Por Guilherme Pavarin, no site The Intercept-Brasil:
Os estudos de João Roberto Martins Filho são a prova de que, no Brasil, os conflitos se repetem, nunca cessam. Quando ele iniciou o mestrado, nos anos 1970, o país estava sob domínio dos militares e, nas ruas, a oposição mais ruidosa emergia da ala estudantil. Na época jovem acadêmico e fã de História, Martins se interessou pelo tema e se debruçou sobre documentos, entrevistas e livros para entender os grupos de estudantes na ditadura militar. O resultado lhe rendeu tese de mestrado na Unicamp, mas o principal fruto que colheu foi o fascínio pelo plano de fundo da pesquisa: as disputas internas das Forças Armadas do Brasil, assunto pouco explorado na academia.
Nos anos seguintes, Martins Filho se tornou uma referência no tema. Foi ele que, no doutorado, refutou a ideia de que havia apenas dois grupos que explicavam o regime - o moderado, dos castelistas, e o linha-dura. Na sua tese, adotada até hoje por outros estudiosos, mostrou como as divisões internas nas casernas eram numerosas e complexas.
Hoje, 25 anos depois, o pesquisador se concentra em atividade similar, mas para tratar do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Com adaptações ao método de outrora - agora, além de pesquisas, leituras e conversas, também vasculha redes sociais - ele busca mapear os diferentes interesses entre os militares no poder. Suas conclusões não são animadoras: se, de um lado, o alto escalão do Exército que apoiou Bolsonaro na campanha não está feliz com o governo, de outro, o baixo escalão está insatisfeito com o próprio Exército. Para Martins Filho, não é difícil imaginar que, num cenário de extrema crise, Bolsonaro possa usar de sua influência entre os postos inferiores do Exército para provocar uma revolta, uma inquietação popular.
A percepção do pesquisador tem fundamento: o comportamento errático de Bolsonaro. No mês passado, quando enfrentava sua pior crise de popularidade e via protestos em massa contra os cortes na educação, o presidente apoiou manifestações favoráveis a seu governo que tinham como alvo pilares democráticos como a Câmara dos Deputados e o Superior Tribunal Federal. “Nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os escalões inferiores do Exército”, conta Martins Filho ao Intercept. “Seria um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.”
Martins Filho acredita que parte da tensão que vivemos agora se deve ao fato de que os militares - sobretudo o Exército - erraram ao voltar ao protagonismo da política. Hoje são oito representantes das Forças Armadas nos ministérios, número maior do que todos os governos da ditadura militar. Para ele, os militares endossaram, em nome do antipetismo, com o claro objetivo de afastar a centro-esquerda do poder, um candidato que, agora percebem, é despreparado para funções básicas do cargo. “Me parece que os militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra”, diz.
Pouco antes do regresso das Forças Armadas ao centro do poder, Martins Filho se concentrava em estudar práticas repressoras da ditadura. Professor titular da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, ele destrinchava a colaboração do governo da Inglaterra com o do Brasil para criar um aparelho de repressão com salas de tortura no Rio de Janeiro. Com espanto, viu, em 2015, políticos e eleitores de classe média celebrarem a figura do torturador Coronel Brilhante Ustra durante o rito que culminou o impeachment de Dilma Rousseff. Ali percebeu que era hora de mudar seu foco para o presente. “Ninguém pode dizer que a classe média não sabia quem era Bolsonaro”, fala Martins Filho. “Um homem capaz de elogiar tortura, de elogiar ditadura, de dizer que ia metralhar os petistas, expulsar os petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem. Uma vez eleito com 58 milhões de votos, continuou sendo quem era. E é nesse ponto que estamos.”
Conversei com Martins Filho por uma hora e meia no começo de junho. Ele falou da demissão do general Santos Cruz, da relação do governo com Mourão e outros generais e dos possíveis riscos que Bolsonaro representa à democracia.
Qual é o tamanho real da influência do presidente entre os militares?
Com exceção da eleição de 2014, quando teve votação mais expressiva, Bolsonaro sempre se elegeu deputado federal com aproximadamente cem mil votos, não muito mais ou muitos menos do que isso. Foram seis eleições com retrospecto parecido. Seu eleitorado sempre foi a família militar, sargentos e soldados. Ele passou 28 anos falando para esse pessoal. Nesse caminho fez coisas absurdas, como elogiar o governo militar.
Nos escalões mais altos, como coronel e tenente-coronel, ele sempre foi considerado um péssimo exemplo porque mal chegou a capitão e publicou uma carta à revista Veja para reclamar de salários. Só não foi punido porque se percebeu uma grande insatisfação nos setores mais baixos do Exército e houve certo receio de transformar o caso num pólo de agitação. Então ele acabou sendo afastado da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e com isso não poderia mais progredir na carreira. Bolsonaro era desprezado nos escalões maiores. O general Ernesto Geisel falava que Bolsonaro era um péssimo militar, por exemplo.
No inquérito, o oficial responsável diz que Jair Bolsonaro era um homem de extrema ambição financeira. Não era feito para carreira militar. Mas, como o eleitorado dele era de famílias militares, sempre ficou com pé em cada coisa. Sentia que era militar sendo um político. Uma vez que assume o poder, é o mesmo jogo. Ele pensa, acima de tudo, nele próprio. Interessa a ele manter a corte de militares na medida que fortaleça o poder dele. Quando tentam controlá-lo, ele mobiliza outro setor, o da extrema direita. O que acho errado é chamar essa ala de extrema direita de ideológica. Ideológico todos eles são. O que levou todos a apoiar o Bolsonaro foi o antipetismo.
Durante as eleições, as Forças Armadas demonstraram apoio a Bolsonaro. Muitos oficiais fizeram até campanha. Você diria que hoje a relação entre as duas partes não é tão sólida quanto parecia na época das eleições?
A questão fundamental era afastar a centro-esquerda, e Bolsonaro conseguiu. Quase perdeu a eleição, mas conseguiu. Se não houvesse acontecido o atentado em Juiz de Fora durante a campanha, não sabemos o que poderia acontecer. O fato é que, uma vez entendido que ele era a única opção para afastar a centro-esquerda, os oficiais engoliram muitas coisas. A sucessão de fatos que veio depois, porém, é lastimável. É impossível achar que oficiais da Aeronáutica, da Marinha e do Exército não se incomodem com as declarações e as posturas do presidente, nem que não sejam mais inteligentes do que Bolsonaro.
Sinto que há oficiais que ridicularizam algumas bandeiras como esta última de Bolsonaro, a de transformar Angra dos Reis numa Cancun. Como que alguém com mínimo de inteligência pode achar que isso é a bandeira de um Presidente da República? Então acho que, ao apoiar Bolsonaro como alternativa para derrotar centro-esquerda, os militares deram um crédito de confiança, mas, desde então, ele tem se revelado um presidente que envergonha o país. Isso também tem efeito dentro das Forças Armadas.
