Por Tarso Genro, no site Sul-21:
O personagem do escritor israelense David Grossman, no romance “O inferno dos outros” (Cia. das Letras, 2016) é um cômico chamado Dovale, que apresenta um show no “limite do politicamente correto e do bom gosto”, na pequena cidade israelense de Netanya. Sua triste piada tem a ver com o espetáculo degradante que estamos assistindo no Brasil, quando uma pessoa mentalmente perturbada dirige o país, como se ele estivesse conduzindo um bando de idiotas a uma festa de imbecis, com a naturalização reverente dos principais meios de comunicação do país, que se ajustaram à demência e apostam na insanidade em favor das “reformas”.
Numa das suas piadas infelizes Dovale – o cômico – conta o seguinte, para um auditório entediado e medíocre: “Um minuto galera, vocês vão gostar disso (…): “Ao lado de dois colonos no casbá caminha um árabe. Vamos chamá-lo Arabush. De repente um alto falante do exército anuncia que em cinco minutos vai começar um toque de recolher para os árabes. Um colono tira do ombro o seu fuzil e enfia uma bala na testa do árabe. O outro fica um tanto admirado: ‘porra meu santo irmão, por que você fez isso?’ Então o santo irmão olha para ele: ‘eu sei onde ele mora, ele nunca chegaria em casa a tempo’.
A piada politicamente incorreta e de mau gosto extremo, que choca o minúsculo auditório em Netanya, faz a catarse de duas expectativas distintas na vida social da cidade: a primeira, representada pelo colono que mata Arabush indefeso, porque pensa que ele inevitavelmente vai e deve morrer; a segunda, do seu perplexo companheiro, que não aceita aquela atitude assassina e pede os motivos determinantes da sua conduta inexplicável.
Na primeira expectativa, tornada movimento, está contido o significado da “exceção” – como fenômeno jurídico – quando a ação deixar de ser uma conduta individual e passar a ser norma dos agentes do Estado; na segunda, está a indignação de uma pessoa comum que, mesmo pertencendo a mesma comunidade de destino do assassino, intui que é sempre melhor a previsão legal do Estado de Direito, para regular situações de “dúvida” ou pretensões de defender a ordem.
Na pergunta que abre uma parte importante do seu livro “A minha esquerda” – a democracia pode triunfar?- Edgar Morin, que reconhece na fórmula histórica da democracia moderna um desequilíbrio originário, registra de maneira cautelar que ela “nasceu marginalmente na história, ao lado de impérios despóticos, teocracias, tiranias, aristocracias, sistema de castas” (e segue): “a despeito da universalização da aspiração democrática, ela continua marginal, mas é contudo o sistema político mais civilizado”. Walter Benjamin dizia que “não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”
No mundo moderno é rara a ditadura que não se instalou como se fizesse a defesa da democracia e é raro o regime democrático, que não tenha lutado internamente para sobreviver contra a perversão autoritária dos seus próprios agentes. A ditadura só poder durar quando suprime as liberdades e também a autonomia mental dos indivíduos. E a perversão interna do Estado Liberal representativo, só pode firmar-se com a redução processual das liberdades e a agressão continuada à sanidade mental das maiorias.
Diz, ainda, o grande professor Morin: “a democracia” -como regime de eleições livres no qual as minorias são garantidas e respeitadas no seu direito de buscar poder- “exige (…) consenso e conflitualidade; não se resume apenas ao exercício da soberania do povo: ela é muito mais do quer isso”. E vai mais longe: “é um sistema complexo de organização e civilização política que alimenta e se alimenta da autonomia mental dos indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão”, para o
ideal trinitário Liberdade-Igualdade-Fraternidade.
A democracia é uma utopia benigna e dentro dela nasceram outras utopias, tanto libertárias como sinistras, mas estas últimas são suas filhas malditas. As expectativas utópicas da humanidade tem se servido de modelos imaginários, para as mais poderosas manipulações na esfera da política, embora com motivos e fundamentos distintos.
