A crise política no Brasil mostra uma democracia comandada pelo capital, para poucos, ou que nunca existiu de uma perspectiva histórica e social? Uma economista (Laura Carvalho), um filósofo (Vladimir Safatle) e um sociólogo (Ricardo Antunes) analisaram as mazelas brasileiras, sob diversos pontos de vista, no primeiro seminário do encontro Democracia em Colapso?, promovido pela editora Boitempo e pelo Sesc São Paulo. O evento, que tem apoio da RBA, começou ontem (15) e vai até sexta-feira (18), na unidade Pinheiros, na zona oeste da capital. Confira aqui a programação.
Ao abrir a série, o diretor em exercício do Sesc, Luiz Deoclécio Massaro Galina, citou a obra Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, para falar dos perigos causados pela desinformação. E a editora da Boitempo, Ivana Jinkings, falou do “período mais frágil (do Brasil) desde o período de exceção” e defendeu projetos “radicalmente democráticos” contra a barbárie.
Na primeira mesa, mediada por Bianca Pyl (Le Monde Diplomatique), “Trabalho e os Limites da Democracia no Brasil”, a professora Laura Carvalho, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), observou que para muitos a globalização está nas origens da crise democrática mundial. “A globalização comercial tem pressionado os países em busca de competitividade, o que tem levado a uma queda de salários e perda de empregos industriais em países ricos.” Mais adiante, Laura vai observar que a atual crise leva a um processo em que trabalhadores, parte mais vulnerável, seja convencida a abrir mão de direitos em nome do emprego (que não vem).
No caso brasileiro, em um primeiro momento o país se beneficiou desse mesmo fenômeno da globalização, com crescimento chinês acelerado e no comércio de commodities, por exemplo. Houve um período de “redução expressiva” da desigualdade da renda do trabalho. Mas foi um processo limitado, emendou Laura. “É verdade que nos beneficiamos no curto prazo, mas também é verdade que não foi um processo de geração de empregos de mais qualidade”, disse a professora.
Além disso, enquanto nesse período a parcela dos mais pobres aumentou e a dos mais ricos, na ponta de pirâmide, se manteve, no imenso bloco intermediário – que ela prefere não chamar de classe média – houve perdas, causando insatisfação em um amplo segmento social, que passou a atribuir a crise à corrupção, identificando esse problema com a esquerda. Diferente de outros países, comentou Laura, no Brasil isso levou a uma combinação de “conservadorismo moral com ultraliberalismo econômico”.
“Corrosão” do trabalho
Na sequência, Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), questionou: como falar em vigência da democracia em meio a um processo de “corrosão” do trabalho “sem similitude” no capitalismo? Na era da informação, observou o professor, o que acontece é a expansão do trabalho informal, intermitente, sem proteção. Um mundo destrutivo, desenhado pelo capital financeiro, “um Frankenstein mais desalmado”, como definiu. “O trabalho é cada vez mais desprovido de direitos, dos regramentos que foram resultado de lutas mais que seculares”, afirmou.
“No Brasil, o que me parece é que o capital está dizendo em todas as línguas que a era da conciliação acabou. Agora é devastação”, acrescentou o professor.
Para o professor Safatle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, não houve sequer conciliação. “A sociedade brasileira se estrutura até hoje a partir da perpetuação do latifúndio escravagista”, afirmou. Nessa perspectiva, só alguns serão pessoas – outros não passarão de “coisas”. “A grande maioria, na verdade, está na condição de coisa, não de sujeito. Uma coisa que morre não tem luto, não tem narrativa, não tem história, não tem lugar.”
O filósofo sustenta que, no Brasil, o Estado teve como função, perpetuar essa estrutura, de morte, extermínio, espoliação, degradação, sempre lembrando a parcela significativa da população que ela não existe. Assim, também não se pode falar em democracia, concluiu. “Não é possível que algo que nunca existiu esteja em perigo”, afirmou Safatle.
Ele citou casos como o do músico Evaldo dos Santos Rosa, morto em abril no Rio de Janeiro após uma ação do Exército. “Não foram 81 tiros. Foram 257.” E da operação policial no Morro Fallet, também no Rio, que acabou com 13 mortos. “Isso é o Estado brasileiro”, disse o professor. “Nenhum governo colocou uma prioridade efetiva, dentro de sua agenda, criar democracia”, acrescentou. Para ele, ao estabelecer na Constituição que as Forças Armadas devem “garantir a ordem”, o Estado atribuiu a “desordem” à própria população.
Estado mínimo e máximo
Estudioso de questões trabalhistas, Antunes destacou novas formas de ocupação que causam cada vez mais precarização e perda de proteção social, como pessoas contratadas por “aplicativos”. “O que move esse tipo de empresa é o algoritmo. A questão crucial é quem comanda esse algoritmo.” Assim, o país vê crescer seu contingente de desempregados, desalentados e subutilizados. “Como é que você monta uma estrutura democrática? Esta não seria uma democracia do capital?”, questionou.
Para Laura, o que se pratica é um Estado mínimo “do ponto de vista dos direitos, na rede de proteção” e máximo “no extermínio”, o que se expressa, por exemplo, “de forma quase caricatural” com a eleição de Jair Bolsonaro. Nessa situação de vulnerabilidade, as pessoas são levadas a pensar que devem abrir mão de seus direitos para que a economia volte a criar empregos. Isso aconteceu com a “reforma” trabalhista implementada na gestão de Michel Temer e tem agora uma “versão piorada, radicalizada“.
A situação se repete com a “reforma” da Previdência e o discurso recorrente de que o ajuste fiscal trará a confiança de volta e a consequente retomada da economia. “É uma sucessão de promessas frustradas que vai levando a uma frustração acumulada” que pode levar a apostas de todo o tipo”, lembrou Laura. Sem prescindir dessas entidades, ela vê possibilidade de novas formas de organização que complementem os sindicatos. Da mesma maneira que as tecnologias levaram a novos modelos de subordinação, podem também propiciar outras formas de organização, observou a professora.
Os sindicatos não podem ser descartados, reforçou Antunes, mas precisam entender quem eles passam a representar em outra formatação do mundo do trabalho, caracterizada por mão de obra não regulamentada, terceirizada, intermitente, contratada em tempo parcial. “Nos anos 70, o ‘novo sindicalismo’ que nasceu inspirou os movimentos sociais daquela época. Hoje, é fundamental que os sindicatos olhem para os movimentos sociais”, comparou. ” O nosso desafio é repensar e redescobrir um novo modo de vida.”
Safatle constatou que a extrema-direita percebeu a existência de um forte “desejo anti-institucional” em grande parte da população, talvez não compreendida do lado progressista. “A gente conseguiu criar no Brasil a única esquerda radical moderada”, ironizou. Alguém do público perguntou sobre o agronegócio, e o filósofo afirmou que se trata de um setor que perpetuou relações de trabalho arcaicas, de devastação, simbolizando “a expressão da história colonial no Brasil”.
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