Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
O filme Vingadores: Ultimato[e1] , ocupa a maioria das salas de cinema no Brasil. A invasão de Capitão América, Thor, Homem de Ferro, Hulk e outras criações da Marvel já rendeu uma das maiores bilheterias da história. Despertou também a necessidade de voltar a discutir a cota de tela para filmes brasileiros, como estratégia de afirmação cultural e de preservação da diversidade. Além disso, o filme evidencia um rebaixamento de expectativa intelectual do nosso tempo. Assim como a filosofia e sociologia, filme-cabeça não remunera o investimento. São temas muito atuais.
A política no Brasil imita a arte. O presidente Bolsonaro cabe bem no figurino do vingador clássico, que paga com o mal, o mal que real ou imaginário um dia recebeu. Como foi expulso do Exército, vinga-se da instituição com um comportamento ambíguo. Cerca-se de oficiais mais graduados que ele, para mostrar poder, e solta a boca suja de Olavo de Carvalho para disparar imbecilidades contra colegas de farda. Sutilmente, solta piscadelas de aprovação nas redes sociais. Como é próprio do sentimento de vingança, em sua cegueira ressentida, ele escolhe o que de pior existe na instituição – o autoritarismo atávico – para afirmar a visão do mundo militar que defende.
O presidente também se vinga do meio ambiente, escolhendo um ministro inepto, criticando a legislação e atacando os órgãos de fiscalização e controle de sua própria administração. Tudo por causa de uma multa que recebeu por pescar numa região controlada por regras claras. Foi atrás do funcionário, mudou o status da região para permitir sua exploração comercial e turística e, para não deixar dúvida, atacou a própria instituição pública responsável pelo meio ambiente no Brasil.
Fez o mesmo com multas de trânsito, depois de ter divulgada a imensa lista de infrações pessoais e familiares, ampliando o número de pontos necessários para punições mais severas. Irresponsavelmente, culpa a regra pelo abuso, o fiscal pela multa, a lei pelo crime. Mesmo que isso se dê à custa do inevitável aumento de violência nas ruas e estradas. A vingança tem um componente cumulativo e persecutório. Não basta fazer mal a quem lhe causou sofrimento, é preciso que as condições sejam alteradas de forma definitiva.
Para um homem que carece de formação intelectual e que não foi dotado pela natureza de inteligência destacada, não há maior inimigo que pessoas ilustradas, artistas criativos e detentores de conhecimento. O ataque que tem dirigido à educação está na origem dessa desvantagem pessoal, sentida como humilhação. É preciso perseguir os artistas e intelectuais, atacar as escolas e universidades, punir criadores, incentivar modelos verticais de ensino, erradicar a pesquisa e mirar o tiro no coração do saber humanístico.
O vingador não sossega. Como foi sempre considerado um parlamentar sem brilho, que em quase 30 anos de política foi incapaz de apresentar um único projeto significativo, derrama seu desprezo em relação ao legislativo e com os partidos. Populista, denega a política em nome de um pretenso contato direto com a sociedade, rebaixando os padrões de convivência e debate democrático. Mesmo que isso signifique dificuldades para os projetos de seu próprio governo. O resultado tem sido ver crescer nulidades no parlamento. Pária do baixo clero, o presidente universaliza a "baixoclerização".
Pode-se ainda imaginar que a vingança tenha também alcançado dimensões psíquicas de uma pessoa com explícitas dificuldades em conviver com comportamentos libertários, esteticamente contestadores e sexualmente diversificados. A homofobia, segundo a psicanálise, é resultado muitas vezes de uma resistência à aceitação de matizes do próprio desejo, transformando em ódio o que tem nuances de atração. Para evitar o diálogo com o próprio inconsciente, o melhor é quebrar o espelho. A vingança aqui, além do comportamento sexual, desliza para tudo que oferece proximidade com a crítica a valores conservadores, como gênero, estética e religião.
