Por Adriano de Freixo, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Ao assumir o Ministério das Relações Exteriores (MRE), em maio de 2016, ainda durante o período de interinidade de Michel Temer, José Serra anunciou uma “mudança de rumos” na política externa brasileira, com o abandono das principais orientações e diretrizes implementadas durante o ciclo dos governos petistas, em especial, nos anos de Luiz Inácio Lula da Silva. Vislumbrando uma possível nova candidatura à presidência em 2018 e de olho no eleitorado conservador e antipetista, o senador tucano fez de seu discurso de posse um manifesto contra o que chamou de política externa “partidária” e “ideológica” do período anterior.
Sinalizando um novo alinhamento com os Estados Unidos (ainda sob o governo Barack Obama) e seus aliados europeus, o então chanceler não poupou críticas à condução do comércio exterior nos governos petistas, com ataques à aposta nas negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio feita desde a gestão de Celso Amorim, bem como às políticas africana e latino-americana dos anos da “política externa ativa e altiva”. Apesar do tom radicalizado do discurso, a passagem de Serra e seu sucessor, o também senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, acabaria por não trazer nenhuma ruptura ou mesmo alterações dignas de nota nos rumos da política exterior brasileira.
Mais preocupado em contestar a percepção de um soft coup no Brasil e soltando notas oficiais muito acima do tom diplomático habitual contra países, organizações e personalidades que criticavam o processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff, Serra acabou fazendo uma gestão pífia à frente do Itamaraty, acentuando assim o declínio da política externa e da projeção internacional do Brasil.
No entanto, a saída de Serra da chancelaria, por alegados motivos de saúde, e a ascensão de Nunes Ferreira acabaram por levar o MRE de volta à “normalidade”. Assim, exceto por uma postura mais crítica e agressiva em relação à Venezuela, a gestão de Nunes Ferreira foi marcada por uma orientação pragmática, sendo conduzida com profissionalismo pelos diplomatas de carreira, com a retomada de agendas próximas ao período Lula/Celso Amorim, como a ênfase em fóruns multilaterais, como Brics e Ibas, e a aproximação com regiões mais distantes do entorno estratégico do Brasil, como a Ásia/Pacífico.
Logo, as críticas iniciais de José Serra à suposta partidarização da política externa brasileira, bem como o anúncio da sua “desideologização” acabaram por ficar mais no campo da retórica do que no das realizações práticas. Portanto, embora ao longo da presidência de Temer e das gestões de Serra e Nunes Ferreira no MRE tenha havido uma maior aproximação com Estados Unidos e Europa, isto não significou, necessariamente, um alinhamento automático aos interesses norte-americanos, nem o abandono da ênfase dada nas últimas décadas ao multilateralismo
Neste sentido, as relações com os novos parceiros, como China e Índia, não foram abandonadas e tampouco relegadas a segundo plano, devido, inclusive, a seu crescente peso em nosso comércio exterior. Além disto, a busca por maior diversificação de parcerias, característica da política externa dos anos anteriores, se manifestaria na reaproximação com o Japão, até então secundarizado. Esses traços de continuidade, mesmo em um momento de turbulência e crise política aguda, decorreram do alto grau de institucionalização e profissionalização do Itamaraty, uma das agências mais consolidadas do Estado brasileiro.
Um diplomata “júnior”
Nas semanas que antecederam o primeiro turno da eleição presidencial de 2018, quando Jair Bolsonaro começou a despontar com reais chances de vitória, a crença na força dessa elevada institucionalização do MRE construiu, entre boa parte dos diplomatas e analistas midiáticos e acadêmicos, a percepção de que mesmo que o ex-capitão (com sua postura outsider e ideias polêmicas e questionáveis) vencesse o pleito, a política externa brasileira seguiria sem grandes rupturas ou reacomodações.
O então presidente Michel Temer chegou a afirmar em entrevista à TV Brasil, em dezembro de 2018: “Nunca nos pautamos por ideologia. Nossas relações são de país para país. Acho que o presidente Jair Bolsonaro vai acabar adotando essa política universalista”.
Nas especulações sobre quem seria o novo chanceler, tal percepção parecia se confirmar, pois os nomes mais ventilados eram os de diplomatas bastante experientes e fortemente identificados com as tradições da “Casa de Rio Branco”, como os embaixadores Marcos Galvão (secretário-geral da pasta durante o governo Temer), José Alfredo Graça Lima (nome bastante próximo ao falecido chanceler Luiz Felipe Lampreia, do governo FHC) e mesmo Maria Nazareth Farani Azevedo (ex-chefe de gabinete de Celso Amorim e chefe da delegação brasileira na ONU, em Genebra).
