Por Silvio Caccia Bava, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Vivemos um momento de rupturas. Não se trata apenas de uma mudança de governo; é uma mudança no regime político e talvez a abertura de um novo ciclo histórico. O capitalismo global, dominado pelas instituições financeiras, fortalece as direitas autoritárias em todo o mundo e impõe um novo padrão predatório de exploração dos trabalhadores e do meio ambiente que não comporta regimes democráticos e instituições reguladoras que limitem sua voracidade.
De um período de uma democracia ainda precária, em construção, com pesadas heranças do período autoritário, mas com algumas importantes iniciativas de redução da pobreza e de inclusão social, vivemos hoje uma ruptura democrática: passamos a uma democracia tutelada pelos militares, um Estado policial, violento e repressor, disposto a aprofundar a espoliação das maiorias e calar o dissenso.
A restrição do espaço político se expressa também pelo desmonte de todo sistema de participação – conselhos e conferências – que influía nas políticas nacionais. Mesmo antes de 2016 já ficava claro que essas formas institucionalizadas de participação estavam ultrapassadas, não funcionavam mais. Não há mais espaço de negociação dos interesses populares na elaboração das políticas nacionais.
As últimas eleições colocaram a extrema direita também em governos estaduais muito importantes, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, todos comprometidos com a mesma agenda ultraliberal, com a mesma agenda de valores conservadores.
A restrição do espaço político leva ao confronto e, para o governo Bolsonaro acabar com essas mobilizações, é preciso acabar com seus protagonistas. Os sindicatos estão sendo sufocados pela perda de receita. Além disso, estão sendo cortados os financiamentos públicos de projetos implementados por ONGs, e o MST e o MTST estão ameaçados de ser enquadrados como terroristas.
O que já se pode observar é que esses governos – nacional e estaduais – criminalizam os protestos sociais, atacam as entidades e os movimentos sociais, prendem lideranças e liberam a ação de grupos violentos de extrema direita na sociedade.
Essa polarização política precisa ser entendida como uma estratégia de governo. Ela vai continuar e ser alimentada pelas fake news e pelas denúncias que atribuirão ao campo progressista todos os males do Brasil. Elegeram “os esquerdopatas, os petralhas, os comunistas, os marxistas culturais, os movimentos sociais” como os inimigos do Brasil que precisam ser erradicados. Não sabemos muito bem o significado desses termos.
A defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos e do meio ambiente torna-se uma prioridade, mas como fazê-lo? Não podemos cair na armadilha de disputar a agenda com as fake news, contrapondo um discurso genérico da defesa de direitos às barbaridades que serão, uma após a outra, postas em debate. Tampouco podemos ignorá-las, já que chegam a milhões de pessoas que declaram acreditar no que leem. A disputa da agenda é crucial: quais serão os assuntos na boca do povo? Aumento do salário mínimo ou a mamadeira de piroca?
Esse momento de resistência requer atuação vigilante sobre os acontecimentos e as medidas de governo que imponham restrições às liberdades e aos direitos.
Se as denúncias sobre a tragédia de Mariana não foram suficientes para fazer o governo impor às mineradoras limites de respeito à vida e à natureza, agora essas denúncias devem ser reforçadas pela tragédia de Brumadinho e devem ser cobradas medidas efetivas de regulação, fiscalização e punição das mineradoras por parte do governo federal e da justiça.
No entanto, as Marianas e os Brumadinhos vão se repetir, pois essa forma predatória de extração de riquezas, de ação dos interesses privados, sem nenhuma consideração pela população local e pelos danos ambientais, encontra um Estado conivente que não lhe coloca limites. Isso é na mineração, no agronegócio, na exploração da Amazônia…
Reforçar a posição nos territórios é outra estratégia que se apresenta para o momento e traz um conjunto de implicações: romper o isolamento das experiências, armar redes de redes, estabelecer diálogos com os parlamentos locais e estaduais.
Recuamos na disputa de políticas nacionais para a resistência por meio da mobilização no território. São as experiências solidárias, cooperativas, especialmente as de enfrentamento da pobreza e da fome, que podem abrir alternativas sociais para o engajamento de setores mais amplos da sociedade a uma agenda progressista. A disputa de valores pode ser feita pelo relato de experiências exitosas, reais.
As redes de defesa da democracia e dos direitos humanos terão de expandir sua relação com grupos na sociedade e ampliar seu discurso para ganhar a participação de maiores parcelas da sociedade.
Sobre as questões do trabalho, do emprego, do salário e da previdência, as representações sindicais são os atores mais relevantes nesses campos de conflito. Elas devem liderar a resistência nesses temas.
A violência e a discriminação contra os negros, as mulheres e os grupos LGBT estão também em questão. E aqui se reafirma o desafio de tecermos redes de redes, construindo solidariedades. Isoladamente, cada grupo terá de enfrentar um Estado forte e grupos sociais mobilizados em seu combate. Índios, quilombolas, movimento feminista, religiões afro, agricultores familiares, movimentos de juventude, todos estão sob ataque.
Nesta nova conjuntura há algumas prioridades: denunciar e resistir ao processo de espoliação e opressão; buscar formular uma política de comunicação mais ampla para enfrentar a disputa das narrativas; investir fortemente na comunicação digital para atingir um público mais vasto; expandir o diálogo com novos atores; apoiar a construção de redes de redes de defesa da democracia e da cidadania; explorar experiências de sucesso para expressar e defender valores como justiça social, solidariedade, cooperação e direitos humanos; articular a denúncia das violações de direitos com redes internacionais de solidariedade.
* Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
De um período de uma democracia ainda precária, em construção, com pesadas heranças do período autoritário, mas com algumas importantes iniciativas de redução da pobreza e de inclusão social, vivemos hoje uma ruptura democrática: passamos a uma democracia tutelada pelos militares, um Estado policial, violento e repressor, disposto a aprofundar a espoliação das maiorias e calar o dissenso.
A restrição do espaço político se expressa também pelo desmonte de todo sistema de participação – conselhos e conferências – que influía nas políticas nacionais. Mesmo antes de 2016 já ficava claro que essas formas institucionalizadas de participação estavam ultrapassadas, não funcionavam mais. Não há mais espaço de negociação dos interesses populares na elaboração das políticas nacionais.
As últimas eleições colocaram a extrema direita também em governos estaduais muito importantes, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, todos comprometidos com a mesma agenda ultraliberal, com a mesma agenda de valores conservadores.
A restrição do espaço político leva ao confronto e, para o governo Bolsonaro acabar com essas mobilizações, é preciso acabar com seus protagonistas. Os sindicatos estão sendo sufocados pela perda de receita. Além disso, estão sendo cortados os financiamentos públicos de projetos implementados por ONGs, e o MST e o MTST estão ameaçados de ser enquadrados como terroristas.
O que já se pode observar é que esses governos – nacional e estaduais – criminalizam os protestos sociais, atacam as entidades e os movimentos sociais, prendem lideranças e liberam a ação de grupos violentos de extrema direita na sociedade.
Essa polarização política precisa ser entendida como uma estratégia de governo. Ela vai continuar e ser alimentada pelas fake news e pelas denúncias que atribuirão ao campo progressista todos os males do Brasil. Elegeram “os esquerdopatas, os petralhas, os comunistas, os marxistas culturais, os movimentos sociais” como os inimigos do Brasil que precisam ser erradicados. Não sabemos muito bem o significado desses termos.
A defesa dos valores democráticos, dos direitos humanos e do meio ambiente torna-se uma prioridade, mas como fazê-lo? Não podemos cair na armadilha de disputar a agenda com as fake news, contrapondo um discurso genérico da defesa de direitos às barbaridades que serão, uma após a outra, postas em debate. Tampouco podemos ignorá-las, já que chegam a milhões de pessoas que declaram acreditar no que leem. A disputa da agenda é crucial: quais serão os assuntos na boca do povo? Aumento do salário mínimo ou a mamadeira de piroca?
Esse momento de resistência requer atuação vigilante sobre os acontecimentos e as medidas de governo que imponham restrições às liberdades e aos direitos.
Se as denúncias sobre a tragédia de Mariana não foram suficientes para fazer o governo impor às mineradoras limites de respeito à vida e à natureza, agora essas denúncias devem ser reforçadas pela tragédia de Brumadinho e devem ser cobradas medidas efetivas de regulação, fiscalização e punição das mineradoras por parte do governo federal e da justiça.
No entanto, as Marianas e os Brumadinhos vão se repetir, pois essa forma predatória de extração de riquezas, de ação dos interesses privados, sem nenhuma consideração pela população local e pelos danos ambientais, encontra um Estado conivente que não lhe coloca limites. Isso é na mineração, no agronegócio, na exploração da Amazônia…
Reforçar a posição nos territórios é outra estratégia que se apresenta para o momento e traz um conjunto de implicações: romper o isolamento das experiências, armar redes de redes, estabelecer diálogos com os parlamentos locais e estaduais.
Recuamos na disputa de políticas nacionais para a resistência por meio da mobilização no território. São as experiências solidárias, cooperativas, especialmente as de enfrentamento da pobreza e da fome, que podem abrir alternativas sociais para o engajamento de setores mais amplos da sociedade a uma agenda progressista. A disputa de valores pode ser feita pelo relato de experiências exitosas, reais.
As redes de defesa da democracia e dos direitos humanos terão de expandir sua relação com grupos na sociedade e ampliar seu discurso para ganhar a participação de maiores parcelas da sociedade.
Sobre as questões do trabalho, do emprego, do salário e da previdência, as representações sindicais são os atores mais relevantes nesses campos de conflito. Elas devem liderar a resistência nesses temas.
A violência e a discriminação contra os negros, as mulheres e os grupos LGBT estão também em questão. E aqui se reafirma o desafio de tecermos redes de redes, construindo solidariedades. Isoladamente, cada grupo terá de enfrentar um Estado forte e grupos sociais mobilizados em seu combate. Índios, quilombolas, movimento feminista, religiões afro, agricultores familiares, movimentos de juventude, todos estão sob ataque.
Nesta nova conjuntura há algumas prioridades: denunciar e resistir ao processo de espoliação e opressão; buscar formular uma política de comunicação mais ampla para enfrentar a disputa das narrativas; investir fortemente na comunicação digital para atingir um público mais vasto; expandir o diálogo com novos atores; apoiar a construção de redes de redes de defesa da democracia e da cidadania; explorar experiências de sucesso para expressar e defender valores como justiça social, solidariedade, cooperação e direitos humanos; articular a denúncia das violações de direitos com redes internacionais de solidariedade.
* Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
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