No entanto o setor no qual a sanha vingativa é mais perigosa e capaz de introduzir danos sérios no tecido social é exatamente o campo da justiça. Vingança é o contrário de justiça. É a forma mais imediata de romper o pacto de civilização, propondo um ambiente de ódio e de violência operacional. Morte contra a vida. A diferença entre os dois extremos – a justiça e a vingança – é exatamente a separação entre a ordem e a barbárie. A opção parece já ter sido feita.
A liberação da posse de armas, seguida da ampliação do porte para muitas categorias profissionais e da autorização para que crianças sejam educadas para as armas (enquanto as verbas para educação são cortadas) estabelecem um padrão. Vale, a partir de agora, a retirada do Estado do controle da segurança para a entrega e responsabilização do indivíduo por sua vida e patrimônio. O armamentismo liberal se complementa com o deslocamento das políticas de segurança para táticas de guerra e extermínio autorizado. E de incorporação das milícias como poder paralelo extraoficial.
Não é desprezível a manifestação do ministro da Justiça, Sergio Moro, que afirmou que o decreto que autoriza a posse e o uso de armas não é questão de segurança pública, mas de mero cumprimento de promessa de campanha, como se essa origem eleitoral esvaziasse seu efeito desagregador na vida social. Foi igualmente cínico em relação à extensão da legítima defesa da vida para legítima defesa da propriedade, sobretudo no campo. Ao tirar o corpo fora de uma área sob sua responsabilidade direta, o ex-juiz se firma como o primeiro fiador de uma política pública de vingança. Moro é, hoje, Ministro de Estado da Vingança.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) talvez tivesse razão quando afirmava que o desejo de vingança está na origem do sentimento humano por justiça. E é exatamente porque precisa se tonar humano que aquele sentimento se aprimora, para permitir que o melhor do homem apareça, em meio a suas muitas contradições. O caminho da civilização não se dá em linha reta e progressiva, é passível de retrocessos. Achincalhar a justiça e a fraternidade em direção à vingança e ao ódio é uma capitulação perigosa. Mas o que interessa o que pensam filósofos, sociólogos e psicanalistas? Mais vale ir ao cinema, sonhar com o Capitão América e acordar com uma pistola em cada mão.
O filme Vingadores: Ultimato[e1] , ocupa a maioria das salas de cinema no Brasil. A invasão de Capitão América, Thor, Homem de Ferro, Hulk e outras criações da Marvel já rendeu uma das maiores bilheterias da história. Despertou também a necessidade de voltar a discutir a cota de tela para filmes brasileiros, como estratégia de afirmação cultural e de preservação da diversidade. Além disso, o filme evidencia um rebaixamento de expectativa intelectual do nosso tempo. Assim como a filosofia e sociologia, filme-cabeça não remunera o investimento. São temas muito atuais.
A política no Brasil imita a arte. O presidente Bolsonaro cabe bem no figurino do vingador clássico, que paga com o mal, o mal que real ou imaginário um dia recebeu. Como foi expulso do Exército, vinga-se da instituição com um comportamento ambíguo. Cerca-se de oficiais mais graduados que ele, para mostrar poder, e solta a boca suja de Olavo de Carvalho para disparar imbecilidades contra colegas de farda. Sutilmente, solta piscadelas de aprovação nas redes sociais. Como é próprio do sentimento de vingança, em sua cegueira ressentida, ele escolhe o que de pior existe na instituição – o autoritarismo atávico – para afirmar a visão do mundo militar que defende.
O presidente também se vinga do meio ambiente, escolhendo um ministro inepto, criticando a legislação e atacando os órgãos de fiscalização e controle de sua própria administração. Tudo por causa de uma multa que recebeu por pescar numa região controlada por regras claras. Foi atrás do funcionário, mudou o status da região para permitir sua exploração comercial e turística e, para não deixar dúvida, atacou a própria instituição pública responsável pelo meio ambiente no Brasil.
Fez o mesmo com multas de trânsito, depois de ter divulgada a imensa lista de infrações pessoais e familiares, ampliando o número de pontos necessários para punições mais severas. Irresponsavelmente, culpa a regra pelo abuso, o fiscal pela multa, a lei pelo crime. Mesmo que isso se dê à custa do inevitável aumento de violência nas ruas e estradas. A vingança tem um componente cumulativo e persecutório. Não basta fazer mal a quem lhe causou sofrimento, é preciso que as condições sejam alteradas de forma definitiva.