Porém, a escolha acabaria recaindo sobre Ernesto Araújo, um diplomata “júnior” promovido a ministro de primeira classe somente em 2018 e que nunca havia sequer chefiado uma embaixada no exterior.
No entanto, Araújo trazia como credenciais a indicação do escritor conservador Olavo de Carvalho, a simpatia do deputado Eduardo Bolsonaro (filho do presidente, que desde a campanha eleitoral vinha procurando se afirmar como uma liderança internacional do neoconservadorismo) e o ativismo político pró-candidatura Bolsonaro exercido em seu blog pessoal, prática pouco usual em um diplomata.
Indicado em meio à primeira crise diplomática causada por declarações do então presidente eleito – com os países árabes, ao anunciar a intenção de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém –, o novo chanceler deixaria claro, de imediato, que estava disposto a traduzir as teses bolsonaristas no âmbito da política externa brasileira.
Guinada radical
O bolsonarismo é aqui entendido como um fenômeno político que transcende a própria figura de Bolsonaro. Caracteriza-se por uma visão de mundo ultraconservadora, que prega o retorno aos “valores tradicionais” e assume uma retórica nacionalista e “patriótica”, sendo profundamente crítica a tudo aquilo que esteja minimamente identificado com a esquerda e o progressismo.
Na última década, tal visão ganhou bastante força em várias partes do mundo, alimentando-se da crise da representação e da descrença generalizada na política e nos partidos tradicionais. No campo das relações internacionais, ela se identifica com o antiglobalismo de viés conservador e com as críticas ao multilateralismo, às organizações internacionais, ao multiculturalismo e à agenda liberal-progressista, que ganhou força a partir da década de 1990, com ênfase em questões como direitos humanos, igualdade de gênero e igualdade racial.
Araújo compartilhava esta visão de mundo em seu blog, antes de sua nomeação para o ministério, manifestando seu desejo de “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”, entendendo o globalismo “como a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”, sendo então um “sistema anti-humano e anti-cristão”.
Com este sentido de “missão”, em uma perspectiva bastante próxima da religiosa, sua chegada à chancelaria traz no bojo não só a tentativa de implementação de uma guinada radical e sem precedentes nas diretrizes e orientações da política externa brasileira, como também a de um projeto de reformulação da própria instituição MRE, que busca afirmar e impor uma nova visão de diplomacia, identificada com as teses da renovada extrema-direita mundial.
Sob este mesmo prisma, também cabe destacar a nomeação de Felipe Garcia Martins, outro pupilo de Olavo, para a assessoria internacional da Presidência da República. Esse jovem bacharel em Relações Internacionais transformou-se em um dos principais conselheiros do presidente e de seu filho Eduardo Bolsonaro (que assumiu a presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados), após se notabilizar nas redes sociais por seu ativismo ultraconservador, suas posições críticas ao globalismo e seu apoio a Donald Trump, Israel e aos governos direitistas de países como Hungria, Polônia e Itália.
Esta guinada de caráter marcadamente partidário vem sendo marcada por um alinhamento fortemente ideológico e sem precedentes com os Estados Unidos – mais até do que na gestão do chanceler Raul Fernandes durante o governo Dutra, nos anos iniciais da Guerra Fria. Assim, medidas como a escolha de um lado nos conflitos árabe-israelenses (pró-Israel) ou a ingerência nos assuntos internos de outros países (Venezuela) representam claramente quebras de princípios basilares da tradição diplomática brasileira.
Sinaliza-se também o rompimento com algumas das diretrizes centrais das últimas décadas, dentre as quais a busca da autonomia, a diversificação de parcerias estratégicas, o pragmatismo nas relações exteriores, a ênfase no multilateralismo, a defesa da reforma das organizações internacionais e a prioridade dada à integração regional.
A clara postura anti-China, um dos principais parceiros comerciais e econômicos do Brasil, do atual chanceler aparece como o exemplo mais bem acabado da partidarização (ou “ideologização”, para usar um termo caro a Araújo, em suas críticas à diplomacia dos anos Lula/Celso Amorim) da política exterior do Brasil, visto que não leva em conta os interesses de segmentos extremamente relevantes para a economia nacional.
