Por William Nozaki, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
O ministro da Economia tem intensificado suas declarações reafirmando a centralidade do desmonte do Estado e das empresas estatais na agenda do atual governo. Depois de reafirmar em entrevista recente que “gostaria de vender tudo e reduzir a dívida”, Paulo Guedes insinuou que Bolsonaro já começava a ter “simpatia inicial” pela venda de empresas estratégicas como a Petrobras e sinalizou que estaria em curso um processo silencioso no qual “tem empresas que serão privatizadas que vocês nem imaginam”.
A ofensiva no discurso, entretanto, não necessariamente reflete os obstáculos reais que o governo vem enfrentando na prática para levar adiante sua reforma silenciosa do Estado e das empresas estatais.
A própria institucionalidade responsável pelo desmonte do Estado se mostra pouco clara. De um lado, há a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), vinculada à Secretaria de Governo, hoje comandada pelo general Santos Cruz. Criado ainda no governo Temer, o órgão é responsável pela gestão de vários projetos e modelos de vendas de ativos estatais, tais como arrendamento, autorização para novos investimentos, cessão onerosa, partilha, concessão comum, concessão de direito exploratório, subconcessão, desestatização, dissolução com liquidação de ativos, parceria público-privada, privatização. De outro lado, há também a Secretaria de Desestatização e Desinvestimentos, ligada ao Ministério da Economia, sob a batuta de Paulo Guedes; criado no governo Bolsonaro o órgão é responsável pela área de Coordenação e Governança das Empresas Estatais e pela área de Governança do Patrimônio da União. Na prática, entretanto, trata-se mais de um órgão de articulação do que de decisão, dado que a lista de ativos vendáveis precisa ser submetida ao Conselho do PPI e aos Conselhos de Administração das empresas estatais.
Com o argumento de melhorar a gestão e enxugar o Estado, a atual equipe econômica, contraditoriamente, criou fluxogramas sobrepostos e aumentou o organograma estatal em uma demonstração flagrante de desarticulação política e ineficiência de gestão. Nada disso, entretanto, diminui a centralidade da agenda de desmonte do Estado posta em curso, pelo contrário, o que o exemplo revela é que a ofensiva das privatizações seguirá aos solavancos, impondo novos e crescentes conflitos, daí a importância de se observar esse quadro com mais atenção, como se tenta nas linhas abaixo.
A privatização no governo Temer
O PPI foi iniciado em setembro de 2016 e se propôs a transferir para a iniciativa privada 175 ativos públicos em dez setores estratégicos totalizando R$ 287,5 bilhões. As áreas elencadas como prioritárias foram: ferrovias, rodovias, aeroportos, portos, geração hidrelétrica, distribuição de energia, transmissão de energia, mineração, óleo e gás e outros segmentos.
Ao final do governo Temer os resultados indicavam a condução de 91 processos de venda de ativos públicos nos dez segmentos prioritários elencados, mobilizando cerca de R$ 144,3 bi, o que significa que 52% dos projetos foram levados a cabo e 50,1% do valor estimado foi alcançado. As concessões foram responsáveis pela entrada de R$ 46,4 bi, enquanto as privatizações responderam por cerca de R$ 97,9 bi.
A combinação de muitos ativos e setores envolvidos mas com poucos projetos concluídos foi sintoma do descompasso entre a voracidade política e a ineficiência de gestão que acompanham o programa desde o seu nascedouro.
Do ponto de vista dos projetos concluídos, o processo de desestatizações se concentrou fundamentalmente no setor de petróleo e energia e se configurou não apenas como um processo de privatização, mas de desnacionalização, com destaque para a intensificação da entrada de players globais como Estados Unidos, China, Inglaterra, Alemanha, Noruega e Índia.
No que se refere aos projetos prorrogados, tratavam-se fundamentalmente de concessões ordinárias de ferrovias e portos. No primeiro caso, o atraso se deveu à morosidade do governo em levar adiante suas próprias propostas e, no segundo, os obstáculos passaram pelos cuidados provocados pelo escândalo dos portos envolvendo a figura de Michel Temer.
