Por Aldo Fornazieri, no Jornal GGN:
Deverá ser lançado nesta segunda-feira (05/06), em Brasília, o manifesto "Por um Polo de Democrático e Reformista" que tem como signatários Cristovam Buarque, Fernando Henrique Cardoso, Marcus Pestana e Aloysio Nunes Ferreira. Com boa vontade, é possível adjudicar dois aspectos positivos ao manifesto: procura colocar o debate num terreno programático e, faz uma compilação de teses genéricas, alinhadas em 17 pontos, que muitos partidos vêm defendendo. Muitas dessas teses não suscitam grandes divergências e fazem parte de um certo senso comum. Para além dessa boa vontade, o manifesto merece muitos reparos quanto às suas linhas e entrelinhas e quanto às suas intenções.
Comece-se pelo fim: os signatários se auto-anunciam portadores de um alto propósito, sugerindo que o objeto do manifesto são eles mesmos e o êxito futuro que eles podem alcançar, e não a construção de algo coletivo que haviam anunciado antes. Eis o desfecho: "É com este espírito, com o coração carregado de patriotismo, a noção clara da urgência e o sentimento que o Brasil é muito maior que a presente crise, que os signatários deste manifesto têm a ousadia de propor a união política de todos os segmentos democráticos e reformistas. Se tivermos êxito estaremos dando uma inestimável contribuição para afastarmos do palco alternativas de poder que premiam um horizonte sombrio, e reafirmamos nosso compromisso com a liberdade, a justiça e um Brasil melhor".
Ao se proclamarem com o coração cheio de patriotismo, os signatários se apresentam como se isto fosse um signo que os distinguissem e não algo comum a muitos brasileiros e a outros políticos. Bolsonaro, Ciro Gomes, Alckmin, Boulos e brasileiros comuns podem anunciar a mesma coisa: têm os corações carregados de patriotismo. Como os signatários serão os sujeitos da missão que eles propõem, o manifesto resvala para o auto-elogio e, assim, a sua peroração é pouco convincente e pouco comovente, não suscitando aquele estado emocional capaz de galvanizar o engajamento do auditório ou da platéia.
Em algumas partes, o manifesto faz apelo à necessidade de "construção de um novo ambiente político que privilegie o diálogo, a serenidade, a experiência, a competência, o respeito à diversidade e o compromisso com o país". Mas o próprio manifesto mostra que esta intenção é falsa, quando proclama que pretende agregar as forças "democráticas e reformistas" para afastar um "horizonte nebuloso de confrontação entre populismos radicais, autoritários e anacrônicos". Quem representa os populismos radicais? Lula? Bolsonaro? Ciro Gomes? Boulos? Então, com estes, aparentemente, não haverá o proclamado diálogo. E quem são os competentes e experientes? O PSDB, o MDB, PPS, o centrão, partidos que instituíram um governo formado por uma quadrilha que mergulhou o país no caos, no desgoverno, no desemprego e no desabastecimento? Para que o manifesto fosse minimamente crível, seria necessário que ele expressasse uma humildade radical e uma autocrítica profunda.
Diz o manifesto: "Tudo o que o Brasil não precisa, para a construção de seu futuro, é de mais intolerância, radicalismo e instabilidade". Mas não foram os signatários e seus partidos que empunharam os estandartes da discórdia? Não foram eles que abrigaram o MBL, o Vem Pra Rua e a turma do Bolsonaro nas manifestações para derrubar a presidente Dilma, dando-lhes espaço e voz? É como se tivessem derramado o leite sobre um chão lamacento e, agora, quisessem recolhê-lo de volta às xícaras para dá-lo aos incautos para beber.
Recorrentemente, o manifesto conclama as "forças democráticas e reformistas" para se unirem em torno de um projeto nacional capaz de unir o país. Mas nunca nomeia essas forças e nem qualifica o que se entende por democracia e por reformismo. Não se pode entender por democracia isto que existe no Brasil. Não é democracia quando mais da metade da população não tem os direitos individuais e de liberdade garantidos; não é democracia quando a maioria esmagadora do povo não tem direitos sociais básicos garantidos; e não é democracia quando se tem uma desigualdade brutal, com mais de 100 milhões de pessoas vivendo com até um salário mínimo, com cerca de 50 milhões pobres e com cerca de 15 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Pode existir uma democracia para a elite e para as classes médias altas, mas não para a maioria do povo.
