Por Eduardo Amorim, na revista Carta Capital:
Na sexta-feira, 20, o presidente Michel Temer utilizou de sua prerrogativa enquanto Presidente da República para realizar um pronunciamento em cadeia nacional e defender sua gestão. Sem nenhuma relação com os preceitos constitucionais previstos para a publicidade dos atos e programas dos órgãos públicos, Temer foi à televisão, utilizando-se das datas nacionais que celebram o Dia de Tiradentes e o Descobrimento do Brasil, para defender a sua gestão.
“É fácil bater no Michel Temer, é fácil bater no governo, é fácil só criticar. Quero ver fazer, quero ver conquistar, quero ver construir e realizar o que nós conseguimos avançar em tão pouco tempo. A torcida organizada pelo fracasso tenta bater bumbo, tenta perder o jogo todos os dias, a verdade é que o Brasil virou esse jogo. Alcançamos nesses dois anos vitórias expressivas, recordes após recordes, mas muitos teimam em não admitir o nosso sucesso e o sucesso do Brasil”, declarou.
Mais uma vez, nossa Constituição Federal, tão citada pelo Presidente em sua fala, foi solenemente ignorada. Diz o artigo 37 da nossa carta magna:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
(...)
§1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.”
O que vimos em cadeia nacional, entretanto, foi o oposto disso.
No mesmo dia, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) entrava com uma Ação Popular na Justiça pedindo a anulação da Portaria do Ministério do Planejamento que, na semana anterior, havia remanejado 260 milhões de reais de recursos públicos para destinar 203 milhões para a rubrica “Comunicação Institucional” da Presidência da República. A conta “fechou” com a retirada de R$ 30 milhões do Sistema Único de Saúde, 25 milhões de reais da política de combate à violência contra as mulheres e R$ 50 milhões do programa de reforma agrária (do Incra), entre outras rubricas que sofreram cortes.
A gestão Temer alegou estar apenas restituindo os 287 milhões de reais previstos inicialmente no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para a comunicação do governo. Destes, entretanto, somente 84 milhões de reais haviam sido aprovados pelo Congresso – sendo que apenas 48 milhões de reais foram empenhados (compromisso de gasto) e 2,3 milhões de reais efetivamente pagos, segundo os dados do PSOL. A destinação de 203 milhões de reais representará, assim, um incremento de 88 vezes do valor gasto até o momento com publicidade.
O deputado federal Ivan Valente classificou a medida de ilegal, sobretudo em função da destinação dada aos recursos. De fato, o argumento de que as verbas para a Secretaria da Presidência da República estavam previstas no projeto original da lei orçamentária não para de pé.
Se, no momento de aprovação da lei, o excesso de gastos nesta área foi reconhecido pelo Parlamento como um desserviço à sociedade, alterar esses gastos aos desejos do gestor é sinal de que o processo democrático, previsto constitucionalmente, também foi atropelado. Afinal, a peça aprovada pelo Congresso representa um esforço colegiado dos poderes para decidir as áreas prioritárias para a alocação de recursos.
Agora, pastas que já vem sofrendo significativamente com o corte de recursos, foram novamente atingidas. Em nota, a diretoria da União Brasileira de Mulheres criticou fortemente a medida, lembrando os índices de violência contra a mulher no país, cuja política de combate perdeu 25 milhões de reais para Temer anunciar seus feitos na mídia.
“Os números são assustadores. Em relação à violência sexual, o Brasil registrou 1 estupro a cada 11 minutos em 2015. São os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. As estimativas variam, mas em geral calcula-se que estes sejam apenas 10% do total dos casos que realmente acontecem. Ou seja, o Brasil pode ter a taxa de quase meio milhão de estupros a cada ano. E cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes”, destaca o documento, que pede unidade e resistência para enfrentar este tipo de ataque aos direitos das mulheres.
Publicidade governamental e eleições
Em ano eleitoral, os limites a serem respeitados pela chamada propaganda governamental se tornam tema ainda mais sensível. Historicamente, gestões municipais, estaduais e os ocupantes do governo federal utilizam erroneamente as verbas de publicidade do poder público. Mas a prática não pode ser naturalizada, sobretudo num contexto de crise econômica, em que atividades fins tem tido seus orçamentos contingenciados, e em que o uso da publicidade governamental vem sendo cada vez mais abusivo.