Nos projetos que permaneceram em andamento é que se concentrava o núcleo duro do PPI. Foram objeto de tentativa de transferência do público para o privado: cinco empresas públicas por desestatização; treze aeroportos, nove rodovias e cinco ferrovias por concessão; dezesseis atividades portuárias por arrendamento; cinco distribuidoras de energia por privatização; além da realização de cinco rodadas de cessões de direito exploratório sobre minérios e duas rodadas de leilões de áreas do pré-sal, além da indicação de privatização do Sistema Eletrobras e outras empresas como Casa da Moeda, Loteria Instantânea LOTEX e a Gestão de Rede de Comunicações do Comando da Aeronáutica (COMAER).
A privatização no governo Bolsonaro
O governo Bolsonaro tem tentado dar sequência a esse desmonte dos arranjos econômico-institucionais que viabilizaram a modernização econômica do país entre as décadas de 1930 e 1980 por meio da participação central das empresas estatais como articuladoras do investimento público e privado, nacional e internacional.
As justificativas mobilizadas para realizar as privatizações são tão arcaicas quanto contestáveis: a necessidade do ajuste fiscal, ganhos de eficiência na gestão, enfrentamento da influência da política e da corrupção no controle das empresas estatais.
Prova disso é que a equipe econômica de Paulo Guedes ampliou as frentes do desmonte, que devem operar por meio de: abertura de capitais, busca de parcerias, desinvestimentos, privatizações, incorporações, fusões, cisões, liquidações, concessões, planos de demissão voluntária (PDVs).
Como já se apontou, os objetivos de tais medidas são todos eles estritamente econômico-financeiros, quais sejam: evitar que empresas estatais se tornem dependentes do Tesouro Nacional; reduzir a dependência de subvenções nas empresas estatais dependentes do Tesouro Nacional; melhorar o desempenho operacional das empresas estatais federais, possibilitando a distribuição de dividendos para acionistas; e melhorar a gestão das empresas para que sejam capazes de financiar seus investimentos com recursos próprios, sem necessidade de aportes da União.
No entanto, vale destacar, das 134 empresas estatais federais, apenas 18 têm dependência direta do Tesouro, a maioria delas concentradas em áreas de pesquisa, implantação e gestão de projetos, como é o caso da EPL, da EPE e da Embrapa, setores em que projetos estratégicos, envolvendo alta tecnologia e alto risco simplesmente não seriam absorvidos pela iniciativa privada. Além disso, ao contrário do que se propaga, em 2018 as oito principais estatais federais registraram lucro líquido conjunto de R$ 74,3 bi, valor que representa crescimento de 132% em relação a 2017, o melhor resultado em oito anos. Tal desempenho propiciou o pagamento de R$ 7,7 bilhões em dividendos, 37% mais que no ano anterior. Os resultados mais expressivos foram da Petrobras, com lucro líquido de R$ 26,7 bi, seguido pelo Banco do Brasil com R$ 15,1 bi, pela Eletrobras com R$ 13,3 bi e pela Caixa com R$ 10,4 bi (os dados são do Boletim das Empresas Estatais Federais).
A despeito dos bons resultados, o governo estabeleceu como diretrizes e prioridades nessa área:
– A coordenação da implementação do Decreto nº 9.188/2017, que trata do regime especial de desinvestimento de sociedades de economia mista, tendo como horizonte a desconstrução da ideia de empresa pública integrada e a construção, no seu lugar, da ideia de empresas concentradas estritamente em seu “core business”. O impacto se mostra, por exemplo, na redução do quadro de pessoal das estatais: em 2018 houve uma redução de 13.434 postos de trabalho. Trata-se de adotar um padrão privado e financeirizado de governança corporativa em detrimento de um modelo estratégico e orientado para investimentos.
– A análise da viabilidade de privatização das distribuidoras de energia da Eletrobras, utilizando como justificativa central a necessidade de aumentar a distribuição de dividendos para os acionistas privados e a minimização dos aportes da União nesse setor.
– A coordenação da implementação do Decreto nº 9.355/2018, que estabelece regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos pela Petrobras, com o argumento de que as grandes empresas estatais estariam excessivamente expostas à corrupção provocada por agentes políticos.
