento para os demais. O moralismo preconceituoso para todos.
O mesmo raciocínio pode ser feito para todas as áreas, da segurança à habitação, da mobilidade à agricultura. Na segurança, as políticas públicas consequentes e a defesa dos direitos humanos foram trocadas pela intervenção militar. Que já mostrou seu viés corporativo e incompetência no aumento da criminalidade do Rio de Janeiro pós-ocupação e na incapacidade de identificar os responsáveis pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Na habitação, os programas populares foram praticamente extintos e criminalizadas as ações populares de protesto. Na mobilidade urbana, o reforço da lógica centrada em grandes obras e estímulo ao transporte individual alimenta a corrupção, entope e polui as cidades. Na agricultura, cada vez mais pop, a produção familiar de alimentos é desestimulada em favor da monocultura para exportação e do uso intensivo de venenos.
Em cada uma dessas atitudes, silêncio. Fingir de morto para continuar vivo.
A destruição continuada e paulatina das conquistas sociais vem sendo operada com constância e determinação. O Brasil vive a atmosfera de filme de terror. A cada dia uma notícia joga sobre a sociedade o diagnóstico de suas perdas. A tudo se aceita, com um grito parado na garganta, como se as derrotas do momento fossem a senha para garantir a sobrevivência, ainda que constrangida de descarnada de força. O comportamento amedrontado é estimulado como índice de civilidade. Aos opressores, os ganhos; aos oprimidos, a resignação.
Pequenas derrotas deixam a falsa sensação de que no instante seguinte a trilha habitual será retomada. Mesmo que a cada momento fique mais claro que o desmanche que vem sendo operado não deixará pedra sobre pedra. Enquanto se sonha com a vitória nas eleições, que nem se sabe se ocorrerão, as condições de possibilidade da democracia vão sendo destruídas uma a uma. Com apoio da imprensa, com a retaguarda da violência.
Quem chegou até aqui não vai parar. Destituir uma presidenta eleita, prender em processo politizado a maior liderança popular do país, entregar as riquezas nacionais ao capital, lançar mão do terrorismo judicial e policial são etapas de um projeto sem hora para acabar. As eleições estão longe e incertas demais. Não é hora de especular sobre candidaturas e com isso achar que está se fazendo política. A única ação responsável é barrar o avanço do fascismo e impedir a naturalização do Estado de exceção. Contra o silêncio, só o grito.
O filme Um lugar silencioso, que vem fazendo muito sucesso em todo mundo e está em cartaz no Brasil, diz muito do nosso tempo. Não por acaso, é um filme de terror. Dirigido pelo ator John Krasinski, que também escreveu o roteiro e atua no papel principal, a produção pode ser vista apenas como uma sucessão bem conduzida de situações que despertam nossos temores mais íntimos, com é próprio do gênero. No entanto, o maior horror nos espreita depois do filme, quando entendemos o sentido de tanta exasperação. Krasisnski filmou a metáfora política dos nossos dias.
A história é simples. Quando o filme começa as coisas já estão em andamento. Uma família vive o medo de ser dizimada por monstros que, logo sabemos, foram responsáveis por exterminar grande parte da população do planeta. Para livrar-se do perigo, eles precisam ficar em silêncio. É o barulho que atrai os predadores. Tudo precisa ser protegido da mínima possibilidade de gerar ruído: os caminhos são traçados por uma trilha de areia que amortece o barulho dos passos, as tábuas que podem ranger são marcadas com sinais, e em lugar das palavras as pessoas se comunicam por sinais.
Quanto maior é a aparente paz, mais o perigo se insinua nas sombras. É o silêncio que dá dimensão ao ruído. Não há preocupação sobre a gênese do apocalipse que cai sobre a cabeça dos sobreviventes. Menos ainda sobre as possíveis estratégias para combater um mal que parece invencível. A naturalização da morte como presença que ronda todos os momentos deixa como única saída a obediência ao código do silenciamento compulsório. Um lugar silencioso é um filme de terror americano com tudo que essa definição aponta: foi feito para dar sustos. E vale o ingresso para quem procura esse tipo de sensação. Mas o motivo que faz com que o medo pareça maior que o revelado na tela pode ter outra explicação.
Há uma inflação de medo no mundo. Do desemprego, do desamparo, da desesperança. O monstro que nos vigia cobra silêncio e obediência. Naturaliza a opressão. Faz parecer que a melhor saída é seguir a violência de seus mandamentos. Ficar calado. Não buscar a raiz das coisas. Aceitar a inferioridade. Não reagir. No território inquestionável da injustiça, a vítima é sempre culpada de seu destino infeliz. Precisa espalhar areia no chão de seus dias. Pisar leve para continuar andando para lugar nenhum. O mundo se tornou um lugar silencioso habitado por monstros. Silêncio ou morte.
O terror está entre nós. Entre as mais recentes regressões que nos afrontam está a retomada do projeto de destruição do Sistema Único de Saúde (SUS), que vem sendo comido pelas beiradas nos últimos tempos: criação de planos de saúde para pobres com baixíssima cobertura, questionamento da luta antimanicomial e fim das farmácias populares. E ainda: proibição de novos cursos de medicina, limitação constitucional de recursos para o setor independentemente do aumento da demanda, ataque ao programa Mais Médicos, entre outros crimes de lesa-direitos. O propósito mais que evidente é o de inviabilizar o direito universal à saúde para beneficiar a atenção como um bem de mercado. A saúde pública ficaria com a parte menos lucrativa, liberando a vertente liberal para recrutar novos clientes. Mas nem todos.