De onde vem o antipetismo das Forças Armadas? Em recente entrevista à Folha de S.Paulo e ao El País, Lula mencionou que modernizou instalações, que comprou equipamentos para os militares e que tinha bom diálogo com os oficiais. Quando a situação começou a ficar hostil para os petistas dentro das casernas?
O antipetismo é uma atitude irracional de parte dos setores da Forças Armadas, principalmente do Exército. Como tal, tem uma série de motivações. Eu diria que as Forças Armadas aderiram ao moralismo de classe média na luta anticorrupção, como se tivessem finalmente achado o motivo de toda a corrupção do país no PT. Por outro lado existe o preconceito de classe média que nunca foi resolvido, mesmo na época de boa popularidade de Lula, que nunca admitiu que um trabalhador chegasse à presidência da República, embora durante o governo de Lula e de parte do governo de Dilma as Forças Armadas tenham se adaptado à direção civil por meio do Ministério da Defesa.
Um terceiro motivo, e esse é bastante concreto, foi a questão da Comissão Nacional da Verdade, as investigações que ela fez e o relatório que ela divulgou culpando toda a cadeia de comando das cinco Presidências da República, os generais, entre 1964 e 1985. E o quarto motivo foi o fato de que o PT, numa reunião de diretório nacional, aprovou uma moção dizendo que deveria ter mexido no currículo das escolas militares, entre outras medidas que não tomou. Esse moção foi aprovada no congresso nacional do PT e foi completamente inoportuna. Isso porque o PT teve três mandatos e meio pra ter uma política de defesa e essa política foi, digamos, em grande parte favorável às Forças Armadas. Não tinha sentido dizer o que não foi feito e provocar uma grande área de atrito com as Forças armadas que já tinham essa postura antipetista.
Os militares precisam se adaptar ao conflito com a ala de Olavo de Carvalho, você diz?
Isso. Mesmo que os militares não quisessem ser uma ala militar, há uma ala civil, uma ala de extrema direita, a que segue os ensinamentos de Olavo de Carvalho - a exemplo dos filhos de Bolsonaro e o ministro das relações exteriores -, que está medindo força há meses com a ala militar. Ultimamente, resolveram ficar quietos, mas é algo que não deve durar muito. Pois é só essa ala civil perceber alguma influência maior dos militares que vão voltar a atacar.
E entre os próprios militares, por trás do falso discurso de unidade, há grandes conflitos?
A questão é saber se os militares do alto comando, mais profissionais e pouco envolvidos em política, vão se distanciar do governo Bolsonaro com o desenrolar do processo político. Poderia haver, assim, um distanciamento entre os militares que são muito próximos ao Bolsonaro, palacianos, e os militares da ativa. Outro problema do Exército é saber se o Bolsonaro, em algum momento, vai precisar usar as bases políticas dele. Isso significaria também apelar às forças inferiores do Exército. Aí já houve sinais de que pode haver algum tipo de inflamação, principalmente nas redes sociais. Isso se Bolsonaro se sentisse ameaçado. Não sabemos se isso acontecerá ou não.
Existe o risco de uma revolta de baixas patentes inflamada pelo próprio Bolsonaro?
É uma situação extrema. Só surgiu a ameaça quando os militares divulgaram o que chamaram de versão da reforma da previdência militar. Muitos ali perceberam que era, na verdade, um projeto de reestruturação de carreira. Essa postura pegou muito mal nos postos de major pra baixo, porque não trazia benefícios para os oficiais e praças e sargentos, trazia apenas para os postos mais altos. Houve um surto de manifestações nas redes sociais desses setores inferiores. Sabemos disso porque o comandante do Exército foi obrigado a se manifestar.
Há uma latência e uma contradição desses fatores que ficaram claras nesse episódio da reforma. Os militares, principalmente sargentos, também têm queixas constantes sobre como os oficiais usam sargentos e soldados para fazerem serviços pessoais. Isso pega muito mal. Muitos deles atuam como empregados domésticos sendo militares. O Bolsonaro sabe explorar essa revolta muito bem. É isso que está em jogo, e muitas pessoas não sabem disso. Para virar uma rebelião, seria numa situação extrema, algo que não estamos vendo agora. Mas é uma potencialidade. Bolsonaro pode apelar para o eleitorado dele, composto sobretudo pelo baixo escalão, e acontecer alguma rebelião. O primeiro eleitorado dele é essa turma, a oficialidade baixa, os sargentos, que não tinham como se expressar e se expressavam através dele.
Qual seria o estrago dessa revolta de baixa patente?
Seria o pior dos estragos. Já há um estrago: o fato de que os militares foram levados ao centro da vida política. Foram xingados e atacados como nunca tinham sido em outro governo, desses que ele, Bolsonaro, vive atacando. Nos últimos 24 anos, nenhuma autoridade desses governos - FHC, Lula e Dilma - ofendeu generais em público como aliados do Bolsonaro fizeram. O pior dos estragos seria mexer com a hierarquia dentro das Forças Armadas. Como o governo é populista, que morde e depois assopra, capaz de articular pressões em protestos, como fizeram com Rodrigo Maia no último dia 26, com bonecos e tudo, nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os escalões inferiores do Exército. Isso seria um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.
Que impacto poderia ter a reforma da previdência dos militares?
É uma incógnita, eles não só se desprestigiaram muito ao tentar escapar da reforma da previdência, como também criaram uma divisão. Conversei com militares da reserva em relação a essa proposta e, entre os que estão de major pra baixo e os que estão acima de major, não se sabe como vai estar. O tema desapareceu. Quando o tema voltar, vamos ver a repercussão.
Qual o interesse da entrada do Exército na política? O que interessa a eles agora que estão lá?
O Exército nunca perdeu ideia de que é uma espécie de pai da nação. E sempre se referiu ao artigo 142 da Constituição, que fala da Garantia da Lei e da Ordem, interpretando-o como se dissesse que, em último caso, a Constituição permite uma intervenção. O fato é que não, a Constituição não permite. Ela permite intervenção militar em locais determinados por solicitação de um dos poderes da República, nunca a Constituição permitiria que os militares viessem para salvar a pátria.
Essa ideia de salvador da pátria continua a existir no Exército. Só que, num ambiente democrático, o Exército foi se adaptando ao ambiente civil. O Exército entrou na política porque, em primeiro lugar, tinha um projeto conservador que era afastar o PT. Isso se percebe em qualquer entrevista, eles realmente odeiam o PT. E, depois, o Exército também tem um segundo objetivo que é mostrar como ajudar o país a encontrar estabilidade. Acho que idealmente não seria pela via de um governo Bolsonaro, mas o mais importante era afastar a centro-esquerda. A partir daí, segundo eles, o Brasil se encaminharia. O Exército então mostraria que tem quadros que podem ajudar o país a sair do buraco.