– A redução da alavancagem financeira e do espectro dos planos de investimentos tanto da Eletrobras quanto da Petrobras, não por acaso as duas maiores empresas produtivas estatais do país.
– A apresentação de subsídios para fundamentar a defesa da União no âmbito da Adin nº 5.624/DF, que restringiu as hipóteses de as empresas estatais promoverem venda de ativos de forma mais acelerada.
– O fortalecimento da Comissão Interministerial de Governança e de Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), instituída pelo Decreto nº 6.021/2007 e que tem por finalidade tratar de matérias relacionadas com a governança corporativa nas empresas estatais federais e da administração de participações societárias da União, sob o comando de Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni.
– Por fim, aceleração do processo de liquidação da Companhia Docas do Maranhão (Codomar) e da Alcantara Cyclone Space (ACS); criação do Grupo de Trabalho dos Correios, para análise das possibilidades de realização de plano de demissão voluntária, redefinição dos valores das tarifas e dos critérios de atendimento, remodelagem e enxugamento da rede de agências e realização de parceria com a Azul Linhas Aéreas; e implementação do processo de reorganização da Infraero, incluindo a venda de participações em aeroportos.
As metas e objetivos elencados, como se pode observar, são bastante ousados e conformam, em última instância, mais do que uma reforma da administração pública indireta. Trata-se de uma espécie de refundação do Estado brasileiro em bases ultraliberais.
O estágio atual das privatizações: o que já foi realizado no governo Bolsonaro
O atual governo tem ampliado a lista de ativos privatizáveis e acentuado o discurso ideológico em defesa das privatizações. No entanto, não tem conseguido levar adiante essas vendas, grande parte dos principais projetos listados no PPI tem status em atraso por motivos variados, como se verá adiante. Para compensar o governo acelera o calendário das concessões de aeroportos, portos e ferrovias.
O último leilão para concessão de aeroportos gerou uma arrecadação de R$ 2,377 bilhões, superando as expectativas do governo em R$ 2,158 bilhões.
Dadas as condições favoráveis ao capital privado, o leilão também foi marcado pela forte disputa e pelo forte interesse de investidores estrangeiros. Com esse processo, o número de aeroportos geridos pela iniciativa privada subiu de 10 para 22. Atualmente, sete operadoras internacionais atuam no país. A espanhola Aena venceu o disputado leilão pelo principal bloco de aeroportos. Com oferta de outorga de R$ 1,9 bilhão, o consórcio vai administrar os aeroportos do bloco Nordeste, considerado o mais cobiçado desse certame. O que pouco se destacou, entretanto, é que se trata de uma empresa estatal, para espanto dos adeptos do ultraliberalismo.
Além disso, o governo federal arrecadou R$ 219,5 milhões com a concessão de quatro terminais portuários, três deles no Porto de Cabedelo (PB) e um no Porto de Vitória (ES). Dois consórcios formados pelas mesmas empresas – Ipiranga, Petrobras Distribuidora e Raízen – arremataram todos os portos. As áreas serão utilizadas para movimentação e armazenagem de combustível.
O consórcio Nordeste ficou com as três áreas na Paraíba por um lance de R$ 54,52 milhões, enquanto o consórcio Navegantes arrematou a área no porto de Vitória, com lance de R$ 165 milhões. A concessão valerá por 25 anos e pode ser renovada por setenta anos.
Por fim, considerando as principais iniciativas do governo nesses quatro primeiros meses, a operadora logística Rumo arrematou a concessão de um trecho da ferrovia Norte-Sul, após ter oferecido pagar R$ 2,719 bilhões. A companhia, que tem como principal sócia o grupo de energia Cosan, bateu sua única concorrente no certame, a VLI, operadora logística da Vale, da Mitsui e da Brookfield, que ofertou pagar R$ 2,065 bilhões. A Rumo terá direito de operar o trecho da ferrovia, importante no transporte de commodities agrícolas e combustíveis, por trinta anos. Com o leilão, o investimento previsto no empreendimento pelo novo concessionário é de R$ 2,7 bilhões.