No século passado – com programas utópicos de sentidos opostos à própria democracia – os partidos fascistas utilizaram a identidade étnica, como ideia de pureza nacional, para justificar o assassinato de milhões nos campos de concentração. As “democracias populares” do Leste europeu, ao excluir as liberdades políticas plenas – depois de derrotada o fascismo – não compatibilizaram seus projetos de natureza socialista com a livre determinação política dos indivíduos. O resultado foi a formação de
burocracias autoritárias, que acabaram socializando a carência e o medo,
Montesquieu – que rompeu os vínculos da política com a teologia – rejeitando que as leis fossem expressão da vontade divina, logo imutáveis, buscou suporte nas ciências naturais, para justificar um novo tipo de “legalidade”: a das leis humanas positivas enquanto direito. Assim como seria possível encontrar “constâncias” nas leis da naturalidade – fundamentava Montesquieu – isso também seria possível na vida dos homens e as formas de organização da vida social poderiam ser garantidas por leis positivas. Mas das cavernas da história primitiva da humanidade surgem espécimes humanos como o assassino de Arabusch e seus assemelhados.
O atual Presidente da República todos os dias dá um tiro na consciência democrática do país: estimula a violência, mente de forma descarada, afronta a ciência e a cultura, escolhe a bandeira do Império para celebrar – aqui no país – o fim da ideia de nação, além de entregar nossas riquezas estratégicas e apresentar um torturador como herói nacional. Com a maioria anestesiada pela brutal propaganda da mídia oligopólica e das “fake-news”, contra tudo que é libertário, socialista, social-democrático ou mesmo vagamente democrático e fraterno, será que é improvável que Bolsonaro tenha – ao seu lado – pelo menos uma pessoa diferente dele, que lhe diga: “porra meu santo irmão, por que você fez isso?”
O pior é que parece que não. E que talvez sejamos todos um Arabush coletivo à espera de tiros reais.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
O personagem do escritor israelense David Grossman, no romance “O inferno dos outros” (Cia. das Letras, 2016) é um cômico chamado Dovale, que apresenta um show no “limite do politicamente correto e do bom gosto”, na pequena cidade israelense de Netanya. Sua triste piada tem a ver com o espetáculo degradante que estamos assistindo no Brasil, quando uma pessoa mentalmente perturbada dirige o país, como se ele estivesse conduzindo um bando de idiotas a uma festa de imbecis, com a naturalização reverente dos principais meios de comunicação do país, que se ajustaram à demência e apostam na insanidade em favor das “reformas”.
Numa das suas piadas infelizes Dovale – o cômico – conta o seguinte, para um auditório entediado e medíocre: “Um minuto galera, vocês vão gostar disso (…): “Ao lado de dois colonos no casbá caminha um árabe. Vamos chamá-lo Arabush. De repente um alto falante do exército anuncia que em cinco minutos vai começar um toque de recolher para os árabes. Um colono tira do ombro o seu fuzil e enfia uma bala na testa do árabe. O outro fica um tanto admirado: ‘porra meu santo irmão, por que você fez isso?’ Então o santo irmão olha para ele: ‘eu sei onde ele mora, ele nunca chegaria em casa a tempo’.
A piada politicamente incorreta e de mau gosto extremo, que choca o minúsculo auditório em Netanya, faz a catarse de duas expectativas distintas na vida social da cidade: a primeira, representada pelo colono que mata Arabush indefeso, porque pensa que ele inevitavelmente vai e deve morrer; a segunda, do seu perplexo companheiro, que não aceita aquela atitude assassina e pede os motivos determinantes da sua conduta inexplicável.
Na primeira expectativa, tornada movimento, está contido o significado da “exceção” – como fenômeno jurídico – quando a ação deixar de ser uma conduta individual e passar a ser norma dos agentes do Estado; na segunda, está a indignação de uma pessoa comum que, mesmo pertencendo a mesma comunidade de destino do assassino, intui que é sempre melhor a previsão legal do Estado de Direito, para regular situações de “dúvida” ou pretensões de defender a ordem.