Na prática, nada disso aconteceu. Os militares estão num governo de opereta. Eles se submeteram a constantes vexames. Além de serem xingados, Bolsonaro arrastou o Exército e as Forças Armadas para comemorar o Golpe de 64. Isso foi transmitido para todo mundo, não era o que os militares queriam. O Exército sempre fez isso discretamente. Ele associou os militares à ditadura militar, o que foi um golpe baixo. Então, me parece que os militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra.
No caso da Aeronáutica e da Marinha, os interesses são outros?
Hoje você tem uma aberração que é o general como ministro da Defesa. Quando foi criado o Ministério da Defesa, o maior medo da Marinha era que caísse na mão do Exército. Porque o ministério foi criado para ser civil. Então, a Marinha engoliu o ministério, mas não apoiava. Uma vez criado o ministério da Defesa, houve muitas quedas de ministros, mas surgiu uma cultura de comando civil dos militares. A primeira coisa é essa. Nessa onda conservadora, tanto na Marinha quanto na Aeronáutica, a grande maioria votou em Bolsonaro, mas os comandos das duas percebem que o Exército está tendo um papel que sempre, historicamente, acharam exagerado, o de salvador da pátria. A Marinha recusa retoricamente esse papel. Depois, a Marinha também tem um projeto enorme, o do submarino nuclear, e a Força Aérea tem um projeto muito grande também, tecnológico, o dos caças suecos. São projetos que vão se estender por muitos anos, vão acabar quando não tiver mais governo Bolsonaro. Eles percebem que é perigosa a associação a um governo específico. Isso não quer dizer que não tenham entrado na onda conservadora e apoiado a candidatura Bolsonaro. Se você observar, o governo também tem almirantes, brigadeiros e coronéis, mas são pessoas que estão em cargos burocráticos e em quantidade bem menor do que em relação ao Exército. Na verdade, o que ocorre é que o governo Bolsonaro é associado a generais, não a almirantes ou brigadeiros. Nessa altura, então, a Marinha e a Força Aérea devem achar que fizeram bem. É um governo errático.
Como você avalia a atuação do Ministério da Defesa nesses primeiros meses de governo? Está sendo como o esperado?
A criação do ministério (ocorrida em 1999) foi um avanço nas relações entre civis e militares, inegavelmente, com todos os problemas. Tenho esperança que, com o passar do tempo, prepondere lá e no comando do Exército uma visão mais realista do que é o governo Bolsonaro e, assim, ocorra algum recuo para o profissionalismo. Tenho conversado com oficiais da reserva, que acabaram de sair, inclusive, e alguns deles, os mais lúcidos, consideram que a conta do fracasso do governo Bolsonaro vai ser jogado em cima do Exército. Isso é muito ruim para a imagem deles. Embora o Exército diga que é sempre bem avaliado na pesquisa de opinião pública, houve, pela primeira vez desde 1985, uma queda de popularidade na última pesquisa.
Visto de fora, pelo Twitter e pelas declarações dos olavistas, o general Hamilton Mourão atua como uma espécie de indesejado contraponto à ideologia bolsonarista. Era esperado que ele agisse assim? Faz parte da estratégia de Bolsonaro ou Mourão está, de fato, incendiando as articulações do governo?
Acho que existe uma contradição. O Mourão se coloca como alternativa se o governo Bolsonaro não der certo. Como ele também foi eleito, não pode ser demitido. Bolsonaro já deixou claro que demite sem escrúpulos, o que é uma característica da política no Brasil. Mas, veja, o Mourão declarou que tinha oito assessores antes do mandato. Ele elabora projetos e programas, ele foi treinado pra não soar como aquele general rude e ignorante. O Mourão passou a ter imagem de alguém equilibrado, que faz contraponto às barbaridades que Bolsonaro fala.
Para o país seria muito ruim as duas opções: esse governo que já temos e a outra a de um governo chefiada por um general que acabou de sair do Exército. É evidente que os empresários, a mídia, o setor da agricultura, os donos do poder estão considerando a possibilidade Mourão, mas, para uma perspectiva democrática, nenhuma das duas é boa. Era melhor deixar o governo Bolsonaro mostrando que o Brasil é um governo de direita do que dar uma recauchutada com um governo de alguém mais preparado, que é o Mourão.
Como você avalia a relação entre Bolsonaro e Mourão? Mourão, embora vice, é mais respeitado pelas Forças Armadas do que o presidente. Ele não parece ser um cara muito submisso…
O Roberto Requião, que foi muito importante no parlamento, fez um perfil psicológico do Bolsonaro como deputado de baixo clero que passou por inúmeros partidos e que era uma pessoa que tava sempre reagindo a qualquer pessoa que era mais capacitada do que ele. Ele tinha uma insegurança básica. Pode-se dizer que o Congresso inteiro é mais capacitado do que o Bolsonaro. Foi uma falha, aliás, não terem cassado o mandato dele por falta de decoro parlamentar. Havia base para isso. Então, a atitude do Bolsonaro com o Mourão, muito diferente de FHC com seu vice, de Lula com seu vice, até de Dilma com seu vice, ainda que este caso seja bem complexo, é justamente o medo de que o Mourão passe a perna nele. Isso nos leva a crer que ele é profundamente inseguro. Ele e os filhos acham que a rasteira está perto. O Mourão, para ele, é uma espécie de sombra, alguém que pode dar facada nas costas a qualquer momento. Ele não pode brigar com Mourão, porque ele é um fantasma pra ele e pros aliados mais próximos.
Na sessão de votação pelo impeachment de Dilma Rousseff,Bolsonaro fez uma saudação a Brilhante Ustra, um dos responsáveis por torturar pessoas na época da ditadura. Durante as eleições também vimos apoiadores do político usarem camisetas de Ustra. Como o senhor avalia essa normalização ou relativização de um comportamento abominável, como o ato de tortura, por parte de um chefe de estado e de muitos que o elegeram?
É evidente, está mais do que provado, até por inúmeras fontes absolutamente incontornáveis, que houve tortura no Brasil. Execuções, atos bárbaros, assassinatos e desaparecimentos, não há como negar. Há um documento oficial, um relatório da Comissão da Verdade. A coisa mais gritante é que Bolsonaro foi aplaudido pela classe média que tava assistindo à sessão do impeachment na Avenida Paulista. Ninguém pode dizer que a classe média não sabia quem era Bolsonaro. Um homem capaz de elogiar tortura, de elogiar ditadura, dizer que tinham matado 30 mil pessoas, que ia metralhar os petistas, expulsar os petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem.