A investida que acaba de ser deflagrada vem exatamente do setor da medicina privada, por meio das administradoras dos planos de saúde. Seguras do projeto determinado de inviabilizar o SUS, já colocam as manguinhas de fora e anunciam novos contratos com uso de franquias, ou seja bandeiradas para poder começar a usar o plano pelo qual pagam todos os meses, mesmo que não adoeçam. Sem o menor pudor, comparam saúde com carro amassado. Quem migrou para os planos na ilusão de melhor assistência, não terá condições de manter os pagamentos, já que terá que pagar duas vezes. A franquia, somada à coparticipação, se torna uma sobretaxa que dobra o custo do plano. Derrotado, ao retornar para o SUS, verá que SUS já não há mais. O país fica dividido entre os que podem pagar pela saúde e os pobres, que passarão a receber uma saúde pobre.
É a vitória da estratégia do silêncio. Quanto mais se ameaçou o direito, menos se lutou para mantê-lo e ampliá-lo. Quem nunca atirou uma pedra ao SUS? Agora, para sobreviver, o melhor é aceitar passivamente. Quem sabe torcer para o retorno da benemerência que acolhia indigentes? Quem escarnece dos direitos herda a indignidade.
Na educação a situação segue o mesmo roteiro de filme de terror. Depois do extermínio dos programas como Ciência sem Fronteiras, das politicas de inclusão e cotas, e do Fies, entre outros, o saber foi expulso para o fim da fila em nome dos interesses do lucrativo mercado educacional. O curioso é que o discurso da prioridade em educação, que sempre aparece como justificativa ideológica da igualdade de oportunidades e argumento financeiro das políticas de corte em investimentos sociais, mantém-se de forma cínica.
São vários os ataques. Aumentaram a carga de ensino à distância sem controle de qualidade, afrontando a relação pedagógica e desvalorizando o professor. Foram abertas brechas para as propostas conservadoras e mesmo reacionárias, num incentivo indisfarçável ao fundamentalismo. A formação dos jovens está sendo entregue aos interesses do mercado. Recentemente, uma pesquisa publicada com estardalhaço na imprensa, apontava que os maus resultados em matemática no Brasil se devem ao ensino de sociologia e filosofia. Enquanto isso, uma das escolas mais caras do mundo chega ao Brasil com seu projeto de formar líderes mundiais. A meritocracia brasileira é tinhosa, precisa tirar a competição de campo para deixar jogar apenas os donos da bola. Destruir a educação pública é forma mais covarde de assumir sua hipocrisia.
Mais uma vez a paz dos cemitérios, o silêncio constrangido. Como na saúde, há a instauração de dois mundos: uma educação de qualidade para a elite, um arremedo de treinamento para os demais. O moralismo preconceituoso para todos.
O mesmo raciocínio pode ser feito para todas as áreas, da segurança à habitação, da mobilidade à agricultura. Na segurança, as políticas públicas consequentes e a defesa dos direitos humanos foram trocadas pela intervenção militar. Que já mostrou seu viés corporativo e incompetência no aumento da criminalidade do Rio de Janeiro pós-ocupação e na incapacidade de identificar os responsáveis pelas mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Na habitação, os programas populares foram praticamente extintos e criminalizadas as ações populares de protesto. Na mobilidade urbana, o reforço da lógica centrada em grandes obras e estímulo ao transporte individual alimenta a corrupção, entope e polui as cidades. Na agricultura, cada vez mais pop, a produção familiar de alimentos é desestimulada em favor da monocultura para exportação e do uso intensivo de venenos.
Em cada uma dessas atitudes, silêncio. Fingir de morto para continuar vivo.
A destruição continuada e paulatina das conquistas sociais vem sendo operada com constância e determinação. O Brasil vive a atmosfera de filme de terror. A cada dia uma notícia joga sobre a sociedade o diagnóstico de suas perdas. A tudo se aceita, com um grito parado na garganta, como se as derrotas do momento fossem a senha para garantir a sobrevivência, ainda que constrangida de descarnada de força. O comportamento amedrontado é estimulado como índice de civilidade. Aos opressores, os ganhos; aos oprimidos, a resignação.
Pequenas derrotas deixam a falsa sensação de que no instante seguinte a trilha habitual será retomada. Mesmo que a cada momento fique mais claro que o desmanche que vem sendo operado não deixará pedra sobre pedra. Enquanto se sonha com a vitória nas eleições, que nem se sabe se ocorrerão, as condições de possibilidade da democracia vão sendo destruídas uma a uma. Com apoio da imprensa, com a retaguarda da violência.
Quem chegou até aqui não vai parar. Destituir uma presidenta eleita, prender em processo politizado a maior liderança popular do país, entregar as riquezas nacionais ao capital, lançar mão do terrorismo judicial e policial são etapas de um projeto sem hora para acabar. As eleições estão longe e incertas demais. Não é hora de especular sobre candidaturas e com isso achar que está se fazendo política. A única ação responsável é barrar o avanço do fascismo e impedir a naturalização do Estado de exceção. Contra o silêncio, só o grito.
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