Os certames foram, via de regra, iniciados com valores iniciais de outorga subestimados pelo governo. Por exemplo, no caso do setor aéreo, os doze aeroportos foram ofertados por apenas R$ 219 milhões. Já no caso dos portos o valor mínimo de outorga foi estabelecido com o preço simbólico de R$ 1,00 (um!), donde o suposto sucesso nos ágios dos leilões.
O estágio atual das privatizações: o que segue em atraso no governo Bolsonaro
O avanço nas concessões, entretanto, não tem sido acompanhado na mesma intensidade pelas outras modalidades de privatização e o governo encontra dificuldades políticas e de gestão para alcançar suas metas. Não há consenso entre a equipe ministerial sobre o escopo e sobre a velocidade do PPI e pelo menos cinco ministros parecem demonstrar resistência aos planos do ministro da Economia.
Na área de Minas e Energia (MME), a venda da Eletrobras se encontra diante de um impasse: enquanto o ministro Bento Albuquerque deseja um novo modelo de capitalização para a empresa, que pode ser anunciado em junho, Paulo Guedes manifesta o interesse na privatização dos ativos da empresa elétrica. Ao que tudo indica, a queda de braços passa por uma outra agenda cara ao Almirante que dirige o MME, os encaminhamentos com relação à Eletronuclear e ao programa nuclear brasileiro, cuja reativação foi estabelecida como prioridade, mas carece de investimentos.
No setor de Infraestrutura, por sua vez, apesar do avanço das concessões, o ministro Tarcísio Gomes de Freitas sinalizou o bloqueio da venda da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), e, na contramão das diretrizes da antiga Fazenda iniciou um processo de recomposição de vagas e de contratação de pessoal. A Empresa de Planejamento Energético (EPE) que também já esteve próxima da extinção deixou de figurar na lista de ativos privatizáveis no próximo período.
No Ministério de Ciência, Tecnologia e Comunicações as resistências têm sido ainda maiores. O ministro Marcos Pontes se mostra contrário à venda dos Correios e à liquidação da Ceitec, empresa responsável pela produção de medicamentos e chips de monitoramento de animais. Nesse último caso as pressões contrárias às privatizações também contam com o apoio do agronegócio e do Ministério da Agricultura, onde a ministra Tereza Cristina tem feito ponderações sobre a necessidade de alienação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável, dentre outras coisas, pelas estatísticas agropecuárias do país. A esse caldo se soma ainda as posições do ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, que se demonstrou refratário à venda da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Os impasses políticos não se encontram apenas no interior do Executivo. Uma liminar do STF emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski iniciou um processo de consultas públicas sobre qual deve ser o papel do Legislativo no processo de privatizações, o que abriu uma fresta jurídica para o travamento da venda de alguns ativos estatais. O próprio Legislativo e parte da base próxima ao governo aguarda desdobramentos da articulação política em torno da reforma da Previdência para avaliar a intensidade do apoio parlamentar a algumas privatizações. A esses elementos se somam ainda entraves técnicos e de gestão junto a órgãos como o TCU e o Cade.
O mais recente pacote de privatizações sinaliza para a venda de oito refinarias, para uma nova abertura de capitais da BR Distribuidora e para a consolidação da venda da TAG, Transportadora Associada de Gás.
Como se pode notar, o processo de privatizações que já havia sido levado a cabo com dificuldades no governo Temer segue enfrentando solavancos no governo Bolsonaro, dada a falta de coesão e consenso entre os distintos grupos que compõe o governo. À luz desse quadro, portanto, a recente intensificação das declarações de Paulo Guedes sobre as desestatizações talvez traduza não apenas uma saudação ideológica às privatizações, mas também uma preocupação pragmática em acalmar o mercado diante de um cenário onde as entregas daquilo que se prometeu podem não acontecer com a desenvoltura esperada. Uma vez mais, no governo Bolsonaro há que se observar com atenção a distância entre “as palavras e as coisas”, não porque tais impasses possam bloquear a agenda das privatizações, mas porque as dificuldades podem abrir flancos de resistência política, jurídica e operacional para que as forças que defendem o Estado brasileiro possam ganhar algum tempo na recomposição de seus mecanismos de resistência em favor dos bens públicos do país.