Os estudos de João Roberto Martins Filho são a prova de que, no Brasil, os conflitos se repetem, nunca cessam. Quando ele iniciou o mestrado, nos anos 1970, o país estava sob domínio dos militares e, nas ruas, a oposição mais ruidosa emergia da ala estudantil. Na época jovem acadêmico e fã de História, Martins se interessou pelo tema e se debruçou sobre documentos, entrevistas e livros para entender os grupos de estudantes na ditadura militar. O resultado lhe rendeu tese de mestrado na Unicamp, mas o principal fruto que colheu foi o fascínio pelo plano de fundo da pesquisa: as disputas internas das Forças Armadas do Brasil, assunto pouco explorado na academia.
Nos anos seguintes, Martins Filho se tornou uma referência no tema. Foi ele que, no doutorado, refutou a ideia de que havia apenas dois grupos que explicavam o regime - o moderado, dos castelistas, e o linha-dura. Na sua tese, adotada até hoje por outros estudiosos, mostrou como as divisões internas nas casernas eram numerosas e complexas.
Hoje, 25 anos depois, o pesquisador se concentra em atividade similar, mas para tratar do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Com adaptações ao método de outrora - agora, além de pesquisas, leituras e conversas, também vasculha redes sociais - ele busca mapear os diferentes interesses entre os militares no poder. Suas conclusões não são animadoras: se, de um lado, o alto escalão do Exército que apoiou Bolsonaro na campanha não está feliz com o governo, de outro, o baixo escalão está insatisfeito com o próprio Exército. Para Martins Filho, não é difícil imaginar que, num cenário de extrema crise, Bolsonaro possa usar de sua influência entre os postos inferiores do Exército para provocar uma revolta, uma inquietação popular.
A percepção do pesquisador tem fundamento: o comportamento errático de Bolsonaro. No mês passado, quando enfrentava sua pior crise de popularidade e via protestos em massa contra os cortes na educação, o presidente apoiou manifestações favoráveis a seu governo que tinham como alvo pilares democráticos como a Câmara dos Deputados e o Superior Tribunal Federal. “Nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os escalões inferiores do Exército”, conta Martins Filho ao Intercept. “Seria um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.”
Martins Filho acredita que parte da tensão que vivemos agora se deve ao fato de que os militares - sobretudo o Exército - erraram ao voltar ao protagonismo da política. Hoje são oito representantes das Forças Armadas nos ministérios, número maior do que todos os governos da ditadura militar. Para ele, os militares endossaram, em nome do antipetismo, com o claro objetivo de afastar a centro-esquerda do poder, um candidato que, agora percebem, é despreparado para funções básicas do cargo. “Me parece que os militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra”, diz.
Pouco antes do regresso das Forças Armadas ao centro do poder, Martins Filho se concentrava em estudar práticas repressoras da ditadura. Professor titular da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, ele destrinchava a colaboração do governo da Inglaterra com o do Brasil para criar um aparelho de repressão com salas de tortura no Rio de Janeiro. Com espanto, viu, em 2015, políticos e eleitores de classe média celebrarem a figura do torturador Coronel Brilhante Ustra durante o rito que culminou o impeachment de Dilma Rousseff. Ali percebeu que era hora de mudar seu foco para o presente. “Ninguém pode dizer que a classe média não sabia quem era Bolsonaro”, fala Martins Filho. “Um homem capaz de elogiar tortura, de elogiar ditadura, de dizer que ia metralhar os petistas, expulsar os petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem. Uma vez eleito com 58 milhões de votos, continuou sendo quem era. E é nesse ponto que estamos.”
Conversei com Martins Filho por uma hora e meia no começo de junho. Ele falou da demissão do general Santos Cruz, da relação do governo com Mourão e outros generais e dos possíveis riscos que Bolsonaro representa à democracia.
Qual é o tamanho real da influência do presidente entre os militares?
Com exceção da eleição de 2014, quando teve votação mais expressiva, Bolsonaro sempre se elegeu deputado federal com aproximadamente cem mil votos, não muito mais ou muitos menos do que isso. Foram seis eleições com retrospecto parecido. Seu eleitorado sempre foi a família militar, sargentos e soldados. Ele passou 28 anos falando para esse pessoal. Nesse caminho fez coisas absurdas, como elogiar o governo militar.
Nos escalões mais altos, como coronel e tenente-coronel, ele sempre foi considerado um péssimo exemplo porque mal chegou a capitão e publicou uma carta à revista Veja para reclamar de salários. Só não foi punido porque se percebeu uma grande insatisfação nos setores mais baixos do Exército e houve certo receio de transformar o caso num pólo de agitação. Então ele acabou sendo afastado da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e com isso não poderia mais progredir na carreira. Bolsonaro era desprezado nos escalões maiores. O general Ernesto Geisel falava que Bolsonaro era um péssimo militar, por exemplo.
No inquérito, o oficial responsável diz que Jair Bolsonaro era um homem de extrema ambição financeira. Não era feito para carreira militar. Mas, como o eleitorado dele era de famílias militares, sempre ficou com pé em cada coisa. Sentia que era militar sendo um político. Uma vez que assume o poder, é o mesmo jogo. Ele pensa, acima de tudo, nele próprio. Interessa a ele manter a corte de militares na medida que fortaleça o poder dele. Quando tentam controlá-lo, ele mobiliza outro setor, o da extrema direita. O que acho errado é chamar essa ala de extrema direita de ideológica. Ideológico todos eles são. O que levou todos a apoiar o Bolsonaro foi o antipetismo.
Durante as eleições, as Forças Armadas demonstraram apoio a Bolsonaro. Muitos oficiais fizeram até campanha. Você diria que hoje a relação entre as duas partes não é tão sólida quanto parecia na época das eleições?
A questão fundamental era afastar a centro-esquerda, e Bolsonaro conseguiu. Quase perdeu a eleição, mas conseguiu. Se não houvesse acontecido o atentado em Juiz de Fora durante a campanha, não sabemos o que poderia acontecer. O fato é que, uma vez entendido que ele era a única opção para afastar a centro-esquerda, os oficiais engoliram muitas coisas. A sucessão de fatos que veio depois, porém, é lastimável. É impossível achar que oficiais da Aeronáutica, da Marinha e do Exército não se incomodem com as declarações e as posturas do presidente, nem que não sejam mais inteligentes do que Bolsonaro.
Sinto que há oficiais que ridicularizam algumas bandeiras como esta última de Bolsonaro, a de transformar Angra dos Reis numa Cancun. Como que alguém com mínimo de inteligência pode achar que isso é a bandeira de um Presidente da República? Então acho que, ao apoiar Bolsonaro como alternativa para derrotar centro-esquerda, os militares deram um crédito de confiança, mas, desde então, ele tem se revelado um presidente que envergonha o país. Isso também tem efeito dentro das Forças Armadas.
De onde vem o antipetismo das Forças Armadas? Em recente entrevista à Folha de S.Paulo e ao El País, Lula mencionou que modernizou instalações, que comprou equipamentos para os militares e que tinha bom diálogo com os oficiais. Quando a situação começou a ficar hostil para os petistas dentro das casernas?
