Por Celso Amorim, na revista CartaCapital:
Há cerca de um mês, a mídia brasileira e grande parte do empresariado local receberam com satisfação (em alguns casos quase euforia) a notícia de que se havia concluído a negociação do Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia.
Não espanta: a elite econômica sempre defendeu uma maior abertura comercial, seja por crer em benefícios específicos (como o agronegócio), seja por ver nos chamados “acordos de livre-comércio” – que na verdade vão muito além de questões puramente mercantis, entrando amplamente pelo terreno regulatório – uma oportunidade para adotar políticas ortodoxas e blindá-las contra eventuais revisões no futuro.
O anúncio, feito enquanto o presidente Jair Bolsonaro estava na cúpula do G-20, destacou os supostos méritos do acordo, que permitiria a inserção do Brasil nas “cadeias globais de valor” (sem explicar de que forma isso se dará). Apontou ganhos específicos como as modestas cotas para a exportação de carne e o fato de que as empresas nacionais poderiam participar em igualdade de condições (sic) com as empresas europeias em licitações abertas pelos governos da UE.
“Esqueceram” de assinalar que as poucas empresas brasileiras com capacidade de competição internacional eram justamente as que foram devastadas pelo furor investigativo da Lava Jato. A maior delas está em recuperação judicial. Neste, como em muitos outros casos, a reciprocidade é puramente teórica, parecida com aquela que Bernard Shaw identificava nas democracias capitalistas, que permitem ao rico e ao pobre dormirem debaixo de uma mesma ponte.
Não pretendo fazer uma análise detalhada do acordo, muitos de cujos aspectos permanecem envoltos em uma linguagem tecnocrática cheia de ambiguidades. Meu objetivo é chamar atenção para uma contradição, até aqui pouco analisada, entre o neoliberalismo à outrance das autoridades econômicas, que as leva a aceitar concessões que haviam sido rejeitadas em passado não muito distante, e o antiglobalismo professado pelo presidente. Há nisso mais do que uma incoerência teórica, que poderia talvez ficar escondida por trás do nebuloso raciocínio do ministro das Relações Exteriores.
Afinal, para quem acha que uma onda de frio em Roma no mês de maio é prova de que o aquecimento da Terra é uma invenção do marxismo cultural, afirmar que um acordo de livre-comércio com o maior bloco econômico do planeta é uma medida contrária à globalização não deve ser problema.
A questão, porém, é outra e bem mais concreta. Jair Bolsonaro declara-se cada vez mais apaixonado pelo presidente americano e age de acordo com esse sentimento, ao propor exploração conjunta das riquezas amazônicas (até há pouco um anátema para os militares brasileiros) e ao contrariar os interesses do agronegócio, que ajudou a elegê-lo, aderindo cegamente ao embargo unilateral dos Estados Unidos ao Irã. Daí decorre necessariamente uma pergunta fundamental – e que, aparentemente, alguém esqueceu de fazer: “O que pensa Trump?”
E disso já tivemos sinais com a passagem do secretário de Comércio dos Estados Unidos por estas bandas. Ao mesmo tempo que seu chefe acenava com a possibilidade de um acordo de livre-comércio com o Brasil (ignorando o Mercosul), Wilbur Ross tratou de jogar água fria nas expectativas mais ardentes. O assunto é complexo; exige muitas discussões; o Brasil é muito protecionista… Mais importante: Ross assinalou a existência de riscos que o acordo com a UE pode embutir, já que as normas europeias sobre automóveis, máquinas e outros produtos diferem das americanas.
O presidente agiu rapidamente, talvez até se antecipando às advertências de Ross. Na primeira oportunidade, deu um tiro (possivelmente de morte) no acordo com os europeus, ao destratar de forma humilhante o ministro do exterior da França, justamente o país, que por boas (clima, direitos humanos) e más (protecionismo agrícola) razões mais resiste a um acordo com o Brasil. O vexame imposto ao ministro Jean-Yves Le Drian foi estampado com grande alarde na mídia francesa.
Ao recusar um encontro com o chanceler francês, Bolsonaro ofendeu deliberadamente o país que resistia ao acordo
Não há motivos para chorar se esse aparente destempero tornar impossível o que já era difícil: a aprovação do acordo pelo Parlamento francês. E aqui vou dar o benefício da dúvida ao presidente brasileiro. Não foi apenas um acaso ou uma gafe, resultante de seu comportamento naturalmente errático e grosseiro, sempre pronto a ferir sensibilidades de outros seres humanos. Foi isso também.
Mas foi, sobretudo, a meu ver, um ato deliberado de Bolsonaro, que só agora se teria dado conta de que sua maior referência política, objeto de confessada paixão, poderia não gostar dessa atitude contrária ao pan-nacionalismo ou, mais simplesmente, ao interesse dos Estados Unidos. Afinal, como o presidente americano faz sempre questão de frisar, pleonasticamente, com ele, é “sempre a América em primeiro lugar”. Será tarefa do 03, se o Senado brasileiro permitir, restaurar as bases do namoro indecoroso.
Pessoalmente, estou convencido de que a conclusão do acordo com a UE foi um “cochilo” na estratégia maior de Bolsonaro. Esta não se guia por nenhum princípio teórico, nem mesmo pelo neoliberalismo privatista que está destruindo as bases do nosso desenvolvimento autônomo e ao qual se aliou para chegar ao poder, e, por enquanto, nele se manter. O eixo central da visão de mundo bolsonarista, para além do obscurantismo que preside as ações no campo interno, é a submissão total e incondicional a Washington. Para reafirmá-la vale tudo: até mesmo jogar por terra o sonho livre-cambista dos economistas neoliberais e seus sequazes.
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