Às vésperas do prazo para desincompatibilização de alguns ministros, por exemplo, foi comum ver “publicidade pública” nos estados onde serão candidatos. No Recife, um outdoor do Ministério da Educação em frente à UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) chegou a ser queimado num protesto. Enquanto universidades federais correm o risco de fecharem as portas por falta de verbas, a UFPE recebeu um importante aporte do Ministério comandado até recentemente por um pernambucano, Mendonça Filho.
O anúncio, por sinal, ficou marcado por acontecer em um dia em que seis integrantes da equipe do Museu do Homem do Nordeste foram demitidos por terem realizado um “protesto” silencioso contra o governo Temer: circularam no local portando um copo do bloco de Carnaval “Eu acho é Pouco”, ligado à esquerda pernambucana, que teria a inscrição #ForaTemer.
A tentativa de fortalecer, com dinheiro e cargos públicos, políticos que serão candidatos é ilegal. Apesar disso, a mídia tradicional muitas vezes se cala por ser beneficiada. No meio digital, ainda há muito o que se debater sobre os limites da chamada publicidade governamental.
Mas, novamente, não podemos considerar normal grandes atos de entrega de obras, anunciados às vésperas da eleição, e altíssimos investimentos públicos em material de propaganda, vindos do governo que vier. Esse tipo de publicidade é vedado, e precisa ser denunciado à Justiça.
Quando a comunicação pública também vira propaganda
Durante seu pronunciamento oficial, Michel Temer citou os versos de Cecília Meireles, do Romanceiro da Inconfidência, para falar de liberdade. Celebrou o que ele acredita estarmos vivenciando hoje no Brasil: “a liberdade da democracia, o direito de ir e vir, de pensar e expressar-se. Celebramos a liberdade da imprensa brasileira”.
Mas que liberdade seria essa quando nem mesmo o jornalismo dos veículos públicos de comunicação passa ileso à intervenção de Temer?
Na EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a mais recente ação do governo federal foi nomear o porta-voz da Presidência da República, Alexandre Parola, para presidir os veículos que, constitucionalmente, deveriam se diferenciar da comunicação governamental. Na avaliação dos trabalhadores da EBC, “a nomeação é mais uma forma de cassar a autonomia da empresa pública”, afirmaram em nota.
“A perseguição a jornalistas e radialistas é cada vez maior, com aberturas indiscriminadas de sindicâncias e sanções administrativas. A censura está instalada dentro dos veículos públicos, com temas que desagradam ao Planalto cortados da cobertura da EBC”, diz o posicionamento, assinados pelos Sindicatos dos Radialistas e dos Jornalistas do DF, RJ e SP.
Em março, os profissionais da EBC já haviam denunciado o contrato da empresa pública com a Agência Nacional das Águas (ANA) para divulgação e cobertura do Fórum Nacional da Água. Da ordem de 1,8 milhão de reais, ele previa que o trabalho das equipes teria de passar pelo controle da ANA, autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.
No período do contrato, foram realizadas cerca de 10 reportagens por dia para mostrar um lado que interessava ao governo federal sobre o tema. O pronunciamento de Michel Temer na abertura do Fórum chegou a ser transmitido pela Rádio Nacional, emissora pública vinculada à EBC.
Os trabalhadores da empresa também denunciaram, no mesmo período, restrições à cobertura do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Chefias da Agência Brasil orientaram os repórteres a não cobrir mais atos em protesto às mortes, que se multiplicavam pelo país, alegando que eles seriam "exploração política".
Censuraram, assim, manifestações legítimas e importantes, e colaboraram com a imprensa privada para apagar do noticiário o fato de que Marielle foi uma das maiores lideranças da oposição à intervenção militar de Temer no Rio de Janeiro.
Como visto, a liberdade que o Presidente pareceu tanto defender na última sexta-feira é daquelas que só vale se for para dizer o que o governo quer, seja via propaganda governamental seja via intervenção na comunicação pública. Alguém ainda acredita nesse discurso em cadeia nacional?
* Eduardo Amorim é integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando no programa de pós-graduação em Comunicação da UFPE. Colaborou Bia Barbosa, jornalista e integrante da coordenação do Intervozes.