Na pergunta que abre uma parte importante do seu livro “A minha esquerda” – a democracia pode triunfar?- Edgar Morin, que reconhece na fórmula histórica da democracia moderna um desequilíbrio originário, registra de maneira cautelar que ela “nasceu marginalmente na história, ao lado de impérios despóticos, teocracias, tiranias, aristocracias, sistema de castas” (e segue): “a despeito da universalização da aspiração democrática, ela continua marginal, mas é contudo o sistema político mais civilizado”. Walter Benjamin dizia que “não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie.”
No mundo moderno é rara a ditadura que não se instalou como se fizesse a defesa da democracia e é raro o regime democrático, que não tenha lutado internamente para sobreviver contra a perversão autoritária dos seus próprios agentes. A ditadura só poder durar quando suprime as liberdades e também a autonomia mental dos indivíduos. E a perversão interna do Estado Liberal representativo, só pode firmar-se com a redução processual das liberdades e a agressão continuada à sanidade mental das maiorias.
Diz, ainda, o grande professor Morin: “a democracia” -como regime de eleições livres no qual as minorias são garantidas e respeitadas no seu direito de buscar poder- “exige (…) consenso e conflitualidade; não se resume apenas ao exercício da soberania do povo: ela é muito mais do quer isso”. E vai mais longe: “é um sistema complexo de organização e civilização política que alimenta e se alimenta da autonomia mental dos indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão”, para o
ideal trinitário Liberdade-Igualdade-Fraternidade.
A democracia é uma utopia benigna e dentro dela nasceram outras utopias, tanto libertárias como sinistras, mas estas últimas são suas filhas malditas. As expectativas utópicas da humanidade tem se servido de modelos imaginários, para as mais poderosas manipulações na esfera da política, embora com motivos e fundamentos distintos.
No século passado – com programas utópicos de sentidos opostos à própria democracia – os partidos fascistas utilizaram a identidade étnica, como ideia de pureza nacional, para justificar o assassinato de milhões nos campos de concentração. As “democracias populares” do Leste europeu, ao excluir as liberdades políticas plenas – depois de derrotada o fascismo – não compatibilizaram seus projetos de natureza socialista com a livre determinação política dos indivíduos. O resultado foi a formação de
burocracias autoritárias, que acabaram socializando a carência e o medo,
Montesquieu – que rompeu os vínculos da política com a teologia – rejeitando que as leis fossem expressão da vontade divina, logo imutáveis, buscou suporte nas ciências naturais, para justificar um novo tipo de “legalidade”: a das leis humanas positivas enquanto direito. Assim como seria possível encontrar “constâncias” nas leis da naturalidade – fundamentava Montesquieu – isso também seria possível na vida dos homens e as formas de organização da vida social poderiam ser garantidas por leis positivas. Mas das cavernas da história primitiva da humanidade surgem espécimes humanos como o assassino de Arabusch e seus assemelhados.
O atual Presidente da República todos os dias dá um tiro na consciência democrática do país: estimula a violência, mente de forma descarada, afronta a ciência e a cultura, escolhe a bandeira do Império para celebrar – aqui no país – o fim da ideia de nação, além de entregar nossas riquezas estratégicas e apresentar um torturador como herói nacional. Com a maioria anestesiada pela brutal propaganda da mídia oligopólica e das “fake-news”, contra tudo que é libertário, socialista, social-democrático ou mesmo vagamente democrático e fraterno, será que é improvável que Bolsonaro tenha – ao seu lado – pelo menos uma pessoa diferente dele, que lhe diga: “porra meu santo irmão, por que você fez isso?”
O pior é que parece que não. E que talvez sejamos todos um Arabush coletivo à espera de tiros reais.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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