* William Nozaki éprofessor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep-FUP).
A ofensiva no discurso, entretanto, não necessariamente reflete os obstáculos reais que o governo vem enfrentando na prática para levar adiante sua reforma silenciosa do Estado e das empresas estatais.
A própria institucionalidade responsável pelo desmonte do Estado se mostra pouco clara. De um lado, há a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), vinculada à Secretaria de Governo, hoje comandada pelo general Santos Cruz. Criado ainda no governo Temer, o órgão é responsável pela gestão de vários projetos e modelos de vendas de ativos estatais, tais como arrendamento, autorização para novos investimentos, cessão onerosa, partilha, concessão comum, concessão de direito exploratório, subconcessão, desestatização, dissolução com liquidação de ativos, parceria público-privada, privatização. De outro lado, há também a Secretaria de Desestatização e Desinvestimentos, ligada ao Ministério da Economia, sob a batuta de Paulo Guedes; criado no governo Bolsonaro o órgão é responsável pela área de Coordenação e Governança das Empresas Estatais e pela área de Governança do Patrimônio da União. Na prática, entretanto, trata-se mais de um órgão de articulação do que de decisão, dado que a lista de ativos vendáveis precisa ser submetida ao Conselho do PPI e aos Conselhos de Administração das empresas estatais.
Com o argumento de melhorar a gestão e enxugar o Estado, a atual equipe econômica, contraditoriamente, criou fluxogramas sobrepostos e aumentou o organograma estatal em uma demonstração flagrante de desarticulação política e ineficiência de gestão. Nada disso, entretanto, diminui a centralidade da agenda de desmonte do Estado posta em curso, pelo contrário, o que o exemplo revela é que a ofensiva das privatizações seguirá aos solavancos, impondo novos e crescentes conflitos, daí a importância de se observar esse quadro com mais atenção, como se tenta nas linhas abaixo.
A privatização no governo Temer
O PPI foi iniciado em setembro de 2016 e se propôs a transferir para a iniciativa privada 175 ativos públicos em dez setores estratégicos totalizando R$ 287,5 bilhões. As áreas elencadas como prioritárias foram: ferrovias, rodovias, aeroportos, portos, geração hidrelétrica, distribuição de energia, transmissão de energia, mineração, óleo e gás e outros segmentos.
Ao final do governo Temer os resultados indicavam a condução de 91 processos de venda de ativos públicos nos dez segmentos prioritários elencados, mobilizando cerca de R$ 144,3 bi, o que significa que 52% dos projetos foram levados a cabo e 50,1% do valor estimado foi alcançado. As concessões foram responsáveis pela entrada de R$ 46,4 bi, enquanto as privatizações responderam por cerca de R$ 97,9 bi.
A combinação de muitos ativos e setores envolvidos mas com poucos projetos concluídos foi sintoma do descompasso entre a voracidade política e a ineficiência de gestão que acompanham o programa desde o seu nascedouro.
Do ponto de vista dos projetos concluídos, o processo de desestatizações se concentrou fundamentalmente no setor de petróleo e energia e se configurou não apenas como um processo de privatização, mas de desnacionalização, com destaque para a intensificação da entrada de players globais como Estados Unidos, China, Inglaterra, Alemanha, Noruega e Índia.
No que se refere aos projetos prorrogados, tratavam-se fundamentalmente de concessões ordinárias de ferrovias e portos. No primeiro caso, o atraso se deveu à morosidade do governo em levar adiante suas próprias propostas e, no segundo, os obstáculos passaram pelos cuidados provocados pelo escândalo dos portos envolvendo a figura de Michel Temer.
Nos projetos que permaneceram em andamento é que se concentrava o núcleo duro do PPI. Foram objeto de tentativa de transferência do público para o privado: cinco empresas públicas por desestatização; treze aeroportos, nove rodovias e cinco ferrovias por concessão; dezesseis atividades portuárias por arrendamento; cinco distribuidoras de energia por privatização; além da realização de cinco rodadas de cessões de direito exploratório sobre minérios e duas rodadas de leilões de áreas do pré-sal, além da indicação de privatização do Sistema Eletrobras e outras empresas como Casa da Moeda, Loteria Instantânea LOTEX e a Gestão de Rede de Comunicações do Comando da Aeronáutica (COMAER).