O antipetismo é uma atitude irracional de parte dos setores da Forças Armadas, principalmente do Exército. Como tal, tem uma série de motivações. Eu diria que as Forças Armadas aderiram ao moralismo de classe média na luta anticorrupção, como se tivessem finalmente achado o motivo de toda a corrupção do país no PT. Por outro lado existe o preconceito de classe média que nunca foi resolvido, mesmo na época de boa popularidade de Lula, que nunca admitiu que um trabalhador chegasse à presidência da República, embora durante o governo de Lula e de parte do governo de Dilma as Forças Armadas tenham se adaptado à direção civil por meio do Ministério da Defesa.
Um terceiro motivo, e esse é bastante concreto, foi a questão da Comissão Nacional da Verdade, as investigações que ela fez e o relatório que ela divulgou culpando toda a cadeia de comando das cinco Presidências da República, os generais, entre 1964 e 1985. E o quarto motivo foi o fato de que o PT, numa reunião de diretório nacional, aprovou uma moção dizendo que deveria ter mexido no currículo das escolas militares, entre outras medidas que não tomou. Esse moção foi aprovada no congresso nacional do PT e foi completamente inoportuna. Isso porque o PT teve três mandatos e meio pra ter uma política de defesa e essa política foi, digamos, em grande parte favorável às Forças Armadas. Não tinha sentido dizer o que não foi feito e provocar uma grande área de atrito com as Forças armadas que já tinham essa postura antipetista.
O PT fez muito pelas Forças Armadas, as instalações foram modernizadas, houve novas construções, houve manutenção, houve a retomada do submarino nuclear, houve o projeto dos submarinos convencionais em acordo com a França, houve o fechamento do acordo com os caças da Suécia, houve uma série de projetos do Exército aprovados. Do ponto de vista das verbas no investimento das Forças Armadas, a época do PT foi uma época de ouro.
Hoje tanto Bolsonaro quanto os ministros afirmam que não existe uma ala militar no governo. Você, ao contrário, parece entender que não só há uma óbvia ala militar como ela também possui conflitos internos. Quais são os motivos de rusgas?
No governo militar, sempre se procura dizer que os militares atuam unidos. Hoje é a mesma coisa. Você nunca vai ver um militar reconhecer que há conflitos, “partidos”, digamos assim. Mas o fato dos generais falarem sempre à imprensa significa que eles assumiram papel fundamental no governo Bolsonaro. Então, a primeira constatação é que houve, infelizmente, uma volta dos militares à política. Esse retorno foi organizado pelo então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas (ele ocupou o cargo de 5 fevereiro de 2015 a 11 de janeiro de 2019).
Você percebe essa intenção pelas declarações que ele começou a dar depois da queda da Dilma Rousseff em 2016. Quando ela caiu, houve uma mudança de postura do Exército. O Exército aderiu institucionalmente à candidatura Bolsonaro. Os militares que hoje estão no governo formam uma ala militar, queiram ou não. A segunda constatação é que, ao se tornar parte do governo, eles inevitavelmente entram na luta política. Todo o governo tem luta política interna. O que não está claro é como eles vão se acomodar a esse conflito externo, com a ala civil.
Hoje tanto Bolsonaro quanto os ministros afirmam que não existe uma ala militar no governo. Você, ao contrário, parece entender que não só há uma óbvia ala militar como ela também possui conflitos internos. Quais são os motivos de rusgas?
No governo militar, sempre se procura dizer que os militares atuam unidos. Hoje é a mesma coisa. Você nunca vai ver um militar reconhecer que há conflitos, “partidos”, digamos assim. Mas o fato dos generais falarem sempre à imprensa significa que eles assumiram papel fundamental no governo Bolsonaro. Então, a primeira constatação é que houve, infelizmente, uma volta dos militares à política. Esse retorno foi organizado pelo então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas (ele ocupou o cargo de 5 fevereiro de 2015 a 11 de janeiro de 2019).
Você percebe essa intenção pelas declarações que ele começou a dar depois da queda da Dilma Rousseff em 2016. Quando ela caiu, houve uma mudança de postura do Exército. O Exército aderiu institucionalmente à candidatura Bolsonaro. Os militares que hoje estão no governo formam uma ala militar, queiram ou não. A segunda constatação é que, ao se tornar parte do governo, eles inevitavelmente entram na luta política. Todo o governo tem luta política interna. O que não está claro é como eles vão se acomodar a esse conflito externo, com a ala civil.
Os militares precisam se adaptar ao conflito com a ala de Olavo de Carvalho, você diz?
Isso. Mesmo que os militares não quisessem ser uma ala militar, há uma ala civil, uma ala de extrema direita, a que segue os ensinamentos de Olavo de Carvalho - a exemplo dos filhos de Bolsonaro e o ministro das relações exteriores -, que está medindo força há meses com a ala militar. Ultimamente, resolveram ficar quietos, mas é algo que não deve durar muito. Pois é só essa ala civil perceber alguma influência maior dos militares que vão voltar a atacar.
E entre os próprios militares, por trás do falso discurso de unidade, há grandes conflitos?
A questão é saber se os militares do alto comando, mais profissionais e pouco envolvidos em política, vão se distanciar do governo Bolsonaro com o desenrolar do processo político. Poderia haver, assim, um distanciamento entre os militares que são muito próximos ao Bolsonaro, palacianos, e os militares da ativa. Outro problema do Exército é saber se o Bolsonaro, em algum momento, vai precisar usar as bases políticas dele. Isso significaria também apelar às forças inferiores do Exército. Aí já houve sinais de que pode haver algum tipo de inflamação, principalmente nas redes sociais. Isso se Bolsonaro se sentisse ameaçado. Não sabemos se isso acontecerá ou não.
Existe o risco de uma revolta de baixas patentes inflamada pelo próprio Bolsonaro?
É uma situação extrema. Só surgiu a ameaça quando os militares divulgaram o que chamaram de versão da reforma da previdência militar. Muitos ali perceberam que era, na verdade, um projeto de reestruturação de carreira. Essa postura pegou muito mal nos postos de major pra baixo, porque não trazia benefícios para os oficiais e praças e sargentos, trazia apenas para os postos mais altos. Houve um surto de manifestações nas redes sociais desses setores inferiores. Sabemos disso porque o comandante do Exército foi obrigado a se manifestar.
Há uma latência e uma contradição desses fatores que ficaram claras nesse episódio da reforma. Os militares, principalmente sargentos, também têm queixas constantes sobre como os oficiais usam sargentos e soldados para fazerem serviços pessoais. Isso pega muito mal. Muitos deles atuam como empregados domésticos sendo militares. O Bolsonaro sabe explorar essa revolta muito bem. É isso que está em jogo, e muitas pessoas não sabem disso. Para virar uma rebelião, seria numa situação extrema, algo que não estamos vendo agora. Mas é uma potencialidade. Bolsonaro pode apelar para o eleitorado dele, composto sobretudo pelo baixo escalão, e acontecer alguma rebelião. O primeiro eleitorado dele é essa turma, a oficialidade baixa, os sargentos, que não tinham como se expressar e se expressavam através dele.
