Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:
Momento de exacerbação de ódio, como o que vivemos no Brasil, não pode ser compreendido senão circunscrevendo-o ao quadro mundial. Eu me lembro, quando clandestino e militante da organização revolucionária Ação Popular, que qualquer análise de conjuntura começava pela situação internacional. Talvez devêssemos retomar isso, por essencial. Sapo não pula por boniteza, mas por necessidade. Há ódio espalhado pelo mundo, incluído nos países capitalistas centrais. Não me anima a ideia da simplificação, como se esse sentimento brotasse espontaneamente, nem que pudéssemos aplacá-lo com quaisquer cantilenas românticas, linha paz e amor, ou com apelo a religiões, até porque há algumas crenças que terminam por incentivar o ódio, como se com isso purgassem os pecados do mundo. O buraco é mais embaixo.
Poderíamos, preguiçosamente, resolver isso com uma frase: esse ódio decorre da luta de classes. Não estaríamos inteiramente errados, mas falta muito para que isso possa diagnosticar o mal. Temos que cavar mais fundo ainda. Descobrir qual essa luta de classes, qual o quadro em que ela se dá. Jabuti não sobe em árvore. Encontrando-o lá, pode saber: alguém o colocou lá em cima.
Ninguém nasce odiando, desculpem o lugar-comum.
O ódio é da cultura, é construído. Assim como o racismo, a xenofobia, o machismo, a legebetefobia, a misoginia, como todos os preconceitos.
Mas cada momento reclama uma explicação.
Não queimam as mulheres em praça pública, como na Inquisição, mas elas continuam a ser mortas, agredidas, espancadas pelos homens com os quais vivem – quase os chamei companheiros, e recuei. Homossexuais são mortos a torto e a direito. Negros jovens pobres são assassinados diariamente. Imigrantes são violentamente atacados em todas as partes do mundo quando não sucumbem afogados na vastidão dos mares.
E não se fale apenas do Brasil, não obstante aqui tudo seja muito grave. O ódio dos dias atuais decorre de um quadro de afirmação do neoliberalismo, no qual desde o final dos anos 70 e início dos 80 do século passado, quando elevou-se o primado da concorrência, do absoluto poder do mercado, e, como consequência, e quase imperceptivelmente, consagrou-se que devesse o mundo reger-se pela concorrência mortal entre as pessoas. Como diriam Pierre Dardot e Christian Lavan, em A Nova Razão do Mundo, as formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação tornam-se poderosas alavancas da concorrência entre as pessoas e definem novos modos de existência, de se colocar no mundo, novos modos de subjetivação. O neoliberalismo tende não apenas a organizar a ação dos governantes, mas também a própria conduta dos governados, e nas últimas quase quatro décadas tem conseguido isso, majoritariamente.
A polarização entre os que desistem de procurar um emprego e os que são bem-sucedidos solapa, mina a solidariedade e a cidadania, estimula a disputa e alimenta o ódio. Ao invés de olhar para o sistema, para essa fase e essa face perversa do capitalismo, para os opressores, os excluídos miram aqueles que souberam “vencer na vida”. E os que foram vitoriosos dirigem sua raiva para os que eventualmente podem deslocá-lo dos postos que alcançaram por seus “próprios méritos”. Os dois autores, cujo livro recomendo entusiasmado, dizem, e isso é fundamental, que não se deve ignorar tais mutações na subjetividade, provocadas pelo neoliberalismo. Operam no sentido do egoísmo social, e esse egoísmo leva ao ódio e podem contribuir para desembocar em movimentos reacionários ou neofascistas.
Essa marcha batida do neoliberalismo ganhou força com Margareth Thatcher e Ronald Reagan, se não quisermos recuar ao Chile de Pinochet, primeiro laboratório desse novo modo de existir do capitalismo. De lá para cá, as novas forças motrizes se puseram em movimento, assim como suas agências ideológicas, extremamente ativas na disseminação das novas culturas da concorrência, do mercado, do empreendedorismo – é, o chamado empreendedorismo está presente na raiz da formulação teórica neoliberal. Cada um é sua própria empresa, seja num pequeno negócio organizado, seja vendendo pano de chão na rua. O centro de tudo é o indivíduo, que deve lutar contra tudo e contra todos para se afirmar. Odiar o outro é essencial para obter sucesso, para deslocar o outro, derrotá-lo.