A privatização no governo Bolsonaro
O governo Bolsonaro tem tentado dar sequência a esse desmonte dos arranjos econômico-institucionais que viabilizaram a modernização econômica do país entre as décadas de 1930 e 1980 por meio da participação central das empresas estatais como articuladoras do investimento público e privado, nacional e internacional.
As justificativas mobilizadas para realizar as privatizações são tão arcaicas quanto contestáveis: a necessidade do ajuste fiscal, ganhos de eficiência na gestão, enfrentamento da influência da política e da corrupção no controle das empresas estatais.
Prova disso é que a equipe econômica de Paulo Guedes ampliou as frentes do desmonte, que devem operar por meio de: abertura de capitais, busca de parcerias, desinvestimentos, privatizações, incorporações, fusões, cisões, liquidações, concessões, planos de demissão voluntária (PDVs).
Como já se apontou, os objetivos de tais medidas são todos eles estritamente econômico-financeiros, quais sejam: evitar que empresas estatais se tornem dependentes do Tesouro Nacional; reduzir a dependência de subvenções nas empresas estatais dependentes do Tesouro Nacional; melhorar o desempenho operacional das empresas estatais federais, possibilitando a distribuição de dividendos para acionistas; e melhorar a gestão das empresas para que sejam capazes de financiar seus investimentos com recursos próprios, sem necessidade de aportes da União.
No entanto, vale destacar, das 134 empresas estatais federais, apenas 18 têm dependência direta do Tesouro, a maioria delas concentradas em áreas de pesquisa, implantação e gestão de projetos, como é o caso da EPL, da EPE e da Embrapa, setores em que projetos estratégicos, envolvendo alta tecnologia e alto risco simplesmente não seriam absorvidos pela iniciativa privada. Além disso, ao contrário do que se propaga, em 2018 as oito principais estatais federais registraram lucro líquido conjunto de R$ 74,3 bi, valor que representa crescimento de 132% em relação a 2017, o melhor resultado em oito anos. Tal desempenho propiciou o pagamento de R$ 7,7 bilhões em dividendos, 37% mais que no ano anterior. Os resultados mais expressivos foram da Petrobras, com lucro líquido de R$ 26,7 bi, seguido pelo Banco do Brasil com R$ 15,1 bi, pela Eletrobras com R$ 13,3 bi e pela Caixa com R$ 10,4 bi (os dados são do Boletim das Empresas Estatais Federais).
A despeito dos bons resultados, o governo estabeleceu como diretrizes e prioridades nessa área:
– A coordenação da implementação do Decreto nº 9.188/2017, que trata do regime especial de desinvestimento de sociedades de economia mista, tendo como horizonte a desconstrução da ideia de empresa pública integrada e a construção, no seu lugar, da ideia de empresas concentradas estritamente em seu “core business”. O impacto se mostra, por exemplo, na redução do quadro de pessoal das estatais: em 2018 houve uma redução de 13.434 postos de trabalho. Trata-se de adotar um padrão privado e financeirizado de governança corporativa em detrimento de um modelo estratégico e orientado para investimentos.
– A análise da viabilidade de privatização das distribuidoras de energia da Eletrobras, utilizando como justificativa central a necessidade de aumentar a distribuição de dividendos para os acionistas privados e a minimização dos aportes da União nesse setor.
– A coordenação da implementação do Decreto nº 9.355/2018, que estabelece regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a cessão de direitos de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos pela Petrobras, com o argumento de que as grandes empresas estatais estariam excessivamente expostas à corrupção provocada por agentes políticos.
– A redução da alavancagem financeira e do espectro dos planos de investimentos tanto da Eletrobras quanto da Petrobras, não por acaso as duas maiores empresas produtivas estatais do país.