Qual seria o estrago dessa revolta de baixa patente?
Seria o pior dos estragos. Já há um estrago: o fato de que os militares foram levados ao centro da vida política. Foram xingados e atacados como nunca tinham sido em outro governo, desses que ele, Bolsonaro, vive atacando. Nos últimos 24 anos, nenhuma autoridade desses governos - FHC, Lula e Dilma - ofendeu generais em público como aliados do Bolsonaro fizeram. O pior dos estragos seria mexer com a hierarquia dentro das Forças Armadas. Como o governo é populista, que morde e depois assopra, capaz de articular pressões em protestos, como fizeram com Rodrigo Maia no último dia 26, com bonecos e tudo, nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os escalões inferiores do Exército. Isso seria um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.
Que impacto poderia ter a reforma da previdência dos militares?
É uma incógnita, eles não só se desprestigiaram muito ao tentar escapar da reforma da previdência, como também criaram uma divisão. Conversei com militares da reserva em relação a essa proposta e, entre os que estão de major pra baixo e os que estão acima de major, não se sabe como vai estar. O tema desapareceu. Quando o tema voltar, vamos ver a repercussão.
Qual o interesse da entrada do Exército na política? O que interessa a eles agora que estão lá?
O Exército nunca perdeu ideia de que é uma espécie de pai da nação. E sempre se referiu ao artigo 142 da Constituição, que fala da Garantia da Lei e da Ordem, interpretando-o como se dissesse que, em último caso, a Constituição permite uma intervenção. O fato é que não, a Constituição não permite. Ela permite intervenção militar em locais determinados por solicitação de um dos poderes da República, nunca a Constituição permitiria que os militares viessem para salvar a pátria.
Essa ideia de salvador da pátria continua a existir no Exército. Só que, num ambiente democrático, o Exército foi se adaptando ao ambiente civil. O Exército entrou na política porque, em primeiro lugar, tinha um projeto conservador que era afastar o PT. Isso se percebe em qualquer entrevista, eles realmente odeiam o PT. E, depois, o Exército também tem um segundo objetivo que é mostrar como ajudar o país a encontrar estabilidade. Acho que idealmente não seria pela via de um governo Bolsonaro, mas o mais importante era afastar a centro-esquerda. A partir daí, segundo eles, o Brasil se encaminharia. O Exército então mostraria que tem quadros que podem ajudar o país a sair do buraco.
Na prática, nada disso aconteceu. Os militares estão num governo de opereta. Eles se submeteram a constantes vexames. Além de serem xingados, Bolsonaro arrastou o Exército e as Forças Armadas para comemorar o Golpe de 64. Isso foi transmitido para todo mundo, não era o que os militares queriam. O Exército sempre fez isso discretamente. Ele associou os militares à ditadura militar, o que foi um golpe baixo. Então, me parece que os militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra.
No caso da Aeronáutica e da Marinha, os interesses são outros?
Hoje você tem uma aberração que é o general como ministro da Defesa. Quando foi criado o Ministério da Defesa, o maior medo da Marinha era que caísse na mão do Exército. Porque o ministério foi criado para ser civil. Então, a Marinha engoliu o ministério, mas não apoiava. Uma vez criado o ministério da Defesa, houve muitas quedas de ministros, mas surgiu uma cultura de comando civil dos militares. A primeira coisa é essa. Nessa onda conservadora, tanto na Marinha quanto na Aeronáutica, a grande maioria votou em Bolsonaro, mas os comandos das duas percebem que o Exército está tendo um papel que sempre, historicamente, acharam exagerado, o de salvador da pátria. A Marinha recusa retoricamente esse papel. Depois, a Marinha também tem um projeto enorme, o do submarino nuclear, e a Força Aérea tem um projeto muito grande também, tecnológico, o dos caças suecos. São projetos que vão se estender por muitos anos, vão acabar quando não tiver mais governo Bolsonaro. Eles percebem que é perigosa a associação a um governo específico. Isso não quer dizer que não tenham entrado na onda conservadora e apoiado a candidatura Bolsonaro. Se você observar, o governo também tem almirantes, brigadeiros e coronéis, mas são pessoas que estão em cargos burocráticos e em quantidade bem menor do que em relação ao Exército. Na verdade, o que ocorre é que o governo Bolsonaro é associado a generais, não a almirantes ou brigadeiros. Nessa altura, então, a Marinha e a Força Aérea devem achar que fizeram bem. É um governo errático.
Como você avalia a atuação do Ministério da Defesa nesses primeiros meses de governo? Está sendo como o esperado?
A criação do ministério (ocorrida em 1999) foi um avanço nas relações entre civis e militares, inegavelmente, com todos os problemas. Tenho esperança que, com o passar do tempo, prepondere lá e no comando do Exército uma visão mais realista do que é o governo Bolsonaro e, assim, ocorra algum recuo para o profissionalismo. Tenho conversado com oficiais da reserva, que acabaram de sair, inclusive, e alguns deles, os mais lúcidos, consideram que a conta do fracasso do governo Bolsonaro vai ser jogado em cima do Exército. Isso é muito ruim para a imagem deles. Embora o Exército diga que é sempre bem avaliado na pesquisa de opinião pública, houve, pela primeira vez desde 1985, uma queda de popularidade na última pesquisa.
Visto de fora, pelo Twitter e pelas declarações dos olavistas, o general Hamilton Mourão atua como uma espécie de indesejado contraponto à ideologia bolsonarista. Era esperado que ele agisse assim? Faz parte da estratégia de Bolsonaro ou Mourão está, de fato, incendiando as articulações do governo?
Acho que existe uma contradição. O Mourão se coloca como alternativa se o governo Bolsonaro não der certo. Como ele também foi eleito, não pode ser demitido. Bolsonaro já deixou claro que demite sem escrúpulos, o que é uma característica da política no Brasil. Mas, veja, o Mourão declarou que tinha oito assessores antes do mandato. Ele elabora projetos e programas, ele foi treinado pra não soar como aquele general rude e ignorante. O Mourão passou a ter imagem de alguém equilibrado, que faz contraponto às barbaridades que Bolsonaro fala.
Para o país seria muito ruim as duas opções: esse governo que já temos e a outra a de um governo chefiada por um general que acabou de sair do Exército. É evidente que os empresários, a mídia, o setor da agricultura, os donos do poder estão considerando a possibilidade Mourão, mas, para uma perspectiva democrática, nenhuma das duas é boa. Era melhor deixar o governo Bolsonaro mostrando que o Brasil é um governo de direita do que dar uma recauchutada com um governo de alguém mais preparado, que é o Mourão.
