Ilustração: Rice Araújo/Rebelión |
Há duas semanas o Chile vive a sua maior crise política desde o fim da ditadura. Iniciada com o aumento da tarifa dos transportes, em uma semana, a convocatória secundarista a saltar roletas do metrô se transformou na maior mobilização social em décadas.
O presidente Sebastián Piñera contribui à revolta, primeiro, invocando a Lei de Segurança Nacional contra manifestantes, segundo, declarando Estado de Emergência e Toque de Recolher por todo o país e, terceiro, anunciando medidas insuficientes e tardias.
Aos secundaristas se somou a Unidade Social, cem sindicatos e os movimentos por: água, assembleia constituinte, direitos das mulheres e migrantes, educação, justiça e memória, moradia e terra; e contra as previdências privadas, tratados de livre comércio e pedágios.
O diagnóstico da Unidade Social foi de que a direita chilena apostou por um autogolpe, aplicando a doutrina de choque com militares e tanques nas ruas, helicópteros voando dia e noite, incêndios, saques massivos e filas nos comércios, tudo televisionado ao vivo.
Estratégia conhecida no Chile, é possível devido a desigualdade extrema, inclusive entre funcionários públicos. Policiais e militares receberão de 20 a 30% adicionais durante o Estado de Emergência, além de usufruir de um regime de previdência social exclusivo.
O discurso foi convocar os partidos da base do governo e alguns da oposição para realizar um diálogo. Os partidos de esquerda e a Unidade Social e se negaram a dialogar com os militares nas ruas, sem a participação dos movimentos e adoção de medidas concretas.
O presidente Piñera anunciou um pacote de medidas para aliviar o custo de vida, congelando as tarifas de energia e transporte, subsidiando empresas privadas para aumentar a aposentadoria e salário mínimos, porém mantendo o Estado de Emergência.
Segundo estatísticas oficiais, o balanço da repressão policial e dos militares nas ruas foi de: dezenove pessoas mortas e 1.051 feridas; 3.163 prisões, incluindo 343 crianças e adolescentes; cinco pessoas assassinadas, quinze abusadas sexualmente e cinquenta torturadas.
Mesmo com toda essa violência institucional, em um país de 18 milhões de habitantes, cerca de 2 milhões se manifestaram só na última sexta-feira, sendo 1,2 milhão em Santiago, metrópole com 6 milhões de habitantes. Afora os panelaços nas casas.
A estratégia da direita falhou e após cinco dias de declarar “estar em guerra” contra “um inimigo poderoso”, Piñera passou a exaltar os atos “multitudinários, alegres e pacíficos”, pedindo a renúncia de todas as ministras e ministros e suspendendo o Toque de Recolher.
Este fim de semana, as organizações realizaram várias assembleias populares em todos os bairros e atos culturais pacíficos em várias cidades. As principais soluções apontadas são a convocação de uma assembleia constituinte e a renúncia do presidente Piñera.
A Constituição vigente foi imposta pela ditadura de Augusto Pinochet, e junto a outros dez pilares legislativos, constituem o legado neoliberal que privatizou a água, o cobre, a educação, as florestas, a previdência e a saúde, com sistemas tributário e laboral injustos.
A transição democrática foi gradual, após o plebiscito de 1988 que disse não a Pinochet, em 1990 voltaram as eleições diretas. Pinochet foi anistiado, comandou as Forças Armadas por oito anos, se aposentou e seguiu por quatro anos como senador vitalício.
Os governos posteriores não reverteram os pilares neoliberais da ditadura e, inclusive, avançaram alguns pontos. No último mandato de Michele Bachelet conseguiu restituir o aborto em três situações, deu bolsas universitárias e propôs uma assembleia constituinte.
Porém, com a segunda eleição presidencial de Piñera, o governo chileno voltou a apostar nas velhas táticas antidemocráticas, neoliberalismo e repressão, que aprofundaram a desigualdade social e, finalmente, produziram a revolta social que vivemos hoje.
O Chile enfrenta o dilema entre aliviar o sistema de exclusão ou substituí-lo. A direita aposta em apropriar-se das manifestações, o governo em congelar tarifas, subsidiar empresas e mudar ministérios. A população segue lutando por direitos sociais.
* Raoní Beltrão do Vale é defensor de direitos humanos, militante do Partido dos Trabalhadores residindo em Santiago.
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