– A apresentação de subsídios para fundamentar a defesa da União no âmbito da Adin nº 5.624/DF, que restringiu as hipóteses de as empresas estatais promoverem venda de ativos de forma mais acelerada.
– O fortalecimento da Comissão Interministerial de Governança e de Administração de Participações Societárias da União (CGPAR), instituída pelo Decreto nº 6.021/2007 e que tem por finalidade tratar de matérias relacionadas com a governança corporativa nas empresas estatais federais e da administração de participações societárias da União, sob o comando de Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni.
– Por fim, aceleração do processo de liquidação da Companhia Docas do Maranhão (Codomar) e da Alcantara Cyclone Space (ACS); criação do Grupo de Trabalho dos Correios, para análise das possibilidades de realização de plano de demissão voluntária, redefinição dos valores das tarifas e dos critérios de atendimento, remodelagem e enxugamento da rede de agências e realização de parceria com a Azul Linhas Aéreas; e implementação do processo de reorganização da Infraero, incluindo a venda de participações em aeroportos.
As metas e objetivos elencados, como se pode observar, são bastante ousados e conformam, em última instância, mais do que uma reforma da administração pública indireta. Trata-se de uma espécie de refundação do Estado brasileiro em bases ultraliberais.
O estágio atual das privatizações: o que já foi realizado no governo Bolsonaro
O atual governo tem ampliado a lista de ativos privatizáveis e acentuado o discurso ideológico em defesa das privatizações. No entanto, não tem conseguido levar adiante essas vendas, grande parte dos principais projetos listados no PPI tem status em atraso por motivos variados, como se verá adiante. Para compensar o governo acelera o calendário das concessões de aeroportos, portos e ferrovias.
O último leilão para concessão de aeroportos gerou uma arrecadação de R$ 2,377 bilhões, superando as expectativas do governo em R$ 2,158 bilhões.
Dadas as condições favoráveis ao capital privado, o leilão também foi marcado pela forte disputa e pelo forte interesse de investidores estrangeiros. Com esse processo, o número de aeroportos geridos pela iniciativa privada subiu de 10 para 22. Atualmente, sete operadoras internacionais atuam no país. A espanhola Aena venceu o disputado leilão pelo principal bloco de aeroportos. Com oferta de outorga de R$ 1,9 bilhão, o consórcio vai administrar os aeroportos do bloco Nordeste, considerado o mais cobiçado desse certame. O que pouco se destacou, entretanto, é que se trata de uma empresa estatal, para espanto dos adeptos do ultraliberalismo.
Além disso, o governo federal arrecadou R$ 219,5 milhões com a concessão de quatro terminais portuários, três deles no Porto de Cabedelo (PB) e um no Porto de Vitória (ES). Dois consórcios formados pelas mesmas empresas – Ipiranga, Petrobras Distribuidora e Raízen – arremataram todos os portos. As áreas serão utilizadas para movimentação e armazenagem de combustível.
O consórcio Nordeste ficou com as três áreas na Paraíba por um lance de R$ 54,52 milhões, enquanto o consórcio Navegantes arrematou a área no porto de Vitória, com lance de R$ 165 milhões. A concessão valerá por 25 anos e pode ser renovada por setenta anos.
Por fim, considerando as principais iniciativas do governo nesses quatro primeiros meses, a operadora logística Rumo arrematou a concessão de um trecho da ferrovia Norte-Sul, após ter oferecido pagar R$ 2,719 bilhões. A companhia, que tem como principal sócia o grupo de energia Cosan, bateu sua única concorrente no certame, a VLI, operadora logística da Vale, da Mitsui e da Brookfield, que ofertou pagar R$ 2,065 bilhões. A Rumo terá direito de operar o trecho da ferrovia, importante no transporte de commodities agrícolas e combustíveis, por trinta anos. Com o leilão, o investimento previsto no empreendimento pelo novo concessionário é de R$ 2,7 bilhões.
Os certames foram, via de regra, iniciados com valores iniciais de outorga subestimados pelo governo. Por exemplo, no caso do setor aéreo, os doze aeroportos foram ofertados por apenas R$ 219 milhões. Já no caso dos portos o valor mínimo de outorga foi estabelecido com o preço simbólico de R$ 1,00 (um!), donde o suposto sucesso nos ágios dos leilões.