Qual reformismo? O de Michel Temer e de seu governo, apoiado pelos signatários, que destruiu direitos, que mutilou os programas sociais, que agravou o desemprego, que precarizou o trabalho, que surrupiou verbas da saúde, da educação, da habitação e que degradou a sociedade? No ponto 6, por exemplo, ao se referir à reforma tributária o manifesto faz uma breve referência ao caráter regressivo do sistema, mas não diz que é preciso desonerar os pobres e onerar os ricos, pois o sistema tributário brasileiro é um dos maiores instrumentos de concentração de renda e de perpetuação das desigualdades. Sem propor a remoção e a mudança radical desse sistema iníquo ninguém pode se proclamar verdadeiramente reformista. O Brasil não será nem justo, nem livre, nem igualitário, nem desenvolvido e nem democrático enquanto esses mecanismos promotores da desigualdade persistirem.
O documento não faz nenhuma referência ao valor da igualdade ou a exigência da igualdade material dos cidadãos - valor maior da democracia, como todos os clássicos da Filosofia Política nos ensinaram. Fala apenas uma vez das desigualdades sociais. Este é o maior problema do Brasil e símbolo da falta de democracia. Desta forma, o uso da palavra democracia, no documento, soa como uma camuflagem para manter o atual estado de coisas sob um novo verniz, sob uma falsa ideia de unidade nacional, sob uma falsa vontade de tolerância.
Se este momento de crise tem um mérito, este mérito consiste em que as teses hipócritas acerca da democracia e a tolerância brasileiras desmoronaram. Os ricos e os seus representantes políticos nunca foram tolerantes e nunca dialogaram com o povo, pois um povo que vive nos graus de pobreza e desigualdade em que o povo brasileiro vive, um povo que não tem direitos, nunca foi alvo da consideração, da humanidade, da piedade e da tolerância das elites e de seus representantes políticos. Seria uma atitude de incautos ser tolerante com esses intolerantes, com rapaces, com ambiciosos, com cruéis e com espoliadores.
O manifesto soa falso porque a democracia que apresenta não é uma democracia efetiva; soa falso porque a sua proclamação pelo diálogo é falsa; soa falso porque a unidade nacional que apresenta escamoteia a brutal desunião de fato. O manifesto faz referência ao combate à corrupção sem fazer nenhuma autocrítica. Nisto ele é hipócrita, pois os signatários e seus partidos se mobilizaram em favor do golpe-impeachment em nome da moralidade para elevar ao governo a quadrilha corrupta, denunciada pelo Ministério Público, e um presidente denunciado como chefe de quadrilha. Assim, os signatários são moralistas sem moral, sendo que seus partidos e muitos dos seus companheiros estão afundados na vala da corrupção. Proclamam o republicanismo que não têm, pois apoiaram um golpe a violação da Constituição.
Sim, o Brasil e o povo brasileiro precisam se dar um futuro digno, igualitário, livre, humanístico, civilizado e desenvolvido. Mas esse futuro não virá desses setores que o manifesto pretende agrupar, pois são setores degradados pelos maus vícios políticos, cevados nos privilégios, degenerados pela crueldade contra o povo e condenados pelas suas mentiras e enganações. Se este futuro digno vier, ele virá pelas mãos e mentes dos setores que mais precisam de uma vida de dignidade, ele virá pelo ativismo das periferias, das mulheres, dos jovens, dos negros e afrodescendentes, dos sem teto e sem terra, dos indígenas, dos sem direitos e da imensa maioria do povo pobre. Os signatários do manifesto podem lançar quantas proclamações quiserem, mas serão ilusões mentirosas. Elas não pulsam os sentimentos, as razões, os sacrifícios, as dores, a vida, a morte e a alma do povo. São proclamações sem povo e não são para o povo. São proclamações para uma elite perversa que quer se perpetuar no poder.
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