Para um homem que carece de formação intelectual e que não foi dotado pela natureza de inteligência destacada, não há maior inimigo que pessoas ilustradas, artistas criativos e detentores de conhecimento. O ataque que tem dirigido à educação está na origem dessa desvantagem pessoal, sentida como humilhação. É preciso perseguir os artistas e intelectuais, atacar as escolas e universidades, punir criadores, incentivar modelos verticais de ensino, erradicar a pesquisa e mirar o tiro no coração do saber humanístico.
O vingador não sossega. Como foi sempre considerado um parlamentar sem brilho, que em quase 30 anos de política foi incapaz de apresentar um único projeto significativo, derrama seu desprezo em relação ao legislativo e com os partidos. Populista, denega a política em nome de um pretenso contato direto com a sociedade, rebaixando os padrões de convivência e debate democrático. Mesmo que isso signifique dificuldades para os projetos de seu próprio governo. O resultado tem sido ver crescer nulidades no parlamento. Pária do baixo clero, o presidente universaliza a "baixoclerização".
Pode-se ainda imaginar que a vingança tenha também alcançado dimensões psíquicas de uma pessoa com explícitas dificuldades em conviver com comportamentos libertários, esteticamente contestadores e sexualmente diversificados. A homofobia, segundo a psicanálise, é resultado muitas vezes de uma resistência à aceitação de matizes do próprio desejo, transformando em ódio o que tem nuances de atração. Para evitar o diálogo com o próprio inconsciente, o melhor é quebrar o espelho. A vingança aqui, além do comportamento sexual, desliza para tudo que oferece proximidade com a crítica a valores conservadores, como gênero, estética e religião.
No entanto o setor no qual a sanha vingativa é mais perigosa e capaz de introduzir danos sérios no tecido social é exatamente o campo da justiça. Vingança é o contrário de justiça. É a forma mais imediata de romper o pacto de civilização, propondo um ambiente de ódio e de violência operacional. Morte contra a vida. A diferença entre os dois extremos – a justiça e a vingança – é exatamente a separação entre a ordem e a barbárie. A opção parece já ter sido feita.
A liberação da posse de armas, seguida da ampliação do porte para muitas categorias profissionais e da autorização para que crianças sejam educadas para as armas (enquanto as verbas para educação são cortadas) estabelecem um padrão. Vale, a partir de agora, a retirada do Estado do controle da segurança para a entrega e responsabilização do indivíduo por sua vida e patrimônio. O armamentismo liberal se complementa com o deslocamento das políticas de segurança para táticas de guerra e extermínio autorizado. E de incorporação das milícias como poder paralelo extraoficial.
Não é desprezível a manifestação do ministro da Justiça, Sergio Moro, que afirmou que o decreto que autoriza a posse e o uso de armas não é questão de segurança pública, mas de mero cumprimento de promessa de campanha, como se essa origem eleitoral esvaziasse seu efeito desagregador na vida social. Foi igualmente cínico em relação à extensão da legítima defesa da vida para legítima defesa da propriedade, sobretudo no campo. Ao tirar o corpo fora de uma área sob sua responsabilidade direta, o ex-juiz se firma como o primeiro fiador de uma política pública de vingança. Moro é, hoje, Ministro de Estado da Vingança.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) talvez tivesse razão quando afirmava que o desejo de vingança está na origem do sentimento humano por justiça. E é exatamente porque precisa se tonar humano que aquele sentimento se aprimora, para permitir que o melhor do homem apareça, em meio a suas muitas contradições. O caminho da civilização não se dá em linha reta e progressiva, é passível de retrocessos. Achincalhar a justiça e a fraternidade em direção à vingança e ao ódio é uma capitulação perigosa. Mas o que interessa o que pensam filósofos, sociólogos e psicanalistas? Mais vale ir ao cinema, sonhar com o Capitão América e acordar com uma pistola em cada mão.
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