O estágio atual das privatizações: o que segue em atraso no governo Bolsonaro
O avanço nas concessões, entretanto, não tem sido acompanhado na mesma intensidade pelas outras modalidades de privatização e o governo encontra dificuldades políticas e de gestão para alcançar suas metas. Não há consenso entre a equipe ministerial sobre o escopo e sobre a velocidade do PPI e pelo menos cinco ministros parecem demonstrar resistência aos planos do ministro da Economia.
Na área de Minas e Energia (MME), a venda da Eletrobras se encontra diante de um impasse: enquanto o ministro Bento Albuquerque deseja um novo modelo de capitalização para a empresa, que pode ser anunciado em junho, Paulo Guedes manifesta o interesse na privatização dos ativos da empresa elétrica. Ao que tudo indica, a queda de braços passa por uma outra agenda cara ao Almirante que dirige o MME, os encaminhamentos com relação à Eletronuclear e ao programa nuclear brasileiro, cuja reativação foi estabelecida como prioridade, mas carece de investimentos.
No setor de Infraestrutura, por sua vez, apesar do avanço das concessões, o ministro Tarcísio Gomes de Freitas sinalizou o bloqueio da venda da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), e, na contramão das diretrizes da antiga Fazenda iniciou um processo de recomposição de vagas e de contratação de pessoal. A Empresa de Planejamento Energético (EPE) que também já esteve próxima da extinção deixou de figurar na lista de ativos privatizáveis no próximo período.
No Ministério de Ciência, Tecnologia e Comunicações as resistências têm sido ainda maiores. O ministro Marcos Pontes se mostra contrário à venda dos Correios e à liquidação da Ceitec, empresa responsável pela produção de medicamentos e chips de monitoramento de animais. Nesse último caso as pressões contrárias às privatizações também contam com o apoio do agronegócio e do Ministério da Agricultura, onde a ministra Tereza Cristina tem feito ponderações sobre a necessidade de alienação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), responsável, dentre outras coisas, pelas estatísticas agropecuárias do país. A esse caldo se soma ainda as posições do ministro da Secretaria de Governo, general Santos Cruz, que se demonstrou refratário à venda da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Os impasses políticos não se encontram apenas no interior do Executivo. Uma liminar do STF emitida pelo ministro Ricardo Lewandowski iniciou um processo de consultas públicas sobre qual deve ser o papel do Legislativo no processo de privatizações, o que abriu uma fresta jurídica para o travamento da venda de alguns ativos estatais. O próprio Legislativo e parte da base próxima ao governo aguarda desdobramentos da articulação política em torno da reforma da Previdência para avaliar a intensidade do apoio parlamentar a algumas privatizações. A esses elementos se somam ainda entraves técnicos e de gestão junto a órgãos como o TCU e o Cade.
O mais recente pacote de privatizações sinaliza para a venda de oito refinarias, para uma nova abertura de capitais da BR Distribuidora e para a consolidação da venda da TAG, Transportadora Associada de Gás.
Como se pode notar, o processo de privatizações que já havia sido levado a cabo com dificuldades no governo Temer segue enfrentando solavancos no governo Bolsonaro, dada a falta de coesão e consenso entre os distintos grupos que compõe o governo. À luz desse quadro, portanto, a recente intensificação das declarações de Paulo Guedes sobre as desestatizações talvez traduza não apenas uma saudação ideológica às privatizações, mas também uma preocupação pragmática em acalmar o mercado diante de um cenário onde as entregas daquilo que se prometeu podem não acontecer com a desenvoltura esperada. Uma vez mais, no governo Bolsonaro há que se observar com atenção a distância entre “as palavras e as coisas”, não porque tais impasses possam bloquear a agenda das privatizações, mas porque as dificuldades podem abrir flancos de resistência política, jurídica e operacional para que as forças que defendem o Estado brasileiro possam ganhar algum tempo na recomposição de seus mecanismos de resistência em favor dos bens públicos do país.
* William Nozaki éprofessor de Ciência Política e Economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep-FUP).
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