Por outro lado, a tentativa de implementação de uma nova visão de diplomacia e de construção de uma nova hegemonia no Itamaraty vem se traduzindo em medidas como a reformulação do currículo do Instituto Rio Branco, com a extinção da disciplina História da América Latina e a criação de novas disciplinas voltadas para o estudo dos Clássicos, além da reformulação da ementa do curso de Política Internacional, com o objetivo declarado de afastar os futuros diplomatas de “amarras ideológicas eventualmente adquiridas em sua formação anterior”.
Neste mesmo contexto insere-se a exoneração de diplomatas experientes das chefias de departamentos e órgãos do ministério e a sua substituição por diplomatas “juniores” alinhados com as posições do ministro, além da eliminação de dissensões internas, como a do ex-diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI), Paulo Roberto de Almeida, um crítico de primeira hora da política dos governos petistas e de reconhecida independência intelectual.
Essas mudanças – ou tentativas de mudança – vêm provocando grandes tensões, não só internamente no MRE, mas na própria base de sustentação do governo, onde há uma clara divisão entre o bolsonarismo “ideológico” e aqueles que aderiram à candidatura e ao governo por questões pragmáticas ou pontuais.
A continuidade e a consolidação dessa política externa do bolsonarismo dependerão dos desdobramentos das disputas e embates que envolvem, por exemplo, setores como a oficialidade das Forças Armadas que ocupa postos relevantes no governo, incluindo o vice-presidente Hamilton Mourão, e que tem funcionado como um contraponto “moderado” aos arroubos voluntaristas e ideológicos de Araújo, como se viu no episódio da “intervenção humanitária” na Venezuela.
Deve-se levar em conta também a capacidade de resiliência institucional do MRE, onde há clara insatisfação de setores influentes da diplomacia com os rumos que a chancelaria brasileira vem tomando.
Assim, os próximos meses tendem a ser decisivos para as pretensões de Araújo e do núcleo duro do bolsonarismo ideológico em “reformar” a política externa brasileira. Talvez, neste sentido, deva ser entendida a fala do atual chanceler na aula magna do Instituto Rio Branco, em 11 de março último, quando defendendo uma política externa guiada pela fé cristã e citando Heidegger, afirmou que “só um Deus é capaz de nos salvar”.
* Adriano de Freixo é Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador, com Rosana Pinheiro-Machado, de Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova Direita e Desdemocratização (Oficina Raquel, 2019)
Sinalizando um novo alinhamento com os Estados Unidos (ainda sob o governo Barack Obama) e seus aliados europeus, o então chanceler não poupou críticas à condução do comércio exterior nos governos petistas, com ataques à aposta nas negociações multilaterais no âmbito da Organização Mundial do Comércio feita desde a gestão de Celso Amorim, bem como às políticas africana e latino-americana dos anos da “política externa ativa e altiva”. Apesar do tom radicalizado do discurso, a passagem de Serra e seu sucessor, o também senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, acabaria por não trazer nenhuma ruptura ou mesmo alterações dignas de nota nos rumos da política exterior brasileira.
Mais preocupado em contestar a percepção de um soft coup no Brasil e soltando notas oficiais muito acima do tom diplomático habitual contra países, organizações e personalidades que criticavam o processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff, Serra acabou fazendo uma gestão pífia à frente do Itamaraty, acentuando assim o declínio da política externa e da projeção internacional do Brasil.
No entanto, a saída de Serra da chancelaria, por alegados motivos de saúde, e a ascensão de Nunes Ferreira acabaram por levar o MRE de volta à “normalidade”. Assim, exceto por uma postura mais crítica e agressiva em relação à Venezuela, a gestão de Nunes Ferreira foi marcada por uma orientação pragmática, sendo conduzida com profissionalismo pelos diplomatas de carreira, com a retomada de agendas próximas ao período Lula/Celso Amorim, como a ênfase em fóruns multilaterais, como Brics e Ibas, e a aproximação com regiões mais distantes do entorno estratégico do Brasil, como a Ásia/Pacífico.