Como você avalia a relação entre Bolsonaro e Mourão? Mourão, embora vice, é mais respeitado pelas Forças Armadas do que o presidente. Ele não parece ser um cara muito submisso…
O Roberto Requião, que foi muito importante no parlamento, fez um perfil psicológico do Bolsonaro como deputado de baixo clero que passou por inúmeros partidos e que era uma pessoa que tava sempre reagindo a qualquer pessoa que era mais capacitada do que ele. Ele tinha uma insegurança básica. Pode-se dizer que o Congresso inteiro é mais capacitado do que o Bolsonaro. Foi uma falha, aliás, não terem cassado o mandato dele por falta de decoro parlamentar. Havia base para isso. Então, a atitude do Bolsonaro com o Mourão, muito diferente de FHC com seu vice, de Lula com seu vice, até de Dilma com seu vice, ainda que este caso seja bem complexo, é justamente o medo de que o Mourão passe a perna nele. Isso nos leva a crer que ele é profundamente inseguro. Ele e os filhos acham que a rasteira está perto. O Mourão, para ele, é uma espécie de sombra, alguém que pode dar facada nas costas a qualquer momento. Ele não pode brigar com Mourão, porque ele é um fantasma pra ele e pros aliados mais próximos.
Na sessão de votação pelo impeachment de Dilma Rousseff,Bolsonaro fez uma saudação a Brilhante Ustra, um dos responsáveis por torturar pessoas na época da ditadura. Durante as eleições também vimos apoiadores do político usarem camisetas de Ustra. Como o senhor avalia essa normalização ou relativização de um comportamento abominável, como o ato de tortura, por parte de um chefe de estado e de muitos que o elegeram?
É evidente, está mais do que provado, até por inúmeras fontes absolutamente incontornáveis, que houve tortura no Brasil. Execuções, atos bárbaros, assassinatos e desaparecimentos, não há como negar. Há um documento oficial, um relatório da Comissão da Verdade. A coisa mais gritante é que Bolsonaro foi aplaudido pela classe média que tava assistindo à sessão do impeachment na Avenida Paulista. Ninguém pode dizer que a classe média não sabia quem era Bolsonaro. Um homem capaz de elogiar tortura, de elogiar ditadura, dizer que tinham matado 30 mil pessoas, que ia metralhar os petistas, expulsar os petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem.
Uma vez eleito com 58 milhões de votos, continuou sendo quem era. Chegou a ponto de visitar Israel e dizer que Holocausto tem que ser perdoado. Tem certa dose de ignorância aí, de burrice, pode-se dizer, mas ele não tem o menor respeito pelo conhecimento histórico, não sabe nada de História do Brasil. Se fizessem uma sabatina com ele, tiraria uma nota sofrível em História, de qualquer período. Uma das coisas que queima o Exército no governo Bolsonaro é como esse homem passou na academia de Agulhas Negras, como não foi reprovado em História. É uma coisa interessante de se perguntar.
Durante a campanha, Bolsonaro citava bordões que prometiam acabar com comunistas. Esse inimigo imaginário se consolidou na mente de seus apoiadores, de modo que, ainda hoje, pelas correntes de WhatsApp, o principal alvo dos grupos bolsonaristas são partidários do comunismo, tidos como a escória da sociedade. Bolsonaro realmente crê nisso ou é uma estratégia?
É difícil saber. Ele é uma pessoa… Eu nunca colocaria a característica de pessoa inteligente, ele é uma pessoa esperta. Quando falava essas barbaridades, conseguia dois objetivos: mantinha o eleitorado dele e aparecia na mídia. O Bolsonaro só saía da obscuridade quando falava uma barbaridade. Isso teve preço caro porque hoje, em todo lugar do mundo que ele vai, pegam essa frases dele e mostram o que ele é. Talvez ele acredite no que diga. Mas é bem possível que não importa para ele o que é verdade histórica. Para ele o que importa é se aquilo que o vai falar pegará bem com os seguidores dele ou não. Você não vai ver ninguém das Forças Armadas tão reacionário assim, embora houvesse o general Luiz Rocha Paiva, uma espécie de caricatura. O apoio ao governo militar é feito com algum cuidado por parte dos militares. Bolsonaro nunca foi ponderado. No começo da carreira, chegou a falar que fuzilaria o Fernando Henrique Cardoso, à época na Presidência.
Dois dias depois da publicação da reportagem que mostrava diálogo ilegal entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, o general Villas Bôas divulgou em suas redes uma mensagem de apoio ao agora ministro Moro. O que isso representa?
No contexto dessas revelações de mensagens que em nenhum momento tiveram sua veracidade questionada, num momento de alta especulação sobre quem teve capacidade de hackear as mensagens nessas dimensões e num momento de crítica geral da inconstitucionalidade da atuação da tabelinha entre juiz Moro e promotor Dallagnol, causou uma estranheza muito grande a declaração do ex-comandante do Exército Villas Bôas, tido por muito tempo como um cara ponderado, em apoio ao ministro Moro. E essa aproximação de Moro aos generais tem se firmado há algum tempo.
Durante a campanha, Bolsonaro citava bordões que prometiam acabar com comunistas. Esse inimigo imaginário se consolidou na mente de seus apoiadores, de modo que, ainda hoje, pelas correntes de WhatsApp, o principal alvo dos grupos bolsonaristas são partidários do comunismo, tidos como a escória da sociedade. Bolsonaro realmente crê nisso ou é uma estratégia?
É difícil saber. Ele é uma pessoa… Eu nunca colocaria a característica de pessoa inteligente, ele é uma pessoa esperta. Quando falava essas barbaridades, conseguia dois objetivos: mantinha o eleitorado dele e aparecia na mídia. O Bolsonaro só saía da obscuridade quando falava uma barbaridade. Isso teve preço caro porque hoje, em todo lugar do mundo que ele vai, pegam essa frases dele e mostram o que ele é. Talvez ele acredite no que diga. Mas é bem possível que não importa para ele o que é verdade histórica. Para ele o que importa é se aquilo que o vai falar pegará bem com os seguidores dele ou não. Você não vai ver ninguém das Forças Armadas tão reacionário assim, embora houvesse o general Luiz Rocha Paiva, uma espécie de caricatura. O apoio ao governo militar é feito com algum cuidado por parte dos militares. Bolsonaro nunca foi ponderado. No começo da carreira, chegou a falar que fuzilaria o Fernando Henrique Cardoso, à época na Presidência.
Dois dias depois da publicação da reportagem que mostrava diálogo ilegal entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, o general Villas Bôas divulgou em suas redes uma mensagem de apoio ao agora ministro Moro. O que isso representa?
No contexto dessas revelações de mensagens que em nenhum momento tiveram sua veracidade questionada, num momento de alta especulação sobre quem teve capacidade de hackear as mensagens nessas dimensões e num momento de crítica geral da inconstitucionalidade da atuação da tabelinha entre juiz Moro e promotor Dallagnol, causou uma estranheza muito grande a declaração do ex-comandante do Exército Villas Bôas, tido por muito tempo como um cara ponderado, em apoio ao ministro Moro. E essa aproximação de Moro aos generais tem se firmado há algum tempo.