O Brasil, desde há muito, é sociedade capitalista complexa, com todas suas contradições. Enfrenta hoje, como o resto do mundo, uma violenta mutação em sua estrutura de classes, particularmente da classe trabalhadora. Lembro de um livro de André Gorz, denominado Adeus ao Proletariado, em que ele antecipa o fim das concentrações fabris, que significa uma espécie de dobre de finados da classe operária tal e qual a compreendíamos desde sempre. Esse dia está chegando. Ou já chegou. É outra classe trabalhadora: dispersa, horizontalizada, profundamente precarizada, trabalhando dia sim, dia não, semana sim, semana não, à margem de consagrados direitos, retirados agora com virulência, pronta a receber a ideia de que cada um deve cuidar de si, utilizar-se de sua capacidade para derrotar o outro, e esse outro pode ser tão pobre quanto ele. Os sindicatos terão que lidar com isso. E estão atrasados, perdidos às vezes em seus dilemas corporativistas, agarrados ao passado.
Carregamos uma herança ancestral poderosa – os quase 400 anos de escravidão. Nenhum país passa impune por mais de três séculos de subjugação, de violência, genocídio contra povos negros, trazidos a ferro desde a África. Isso criou uma mentalidade fortíssima em nossas classes dominantes, difícil de ser combatida. O ódio aos pobres vem daí. E tanto mais ele cresce se há políticas destinadas a enfrentar a desigualdade. O golpe de abril de 2016 tem essa origem, entre outras. Não se aceitou que pudessem os miseráveis, os sem renda, os negros pobres, pobres do campo ou da cidade, pudessem ter uma renda, ínfima que fosse, para sobreviver, comer, vestir-se, e isso aconteceu com algo em torno de 36 milhões de pessoas. O fascismo cresce quando os pobres ascendem. Foi assim no mundo, não é diferente no Brasil. As camadas médias, ao menos a parte inconformada com essa ascensão, odeiam os pobres, odeiam de verdade, um sentimento que cresce, ferve na alma e se expressa quando as condições políticas permitem. E tais condições foram criadas.
No Brasil, a mídia é um partido político. Tem posição. É profundamente conservadora. Não só participou de todos os golpes, como desde sempre trabalha cotidianamente na disseminação de preconceitos, no fortalecimento da ideologia individualista, da meritocracia, e do Estado forte na defesa hoje do capital financeiro. Estado mínimo é para os pobres – estes devem ficar ao deus-dará, que se virem, e palmas para os que se salvarem com seus méritos próprios. A mídia e as igrejas e o sistema de ensino superior majoritariamente privado, um ensino médio precário, público ou particular, criam as condições na mente da pessoa para desenvolver o ódio, à medida que fortalecem as ideias básicas da concorrência e da lógica e o predomínio implacável do mercado, do individualismo. É tempo de murici, cada um cuide de si.
O ódio e seu regime político correlato só podem ser combatidos com a política. Quando o ódio cresce, avoluma-se também a criminalização da política, e surgem lideranças capazes de expressar esse sentimento tão próprio do fascismo, o ódio aos diferentes, o ódio de classe, aí sim. Será a luta que irá derrotá-lo. A luta mais imediata, que está aí à nossa frente, e que não cabe recusá-la, só cabe enfrentar. E a luta de longo prazo, que enfrente desde hoje a chamada nova razão do mundo, mercado e concorrência, e que vá colocando em seu lugar ideias de uma humanidade comum, solidária, em que os trabalhadores e trabalhadoras voltem a se dar as mãos na construção do mundo. Não vamos chegar a isso sem luta, sem indignação com a miséria. Mas podemos caminhar firmes e sem ódio. Fazendo política, única possibilidade de triunfo da civilização. Fazer a cada dia a luta política, ideológica, cultural, conscientemente. A história não existe senão pela ação dos homens e mulheres, não faz nada senão por eles. Mãos à obra.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
Momento de exacerbação de ódio, como o que vivemos no Brasil, não pode ser compreendido senão circunscrevendo-o ao quadro mundial. Eu me lembro, quando clandestino e militante da organização revolucionária Ação Popular, que qualquer análise de conjuntura começava pela situação internacional. Talvez devêssemos retomar isso, por essencial. Sapo não pula por boniteza, mas por necessidade. Há ódio espalhado pelo mundo, incluído nos países capitalistas centrais. Não me anima a ideia da simplificação, como se esse sentimento brotasse espontaneamente, nem que pudéssemos aplacá-lo com quaisquer cantilenas românticas, linha paz e amor, ou com apelo a religiões, até porque há algumas crenças que terminam por incentivar o ódio, como se com isso purgassem os pecados do mundo. O buraco é mais embaixo.
