Por Maria do Rosário Nunes, no site Sul-21:
Nos últimos tempos o Brasil tem sido marcado pela imposição de um conservadorismo moralista, que falseia discursos religiosos com objetivos políticos, enquanto ameaça de forma autoritária as liberdades civis e democráticas e desmonta políticas públicas com um projeto ultraneoliberal no manejo da economia e das relações internacionais.
Isso tem ficado bem evidente nos posicionamentos excêntricos da titular da pasta de direitos humanos e pela proposta de criminalização de movimentos sociais, endurecimento da lei e da ordem e a liberação de armas. No pano de fundo encontra-se em execução o plano que interessa às elites do dinheiro – a entrega das riquezas do país ao grande capital, inclusive as terras indígenas à exploração mineral por estrangeiros. O plano de desmonte da previdência social contido na PEC 006/2019, de Jair Bolsonaro, coroa as medidas que atingem trabalhadores, pobres, pequenos agricultores, mas sobretudo é cruel com as mulheres.
Se poderia dizer que isso já era esperado. O presidente eleito é conhecido pela forma violenta com se refere às mulheres, agindo ameaçadoramente, de forma indigna e truculenta. As políticas de seu governo voltadas para a população feminina propugnam a naturalização das desigualdades e o exercício de papéis tradicionais de gênero. Aliás, esta palavra está proibida no dicionário do governo, vista como uma construção para perverter famílias e crianças. Tudo isso contraria o arcabouço jurídico-legal e os compromissos internacionais do país com a igualdade de gênero e direitos humanos.
Mas sabemos também que Bolsonaro foi eleito para atender sobretudo à expectativa de setores que patrocinaram o golpe misógino contra Dilma, de realizar o que ainda não se conseguira em termos de medidas ultraneoliberais no Brasil. Nesse sentido a proposta está em sintonia com o golpe de 2016 e as medidas tomadas por Temer – a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos até 2036, e com a reforma trabalhista. Mas a perversidade, mesmo esperada, às vezes surpreende.
A reforma da previdência proposta pela PEC 006 destrói o sistema de seguridade social instituído pela Constituição Federal de 1988. Com a ideia de direitos, a Constituição incorporou o conceito de seguridade e social – um conjunto de ações dos poderes públicos destinado a assegurar os direitos à Saúde (SUS), à Previdência (aposentadorias, pensões por morte e benefícios do INSS) e à Assistência Social (benefício social pago a idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza, além do Bolsa Família). É financiada através do modelo tripartite, por contribuição de trabalhadores e trabalhadoras, patrões e governo. A principal alegação dos promotores da reforma é o déficit desse sistema.
Entretanto, os estudos realizados pelo Dieese e Anfip (2017) revelam que entre 1988 e 2016 a Seguridade Social no Brasil foi superavitária, mesmo com a subtração de suas receitas pela incidência da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e desonerações tributárias sobre suas fontes de financiamento. O suposto “déficit” da Previdência Social surge ao não se contabilizarem como receita previdenciária as contribuições cabíveis ao estado.
Desde 1989, só são consideradas, nas contas apresentadas para a previdência social, o orçamento da Previdência, as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores sobre a folha de salários, ou seja, o governo chama de “déficit” a parte cujo aporte é dever do Estado no sistema de financiamento tripartite instituído pela Constituição – mas que o governo não aporta. Portanto, o déficit é um desprezo à ordem constitucional.
No entanto, ao invés de corrigi-lo, e ao mesmo tempo passar a cobrar os grandes sonegadores, a taxar as grandes fortunas, a cobrar impostos sobre transações financeiras e pôr fim à DRU, o governo opta por apresentar a conta às trabalhadoras e aos mais pobres. No fundo sabemos que o que se pretende é um outro modelo de previdência, o privado. Nesse, os ricos podem ficar mais ricos, vendendo aposentadorias aos trabalhadores.
Num breve resumo da proposta que deve tramitar no Congresso nos próximos meses, o governo pretende retirar da Constituição as garantias à seguridade, levando-a para Lei Complementar. Dessa forma, facilitar a retirada de direitos até o limite que conseguirem: aumentar a idade de aposentadoria para mulheres e homens para 62 e 65 anos consecutivamente, o que obrigará as mulheres a trabalharem mais sete anos. E mesmo com idade, precisarão de 20 anos de contribuição para receber 100% do salário.
Outro elemento da crueldade diz respeito a determinadas categorias profissionais em que as mulheres são a maioria, como as professoras, que perdem o direito de aposentadoria especial que hoje possuem se passarem 25 anos ininterruptos no trabalho exclusivo de sala de aula. As trabalhadoras domésticas, já penalizadas pela reforma trabalhista de Temer, e cuja trajetória é marcada ainda pela informalidade, terão imensas dificuldades de obter aposentadoria.