Logo, as críticas iniciais de José Serra à suposta partidarização da política externa brasileira, bem como o anúncio da sua “desideologização” acabaram por ficar mais no campo da retórica do que no das realizações práticas. Portanto, embora ao longo da presidência de Temer e das gestões de Serra e Nunes Ferreira no MRE tenha havido uma maior aproximação com Estados Unidos e Europa, isto não significou, necessariamente, um alinhamento automático aos interesses norte-americanos, nem o abandono da ênfase dada nas últimas décadas ao multilateralismo
Neste sentido, as relações com os novos parceiros, como China e Índia, não foram abandonadas e tampouco relegadas a segundo plano, devido, inclusive, a seu crescente peso em nosso comércio exterior. Além disto, a busca por maior diversificação de parcerias, característica da política externa dos anos anteriores, se manifestaria na reaproximação com o Japão, até então secundarizado. Esses traços de continuidade, mesmo em um momento de turbulência e crise política aguda, decorreram do alto grau de institucionalização e profissionalização do Itamaraty, uma das agências mais consolidadas do Estado brasileiro.
Um diplomata “júnior”
Nas semanas que antecederam o primeiro turno da eleição presidencial de 2018, quando Jair Bolsonaro começou a despontar com reais chances de vitória, a crença na força dessa elevada institucionalização do MRE construiu, entre boa parte dos diplomatas e analistas midiáticos e acadêmicos, a percepção de que mesmo que o ex-capitão (com sua postura outsider e ideias polêmicas e questionáveis) vencesse o pleito, a política externa brasileira seguiria sem grandes rupturas ou reacomodações.
O então presidente Michel Temer chegou a afirmar em entrevista à TV Brasil, em dezembro de 2018: “Nunca nos pautamos por ideologia. Nossas relações são de país para país. Acho que o presidente Jair Bolsonaro vai acabar adotando essa política universalista”.
Nas especulações sobre quem seria o novo chanceler, tal percepção parecia se confirmar, pois os nomes mais ventilados eram os de diplomatas bastante experientes e fortemente identificados com as tradições da “Casa de Rio Branco”, como os embaixadores Marcos Galvão (secretário-geral da pasta durante o governo Temer), José Alfredo Graça Lima (nome bastante próximo ao falecido chanceler Luiz Felipe Lampreia, do governo FHC) e mesmo Maria Nazareth Farani Azevedo (ex-chefe de gabinete de Celso Amorim e chefe da delegação brasileira na ONU, em Genebra).
Porém, a escolha acabaria recaindo sobre Ernesto Araújo, um diplomata “júnior” promovido a ministro de primeira classe somente em 2018 e que nunca havia sequer chefiado uma embaixada no exterior.
No entanto, Araújo trazia como credenciais a indicação do escritor conservador Olavo de Carvalho, a simpatia do deputado Eduardo Bolsonaro (filho do presidente, que desde a campanha eleitoral vinha procurando se afirmar como uma liderança internacional do neoconservadorismo) e o ativismo político pró-candidatura Bolsonaro exercido em seu blog pessoal, prática pouco usual em um diplomata.
Indicado em meio à primeira crise diplomática causada por declarações do então presidente eleito – com os países árabes, ao anunciar a intenção de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém –, o novo chanceler deixaria claro, de imediato, que estava disposto a traduzir as teses bolsonaristas no âmbito da política externa brasileira.
Guinada radical
O bolsonarismo é aqui entendido como um fenômeno político que transcende a própria figura de Bolsonaro. Caracteriza-se por uma visão de mundo ultraconservadora, que prega o retorno aos “valores tradicionais” e assume uma retórica nacionalista e “patriótica”, sendo profundamente crítica a tudo aquilo que esteja minimamente identificado com a esquerda e o progressismo.
Na última década, tal visão ganhou bastante força em várias partes do mundo, alimentando-se da crise da representação e da descrença generalizada na política e nos partidos tradicionais. No campo das relações internacionais, ela se identifica com o antiglobalismo de viés conservador e com as críticas ao multilateralismo, às organizações internacionais, ao multiculturalismo e à agenda liberal-progressista, que ganhou força a partir da década de 1990, com ênfase em questões como direitos humanos, igualdade de gênero e igualdade racial.
Araújo compartilhava esta visão de mundo em seu blog, antes de sua nomeação para o ministério, manifestando seu desejo de “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”, entendendo o globalismo “como a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”, sendo então um “sistema anti-humano e anti-cristão”.
Com este sentido de “missão”, em uma perspectiva bastante próxima da religiosa, sua chegada à chancelaria traz no bojo não só a tentativa de implementação de uma guinada radical e sem precedentes nas diretrizes e orientações da política externa brasileira, como também a de um projeto de reformulação da própria instituição MRE, que busca afirmar e impor uma nova visão de diplomacia, identificada com as teses da renovada extrema-direita mundial.