Poderíamos, preguiçosamente, resolver isso com uma frase: esse ódio decorre da luta de classes. Não estaríamos inteiramente errados, mas falta muito para que isso possa diagnosticar o mal. Temos que cavar mais fundo ainda. Descobrir qual essa luta de classes, qual o quadro em que ela se dá. Jabuti não sobe em árvore. Encontrando-o lá, pode saber: alguém o colocou lá em cima.
Ninguém nasce odiando, desculpem o lugar-comum.
O ódio é da cultura, é construído. Assim como o racismo, a xenofobia, o machismo, a legebetefobia, a misoginia, como todos os preconceitos.
Mas cada momento reclama uma explicação.
Não queimam as mulheres em praça pública, como na Inquisição, mas elas continuam a ser mortas, agredidas, espancadas pelos homens com os quais vivem – quase os chamei companheiros, e recuei. Homossexuais são mortos a torto e a direito. Negros jovens pobres são assassinados diariamente. Imigrantes são violentamente atacados em todas as partes do mundo quando não sucumbem afogados na vastidão dos mares.
E não se fale apenas do Brasil, não obstante aqui tudo seja muito grave. O ódio dos dias atuais decorre de um quadro de afirmação do neoliberalismo, no qual desde o final dos anos 70 e início dos 80 do século passado, quando elevou-se o primado da concorrência, do absoluto poder do mercado, e, como consequência, e quase imperceptivelmente, consagrou-se que devesse o mundo reger-se pela concorrência mortal entre as pessoas. Como diriam Pierre Dardot e Christian Lavan, em A Nova Razão do Mundo, as formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação tornam-se poderosas alavancas da concorrência entre as pessoas e definem novos modos de existência, de se colocar no mundo, novos modos de subjetivação. O neoliberalismo tende não apenas a organizar a ação dos governantes, mas também a própria conduta dos governados, e nas últimas quase quatro décadas tem conseguido isso, majoritariamente.
A polarização entre os que desistem de procurar um emprego e os que são bem-sucedidos solapa, mina a solidariedade e a cidadania, estimula a disputa e alimenta o ódio. Ao invés de olhar para o sistema, para essa fase e essa face perversa do capitalismo, para os opressores, os excluídos miram aqueles que souberam “vencer na vida”. E os que foram vitoriosos dirigem sua raiva para os que eventualmente podem deslocá-lo dos postos que alcançaram por seus “próprios méritos”. Os dois autores, cujo livro recomendo entusiasmado, dizem, e isso é fundamental, que não se deve ignorar tais mutações na subjetividade, provocadas pelo neoliberalismo. Operam no sentido do egoísmo social, e esse egoísmo leva ao ódio e podem contribuir para desembocar em movimentos reacionários ou neofascistas.
Essa marcha batida do neoliberalismo ganhou força com Margareth Thatcher e Ronald Reagan, se não quisermos recuar ao Chile de Pinochet, primeiro laboratório desse novo modo de existir do capitalismo. De lá para cá, as novas forças motrizes se puseram em movimento, assim como suas agências ideológicas, extremamente ativas na disseminação das novas culturas da concorrência, do mercado, do empreendedorismo – é, o chamado empreendedorismo está presente na raiz da formulação teórica neoliberal. Cada um é sua própria empresa, seja num pequeno negócio organizado, seja vendendo pano de chão na rua. O centro de tudo é o indivíduo, que deve lutar contra tudo e contra todos para se afirmar. Odiar o outro é essencial para obter sucesso, para deslocar o outro, derrotá-lo.