Já as trabalhadoras rurais e agricultoras retrocedem nas conquistas, passando a ter que contribuir individualmente e não pela aplicação da alíquota sobre a produção se trabalharem na agricultura familiar, aprofundando assim as desigualdades de gênero no mundo do trabalho, marca histórica de nosso país.
Os dados do Anuário Estatístico da Previdência Social mostram que em geral as mulheres recebem 75,4% do rendimento recebido pelos homens, trabalham cerca de 5 horas semanais a mais nas tarefas domésticas, ocupam postos de trabalho mais precários e sofrem mais com a rotatividade.
A vida laboral das mulheres, ademais, é interrompida pela maternidade e cuidados familiares, que são intensificados pela falta de políticas públicas. Ao retornar ao trabalho após períodos de afastamento, enfrentam a necessidade de adequar-se a mudanças tecnológicas e em métodos de trabalho, sendo rebaixadas de função.
No desemprego, levam mais tempo do que os homens para conseguir novo trabalho, pois eles são vistos como “provedores” principais, apesar do número elevado de lares mono-parentais dirigidos por mulheres – cerca de 30 milhões entre os 71 milhões de lares do Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (2017).
Duplas e triplas jornadas de trabalho, somadas aos riscos e violências sofridas nos trajetos de ida e volta aos locais de trabalho, o assédio sexual e o assédio moral, fruto de fatores culturais como o machismo, o sexismo e outras formas de discriminação, implicam em exaustão precoce e deterioração física e mental. Como consequência, as mulheres tem sido as maiores consumidoras de medicamentos psiquiátricos do SUS, forma de enfrentar o sofrimento emocional desse conjunto de situações na vida laboral.
Fruto dessas disparidades, as mulheres, numericamente a maioria dos beneficiários da previdência, cerca de 55,8% do total, já recebem parcelas muito menores do que as dos homens porque recolhem valores menores sobre salários menores. Ser mulher no Brasil, marcado por desigualdade e violência no ambiente de trabalho, nas ruas e dentro de casa, não é nada fácil para as brasileiras!
É com base nesses dados e nessas reflexões que sou contrária à reforma da previdência. Não darei meu voto de deputada federal contra a classe trabalhadora, e principalmente, não votarei contra as mulheres. Esse governo formado por opressores quer jogar sobre os ombros das mulheres, que já são as mais prejudicadas no mundo do trabalho, os custos de uma reforma que interessa somente ao mercado, mantém sonegadores livres de impostos e possivelmente serve exclusivamente aos considerados elite econômica no Brasil.
Reafirmo que estamos juntas, mulheres! E vamos à luta por nossas vidas, respeito e direitos.
* Maria do Rosário Nunes é deputada federal (PT/RS).
Isso tem ficado bem evidente nos posicionamentos excêntricos da titular da pasta de direitos humanos e pela proposta de criminalização de movimentos sociais, endurecimento da lei e da ordem e a liberação de armas. No pano de fundo encontra-se em execução o plano que interessa às elites do dinheiro – a entrega das riquezas do país ao grande capital, inclusive as terras indígenas à exploração mineral por estrangeiros. O plano de desmonte da previdência social contido na PEC 006/2019, de Jair Bolsonaro, coroa as medidas que atingem trabalhadores, pobres, pequenos agricultores, mas sobretudo é cruel com as mulheres.
Se poderia dizer que isso já era esperado. O presidente eleito é conhecido pela forma violenta com se refere às mulheres, agindo ameaçadoramente, de forma indigna e truculenta. As políticas de seu governo voltadas para a população feminina propugnam a naturalização das desigualdades e o exercício de papéis tradicionais de gênero. Aliás, esta palavra está proibida no dicionário do governo, vista como uma construção para perverter famílias e crianças. Tudo isso contraria o arcabouço jurídico-legal e os compromissos internacionais do país com a igualdade de gênero e direitos humanos.
Mas sabemos também que Bolsonaro foi eleito para atender sobretudo à expectativa de setores que patrocinaram o golpe misógino contra Dilma, de realizar o que ainda não se conseguira em termos de medidas ultraneoliberais no Brasil. Nesse sentido a proposta está em sintonia com o golpe de 2016 e as medidas tomadas por Temer – a Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos até 2036, e com a reforma trabalhista. Mas a perversidade, mesmo esperada, às vezes surpreende.
A reforma da previdência proposta pela PEC 006 destrói o sistema de seguridade social instituído pela Constituição Federal de 1988. Com a ideia de direitos, a Constituição incorporou o conceito de seguridade e social – um conjunto de ações dos poderes públicos destinado a assegurar os direitos à Saúde (SUS), à Previdência (aposentadorias, pensões por morte e benefícios do INSS) e à Assistência Social (benefício social pago a idosos e pessoas com deficiência em situação de extrema pobreza, além do Bolsa Família). É financiada através do modelo tripartite, por contribuição de trabalhadores e trabalhadoras, patrões e governo. A principal alegação dos promotores da reforma é o déficit desse sistema.