Na sexta-feira, 20, o presidente Michel Temer utilizou de sua prerrogativa enquanto Presidente da República para realizar um pronunciamento em cadeia nacional e defender sua gestão. Sem nenhuma relação com os preceitos constitucionais previstos para a publicidade dos atos e programas dos órgãos públicos, Temer foi à televisão, utilizando-se das datas nacionais que celebram o Dia de Tiradentes e o Descobrimento do Brasil, para defender a sua gestão.
“É fácil bater no Michel Temer, é fácil bater no governo, é fácil só criticar. Quero ver fazer, quero ver conquistar, quero ver construir e realizar o que nós conseguimos avançar em tão pouco tempo. A torcida organizada pelo fracasso tenta bater bumbo, tenta perder o jogo todos os dias, a verdade é que o Brasil virou esse jogo. Alcançamos nesses dois anos vitórias expressivas, recordes após recordes, mas muitos teimam em não admitir o nosso sucesso e o sucesso do Brasil”, declarou.
Mais uma vez, nossa Constituição Federal, tão citada pelo Presidente em sua fala, foi solenemente ignorada. Diz o artigo 37 da nossa carta magna:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
(...)
§1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.”
O que vimos em cadeia nacional, entretanto, foi o oposto disso.
No mesmo dia, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) entrava com uma Ação Popular na Justiça pedindo a anulação da Portaria do Ministério do Planejamento que, na semana anterior, havia remanejado 260 milhões de reais de recursos públicos para destinar 203 milhões para a rubrica “Comunicação Institucional” da Presidência da República. A conta “fechou” com a retirada de R$ 30 milhões do Sistema Único de Saúde, 25 milhões de reais da política de combate à violência contra as mulheres e R$ 50 milhões do programa de reforma agrária (do Incra), entre outras rubricas que sofreram cortes.
A gestão Temer alegou estar apenas restituindo os 287 milhões de reais previstos inicialmente no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para a comunicação do governo. Destes, entretanto, somente 84 milhões de reais haviam sido aprovados pelo Congresso – sendo que apenas 48 milhões de reais foram empenhados (compromisso de gasto) e 2,3 milhões de reais efetivamente pagos, segundo os dados do PSOL. A destinação de 203 milhões de reais representará, assim, um incremento de 88 vezes do valor gasto até o momento com publicidade.
O deputado federal Ivan Valente classificou a medida de ilegal, sobretudo em função da destinação dada aos recursos. De fato, o argumento de que as verbas para a Secretaria da Presidência da República estavam previstas no projeto original da lei orçamentária não para de pé.
Se, no momento de aprovação da lei, o excesso de gastos nesta área foi reconhecido pelo Parlamento como um desserviço à sociedade, alterar esses gastos aos desejos do gestor é sinal de que o processo democrático, previsto constitucionalmente, também foi atropelado. Afinal, a peça aprovada pelo Congresso representa um esforço colegiado dos poderes para decidir as áreas prioritárias para a alocação de recursos.
Agora, pastas que já vem sofrendo significativamente com o corte de recursos, foram novamente atingidas. Em nota, a diretoria da União Brasileira de Mulheres criticou fortemente a medida, lembrando os índices de violência contra a mulher no país, cuja política de combate perdeu 25 milhões de reais para Temer anunciar seus feitos na mídia.
“Os números são assustadores. Em relação à violência sexual, o Brasil registrou 1 estupro a cada 11 minutos em 2015. São os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. As estimativas variam, mas em geral calcula-se que estes sejam apenas 10% do total dos casos que realmente acontecem. Ou seja, o Brasil pode ter a taxa de quase meio milhão de estupros a cada ano. E cerca de 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes”, destaca o documento, que pede unidade e resistência para enfrentar este tipo de ataque aos direitos das mulheres.
Publicidade governamental e eleições
Em ano eleitoral, os limites a serem respeitados pela chamada propaganda governamental se tornam tema ainda mais sensível. Historicamente, gestões municipais, estaduais e os ocupantes do governo federal utilizam erroneamente as verbas de publicidade do poder público. Mas a prática não pode ser naturalizada, sobretudo num contexto de crise econômica, em que atividades fins tem tido seus orçamentos contingenciados, e em que o uso da publicidade governamental vem sendo cada vez mais abusivo.