O Brasil, desde há muito, é sociedade capitalista complexa, com todas suas contradições. Enfrenta hoje, como o resto do mundo, uma violenta mutação em sua estrutura de classes, particularmente da classe trabalhadora. Lembro de um livro de André Gorz, denominado Adeus ao Proletariado, em que ele antecipa o fim das concentrações fabris, que significa uma espécie de dobre de finados da classe operária tal e qual a compreendíamos desde sempre. Esse dia está chegando. Ou já chegou. É outra classe trabalhadora: dispersa, horizontalizada, profundamente precarizada, trabalhando dia sim, dia não, semana sim, semana não, à margem de consagrados direitos, retirados agora com virulência, pronta a receber a ideia de que cada um deve cuidar de si, utilizar-se de sua capacidade para derrotar o outro, e esse outro pode ser tão pobre quanto ele. Os sindicatos terão que lidar com isso. E estão atrasados, perdidos às vezes em seus dilemas corporativistas, agarrados ao passado.
Carregamos uma herança ancestral poderosa – os quase 400 anos de escravidão. Nenhum país passa impune por mais de três séculos de subjugação, de violência, genocídio contra povos negros, trazidos a ferro desde a África. Isso criou uma mentalidade fortíssima em nossas classes dominantes, difícil de ser combatida. O ódio aos pobres vem daí. E tanto mais ele cresce se há políticas destinadas a enfrentar a desigualdade. O golpe de abril de 2016 tem essa origem, entre outras. Não se aceitou que pudessem os miseráveis, os sem renda, os negros pobres, pobres do campo ou da cidade, pudessem ter uma renda, ínfima que fosse, para sobreviver, comer, vestir-se, e isso aconteceu com algo em torno de 36 milhões de pessoas. O fascismo cresce quando os pobres ascendem. Foi assim no mundo, não é diferente no Brasil. As camadas médias, ao menos a parte inconformada com essa ascensão, odeiam os pobres, odeiam de verdade, um sentimento que cresce, ferve na alma e se expressa quando as condições políticas permitem. E tais condições foram criadas.
No Brasil, a mídia é um partido político. Tem posição. É profundamente conservadora. Não só participou de todos os golpes, como desde sempre trabalha cotidianamente na disseminação de preconceitos, no fortalecimento da ideologia individualista, da meritocracia, e do Estado forte na defesa hoje do capital financeiro. Estado mínimo é para os pobres – estes devem ficar ao deus-dará, que se virem, e palmas para os que se salvarem com seus méritos próprios. A mídia e as igrejas e o sistema de ensino superior majoritariamente privado, um ensino médio precário, público ou particular, criam as condições na mente da pessoa para desenvolver o ódio, à medida que fortalecem as ideias básicas da concorrência e da lógica e o predomínio implacável do mercado, do individualismo. É tempo de murici, cada um cuide de si.
O ódio e seu regime político correlato só podem ser combatidos com a política. Quando o ódio cresce, avoluma-se também a criminalização da política, e surgem lideranças capazes de expressar esse sentimento tão próprio do fascismo, o ódio aos diferentes, o ódio de classe, aí sim. Será a luta que irá derrotá-lo. A luta mais imediata, que está aí à nossa frente, e que não cabe recusá-la, só cabe enfrentar. E a luta de longo prazo, que enfrente desde hoje a chamada nova razão do mundo, mercado e concorrência, e que vá colocando em seu lugar ideias de uma humanidade comum, solidária, em que os trabalhadores e trabalhadoras voltem a se dar as mãos na construção do mundo. Não vamos chegar a isso sem luta, sem indignação com a miséria. Mas podemos caminhar firmes e sem ódio. Fazendo política, única possibilidade de triunfo da civilização. Fazer a cada dia a luta política, ideológica, cultural, conscientemente. A história não existe senão pela ação dos homens e mulheres, não faz nada senão por eles. Mãos à obra.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
1 comentários:
Excelente analise.
Bravo!
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