Entretanto, os estudos realizados pelo Dieese e Anfip (2017) revelam que entre 1988 e 2016 a Seguridade Social no Brasil foi superavitária, mesmo com a subtração de suas receitas pela incidência da Desvinculação das Receitas da União (DRU) e desonerações tributárias sobre suas fontes de financiamento. O suposto “déficit” da Previdência Social surge ao não se contabilizarem como receita previdenciária as contribuições cabíveis ao estado.
Desde 1989, só são consideradas, nas contas apresentadas para a previdência social, o orçamento da Previdência, as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores sobre a folha de salários, ou seja, o governo chama de “déficit” a parte cujo aporte é dever do Estado no sistema de financiamento tripartite instituído pela Constituição – mas que o governo não aporta. Portanto, o déficit é um desprezo à ordem constitucional.
No entanto, ao invés de corrigi-lo, e ao mesmo tempo passar a cobrar os grandes sonegadores, a taxar as grandes fortunas, a cobrar impostos sobre transações financeiras e pôr fim à DRU, o governo opta por apresentar a conta às trabalhadoras e aos mais pobres. No fundo sabemos que o que se pretende é um outro modelo de previdência, o privado. Nesse, os ricos podem ficar mais ricos, vendendo aposentadorias aos trabalhadores.
Num breve resumo da proposta que deve tramitar no Congresso nos próximos meses, o governo pretende retirar da Constituição as garantias à seguridade, levando-a para Lei Complementar. Dessa forma, facilitar a retirada de direitos até o limite que conseguirem: aumentar a idade de aposentadoria para mulheres e homens para 62 e 65 anos consecutivamente, o que obrigará as mulheres a trabalharem mais sete anos. E mesmo com idade, precisarão de 20 anos de contribuição para receber 100% do salário.
Outro elemento da crueldade diz respeito a determinadas categorias profissionais em que as mulheres são a maioria, como as professoras, que perdem o direito de aposentadoria especial que hoje possuem se passarem 25 anos ininterruptos no trabalho exclusivo de sala de aula. As trabalhadoras domésticas, já penalizadas pela reforma trabalhista de Temer, e cuja trajetória é marcada ainda pela informalidade, terão imensas dificuldades de obter aposentadoria.
Já as trabalhadoras rurais e agricultoras retrocedem nas conquistas, passando a ter que contribuir individualmente e não pela aplicação da alíquota sobre a produção se trabalharem na agricultura familiar, aprofundando assim as desigualdades de gênero no mundo do trabalho, marca histórica de nosso país.
Os dados do Anuário Estatístico da Previdência Social mostram que em geral as mulheres recebem 75,4% do rendimento recebido pelos homens, trabalham cerca de 5 horas semanais a mais nas tarefas domésticas, ocupam postos de trabalho mais precários e sofrem mais com a rotatividade.
A vida laboral das mulheres, ademais, é interrompida pela maternidade e cuidados familiares, que são intensificados pela falta de políticas públicas. Ao retornar ao trabalho após períodos de afastamento, enfrentam a necessidade de adequar-se a mudanças tecnológicas e em métodos de trabalho, sendo rebaixadas de função.
No desemprego, levam mais tempo do que os homens para conseguir novo trabalho, pois eles são vistos como “provedores” principais, apesar do número elevado de lares mono-parentais dirigidos por mulheres – cerca de 30 milhões entre os 71 milhões de lares do Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (2017).
Duplas e triplas jornadas de trabalho, somadas aos riscos e violências sofridas nos trajetos de ida e volta aos locais de trabalho, o assédio sexual e o assédio moral, fruto de fatores culturais como o machismo, o sexismo e outras formas de discriminação, implicam em exaustão precoce e deterioração física e mental. Como consequência, as mulheres tem sido as maiores consumidoras de medicamentos psiquiátricos do SUS, forma de enfrentar o sofrimento emocional desse conjunto de situações na vida laboral.
Fruto dessas disparidades, as mulheres, numericamente a maioria dos beneficiários da previdência, cerca de 55,8% do total, já recebem parcelas muito menores do que as dos homens porque recolhem valores menores sobre salários menores. Ser mulher no Brasil, marcado por desigualdade e violência no ambiente de trabalho, nas ruas e dentro de casa, não é nada fácil para as brasileiras!
É com base nesses dados e nessas reflexões que sou contrária à reforma da previdência. Não darei meu voto de deputada federal contra a classe trabalhadora, e principalmente, não votarei contra as mulheres. Esse governo formado por opressores quer jogar sobre os ombros das mulheres, que já são as mais prejudicadas no mundo do trabalho, os custos de uma reforma que interessa somente ao mercado, mantém sonegadores livres de impostos e possivelmente serve exclusivamente aos considerados elite econômica no Brasil.
Reafirmo que estamos juntas, mulheres! E vamos à luta por nossas vidas, respeito e direitos.
* Maria do Rosário Nunes é deputada federal (PT/RS).
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