Acredito que o general Villas Bôas continua expressando opiniões que são as mesmas do alto comando. Se não forem, o alto comando tem que de alguma forma deixar claro opiniões diferentes, mas acho que isso não acontece. Há generais, próximos ao grupo do Palácio do Planalto, que são praticamente irmãos siameses do Bolsonaro, com destaque para o general Heleno. Mas não era de esperar isso do Villas Bôas, embora ele seja assessor do Heleno no Palácio do Planalto. Até segunda ordem, Villas Bôas amplificou a opinião do Exército. É estranha a postura do Villas Bôas porque ela é uma clara intervenção na política, o que não é de se esperar em qualquer situação numa ordem democrática.
Você já deve estar cansado de responder essa pergunta, mas é preciso esclarecermos: há risco para democracia?
Olha, você tendo um líder populista com tendências fascistas - embora eu prefira chamar isso e analisar o fenômeno brasileiro como “bolsonarismo”, expressão brasileira da extrema direita no mundo -, já é uma ameaça à democracia em si. Uma ameaça de golpe de estado vejo mais afastada. O grande projeto do Exército era usar o governo Bolsonaro para se mostrar como responsável, mas isso não está dando certo.
Sua carreira acadêmica começou com estudos sobre movimentos estudantis durante a militarização do estado, entre 1964 e 1968. Como você vê agora esse levante a favor da educação e contra o governo de Bolsonaro?
O modo como o governo Bolsonaro conduziu a política educacional fez surgir uma oposição ao governo dele, de um novo tipo. Não é uma oposição partidária. Quem foi na manifestação viu que todos os grupos da esquerda estavam presentes, mas nenhum deles quis liderar, um movimento de massa, amplo, em defesa da educação, e o governo Bolsonaro, na ignorância dele, não percebeu que as famílias brasileiras, independente da classe social, almejam ter o filho na universidade e enxergam claramente que as políticas do governo vão diminuir essa possibilidade e vão enfraquecer o ensino superior. Então esse movimento tende a dar muito trabalho ao governo Bolsonaro. É um movimento de tipo novo.
Você acha que a demissão do general Santos Cruz muda o clima dentro do Exército?
Acompanhei a cobertura dos três principais jornais e dos telejornais sobre o episódio. Logo se construiu a versão de que foi uma vitória da ala ideológica ou olavista do governo. A meu ver a coisa é mais complicada. Há efetivamente uma direita civil no governo Bolsonaro, que disputa poder com a ala militar. Mas ideologicamente não vejo diferença entre eles. Evidente que os militares não gostaram de ser atacados com palavras de baixo calão por Olavo de Carvalho. Foi a reação do general Santos Cruz a isso que provocou sua demissão, pois o colocou em rota de colisão com os filhos de Bolsonaro e este acabou tomando o partido deles contra seu velho amigo, um homem conservador mas de opiniões fortes.
Mas a explicação que destaca uma suposta vitória olavista não é limitada apenas porque são todos ideológicos. Ela também não explica por que o ministro da Defesa estava presente no momento da comunicação da decisão (o general Heleno também estava, mas ele não conta, pois é uma espécie se irmão siamês do presidente). Ou seja, o ministro da Defesa deve ter indicado o nome do general Ramos, ainda na ativa e comandante do Sudeste, o mesmo que em meados de março deste ano enviou convite para a cerimônia de aniversário da Revolução Democrática de 31 de março de 1964, alguns dias antes que o próprio presidente ordenasse comemorações do evento. O general é um homem de confiança do ministro da Defesa e do comandante do Exército. Não parece ter a independência de opinião do general que sai. Resta conferir. No final, sai um militar, mas os militares permanecem fortes.
Você já deve estar cansado de responder essa pergunta, mas é preciso esclarecermos: há risco para democracia?
Olha, você tendo um líder populista com tendências fascistas - embora eu prefira chamar isso e analisar o fenômeno brasileiro como “bolsonarismo”, expressão brasileira da extrema direita no mundo -, já é uma ameaça à democracia em si. Uma ameaça de golpe de estado vejo mais afastada. O grande projeto do Exército era usar o governo Bolsonaro para se mostrar como responsável, mas isso não está dando certo.
Sua carreira acadêmica começou com estudos sobre movimentos estudantis durante a militarização do estado, entre 1964 e 1968. Como você vê agora esse levante a favor da educação e contra o governo de Bolsonaro?
O modo como o governo Bolsonaro conduziu a política educacional fez surgir uma oposição ao governo dele, de um novo tipo. Não é uma oposição partidária. Quem foi na manifestação viu que todos os grupos da esquerda estavam presentes, mas nenhum deles quis liderar, um movimento de massa, amplo, em defesa da educação, e o governo Bolsonaro, na ignorância dele, não percebeu que as famílias brasileiras, independente da classe social, almejam ter o filho na universidade e enxergam claramente que as políticas do governo vão diminuir essa possibilidade e vão enfraquecer o ensino superior. Então esse movimento tende a dar muito trabalho ao governo Bolsonaro. É um movimento de tipo novo.
Você acha que a demissão do general Santos Cruz muda o clima dentro do Exército?
Acompanhei a cobertura dos três principais jornais e dos telejornais sobre o episódio. Logo se construiu a versão de que foi uma vitória da ala ideológica ou olavista do governo. A meu ver a coisa é mais complicada. Há efetivamente uma direita civil no governo Bolsonaro, que disputa poder com a ala militar. Mas ideologicamente não vejo diferença entre eles. Evidente que os militares não gostaram de ser atacados com palavras de baixo calão por Olavo de Carvalho. Foi a reação do general Santos Cruz a isso que provocou sua demissão, pois o colocou em rota de colisão com os filhos de Bolsonaro e este acabou tomando o partido deles contra seu velho amigo, um homem conservador mas de opiniões fortes.
Mas a explicação que destaca uma suposta vitória olavista não é limitada apenas porque são todos ideológicos. Ela também não explica por que o ministro da Defesa estava presente no momento da comunicação da decisão (o general Heleno também estava, mas ele não conta, pois é uma espécie se irmão siamês do presidente). Ou seja, o ministro da Defesa deve ter indicado o nome do general Ramos, ainda na ativa e comandante do Sudeste, o mesmo que em meados de março deste ano enviou convite para a cerimônia de aniversário da Revolução Democrática de 31 de março de 1964, alguns dias antes que o próprio presidente ordenasse comemorações do evento. O general é um homem de confiança do ministro da Defesa e do comandante do Exército. Não parece ter a independência de opinião do general que sai. Resta conferir. No final, sai um militar, mas os militares permanecem fortes.
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