Às vésperas do prazo para desincompatibilização de alguns ministros, por exemplo, foi comum ver “publicidade pública” nos estados onde serão candidatos. No Recife, um outdoor do Ministério da Educação em frente à UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) chegou a ser queimado num protesto. Enquanto universidades federais correm o risco de fecharem as portas por falta de verbas, a UFPE recebeu um importante aporte do Ministério comandado até recentemente por um pernambucano, Mendonça Filho.
O anúncio, por sinal, ficou marcado por acontecer em um dia em que seis integrantes da equipe do Museu do Homem do Nordeste foram demitidos por terem realizado um “protesto” silencioso contra o governo Temer: circularam no local portando um copo do bloco de Carnaval “Eu acho é Pouco”, ligado à esquerda pernambucana, que teria a inscrição #ForaTemer.
A tentativa de fortalecer, com dinheiro e cargos públicos, políticos que serão candidatos é ilegal. Apesar disso, a mídia tradicional muitas vezes se cala por ser beneficiada. No meio digital, ainda há muito o que se debater sobre os limites da chamada publicidade governamental.
Mas, novamente, não podemos considerar normal grandes atos de entrega de obras, anunciados às vésperas da eleição, e altíssimos investimentos públicos em material de propaganda, vindos do governo que vier. Esse tipo de publicidade é vedado, e precisa ser denunciado à Justiça.
Quando a comunicação pública também vira propaganda
Durante seu pronunciamento oficial, Michel Temer citou os versos de Cecília Meireles, do Romanceiro da Inconfidência, para falar de liberdade. Celebrou o que ele acredita estarmos vivenciando hoje no Brasil: “a liberdade da democracia, o direito de ir e vir, de pensar e expressar-se. Celebramos a liberdade da imprensa brasileira”.
Mas que liberdade seria essa quando nem mesmo o jornalismo dos veículos públicos de comunicação passa ileso à intervenção de Temer?
Na EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a mais recente ação do governo federal foi nomear o porta-voz da Presidência da República, Alexandre Parola, para presidir os veículos que, constitucionalmente, deveriam se diferenciar da comunicação governamental. Na avaliação dos trabalhadores da EBC, “a nomeação é mais uma forma de cassar a autonomia da empresa pública”, afirmaram em nota.
“A perseguição a jornalistas e radialistas é cada vez maior, com aberturas indiscriminadas de sindicâncias e sanções administrativas. A censura está instalada dentro dos veículos públicos, com temas que desagradam ao Planalto cortados da cobertura da EBC”, diz o posicionamento, assinados pelos Sindicatos dos Radialistas e dos Jornalistas do DF, RJ e SP.
Em março, os profissionais da EBC já haviam denunciado o contrato da empresa pública com a Agência Nacional das Águas (ANA) para divulgação e cobertura do Fórum Nacional da Água. Da ordem de 1,8 milhão de reais, ele previa que o trabalho das equipes teria de passar pelo controle da ANA, autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.
No período do contrato, foram realizadas cerca de 10 reportagens por dia para mostrar um lado que interessava ao governo federal sobre o tema. O pronunciamento de Michel Temer na abertura do Fórum chegou a ser transmitido pela Rádio Nacional, emissora pública vinculada à EBC.
Os trabalhadores da empresa também denunciaram, no mesmo período, restrições à cobertura do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Chefias da Agência Brasil orientaram os repórteres a não cobrir mais atos em protesto às mortes, que se multiplicavam pelo país, alegando que eles seriam "exploração política".
Censuraram, assim, manifestações legítimas e importantes, e colaboraram com a imprensa privada para apagar do noticiário o fato de que Marielle foi uma das maiores lideranças da oposição à intervenção militar de Temer no Rio de Janeiro.
Como visto, a liberdade que o Presidente pareceu tanto defender na última sexta-feira é daquelas que só vale se for para dizer o que o governo quer, seja via propaganda governamental seja via intervenção na comunicação pública. Alguém ainda acredita nesse discurso em cadeia nacional?
* Eduardo Amorim é integrante do Conselho Diretor do Intervozes e doutorando no programa de pós-graduação em Comunicação da UFPE. Colaborou Bia Barbosa, jornalista e integrante da coordenação do Intervozes.
0 comentários:
Postar um comentário