Sob este mesmo prisma, também cabe destacar a nomeação de Felipe Garcia Martins, outro pupilo de Olavo, para a assessoria internacional da Presidência da República. Esse jovem bacharel em Relações Internacionais transformou-se em um dos principais conselheiros do presidente e de seu filho Eduardo Bolsonaro (que assumiu a presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados), após se notabilizar nas redes sociais por seu ativismo ultraconservador, suas posições críticas ao globalismo e seu apoio a Donald Trump, Israel e aos governos direitistas de países como Hungria, Polônia e Itália.
Esta guinada de caráter marcadamente partidário vem sendo marcada por um alinhamento fortemente ideológico e sem precedentes com os Estados Unidos – mais até do que na gestão do chanceler Raul Fernandes durante o governo Dutra, nos anos iniciais da Guerra Fria. Assim, medidas como a escolha de um lado nos conflitos árabe-israelenses (pró-Israel) ou a ingerência nos assuntos internos de outros países (Venezuela) representam claramente quebras de princípios basilares da tradição diplomática brasileira.
Sinaliza-se também o rompimento com algumas das diretrizes centrais das últimas décadas, dentre as quais a busca da autonomia, a diversificação de parcerias estratégicas, o pragmatismo nas relações exteriores, a ênfase no multilateralismo, a defesa da reforma das organizações internacionais e a prioridade dada à integração regional.
A clara postura anti-China, um dos principais parceiros comerciais e econômicos do Brasil, do atual chanceler aparece como o exemplo mais bem acabado da partidarização (ou “ideologização”, para usar um termo caro a Araújo, em suas críticas à diplomacia dos anos Lula/Celso Amorim) da política exterior do Brasil, visto que não leva em conta os interesses de segmentos extremamente relevantes para a economia nacional.
Por outro lado, a tentativa de implementação de uma nova visão de diplomacia e de construção de uma nova hegemonia no Itamaraty vem se traduzindo em medidas como a reformulação do currículo do Instituto Rio Branco, com a extinção da disciplina História da América Latina e a criação de novas disciplinas voltadas para o estudo dos Clássicos, além da reformulação da ementa do curso de Política Internacional, com o objetivo declarado de afastar os futuros diplomatas de “amarras ideológicas eventualmente adquiridas em sua formação anterior”.
Neste mesmo contexto insere-se a exoneração de diplomatas experientes das chefias de departamentos e órgãos do ministério e a sua substituição por diplomatas “juniores” alinhados com as posições do ministro, além da eliminação de dissensões internas, como a do ex-diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI), Paulo Roberto de Almeida, um crítico de primeira hora da política dos governos petistas e de reconhecida independência intelectual.
Essas mudanças – ou tentativas de mudança – vêm provocando grandes tensões, não só internamente no MRE, mas na própria base de sustentação do governo, onde há uma clara divisão entre o bolsonarismo “ideológico” e aqueles que aderiram à candidatura e ao governo por questões pragmáticas ou pontuais.
A continuidade e a consolidação dessa política externa do bolsonarismo dependerão dos desdobramentos das disputas e embates que envolvem, por exemplo, setores como a oficialidade das Forças Armadas que ocupa postos relevantes no governo, incluindo o vice-presidente Hamilton Mourão, e que tem funcionado como um contraponto “moderado” aos arroubos voluntaristas e ideológicos de Araújo, como se viu no episódio da “intervenção humanitária” na Venezuela.
Deve-se levar em conta também a capacidade de resiliência institucional do MRE, onde há clara insatisfação de setores influentes da diplomacia com os rumos que a chancelaria brasileira vem tomando.
Assim, os próximos meses tendem a ser decisivos para as pretensões de Araújo e do núcleo duro do bolsonarismo ideológico em “reformar” a política externa brasileira. Talvez, neste sentido, deva ser entendida a fala do atual chanceler na aula magna do Instituto Rio Branco, em 11 de março último, quando defendendo uma política externa guiada pela fé cristã e citando Heidegger, afirmou que “só um Deus é capaz de nos salvar”.
* Adriano de Freixo é Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e organizador, com Rosana Pinheiro-Machado, de Brasil em Transe: Bolsonarismo, Nova Direita e Desdemocratização (Oficina Raquel, 2019)
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