Por Tarso Genro, no site Sul-21:
O “grande medo do futuro incerto” toma conta da Itália industrial e rural, no ano de 1920. As disputas agrícolas no Vale do Rio Pó e os choques nas fábricas modernas de Milão e Turim, põem por terra o Governo do Primeiro Ministro Francesco Nitti, do Partido Radical.
Antifascista, cercado pela fome endêmica do campo, instabilizado pelos acampamentos de ocupação das fábricas de Milão -assediado pela violência fascista- em julho de 1920 o Governo Nitti se desmancha. É de novo a vez do liberal Giovanni Giolitti, para estabilizar, impor o respeito e revalorizar a democracia. A nossa crise atual não é a mesma e aqui, quem poderiam ser os Giolitti do momento, adotaram a isenção entre os “dois extremos” e acalentaram o fascismo.
O homem “da arte da mediação do possível”, Giolitti -cinco vezes Primeiro Ministro da Itália- é o político de Estado mais famoso e competente, desde o início do Século XX. Cabe a ele restaurar -entre a revolução proletária abortada e as instituições do Estado em frangalhos- o sonho da democracia ideal. Aquela que, se não cedesse à revolução socialista, também não cederia ao fascismo de Mussolini, líder pela raiva sem projeto, assentada na frustração dos deserdados, gerados tanto pela Guerra como pela Revolução em recuo.
Este novo e breve Governo Giolitti dura um ano. Negando-se a reprimir os operários pelas armas, o Governo também não consegue reprimir o fascismo, que amplia a sua ascensão entre os próprios trabalhadores, mormente entre os desempregados. A potente sociedade industrial, que se ergue dominante -a partir das grandes fábricas da Pirelli, Benedetti, Agnelli (Fiat), Alfa Romeo, vive a luta de classes como laceração social, antes de carregar no seu ventre a utopia política da democracia ou a ruptura histórica da igualdade.
Nas fábricas se sucedem greves e locautes, num mar revolto de diálogos e confrontos intermináveis. Numa reunião com industriais -na qual se debate o uso imediato da violência armada para acabar com as ocupações- Giovanni Agnelli como porta-voz da “linha violenta” dos industriais solicita uma ação armada ao novo Primeiro Ministro. Giolitti lhe responde com ironia: “Muito bem, Senador, tenho justamente um batalhão de artilharia aquartelado em Turim. Vou colocá-lo diante dos portões da Fiat e ordenar que abra fogo contra a sua Fábrica”. Abrir fogo contra a Fábrica de Agnelli, hoje, significa abrir as portas do isolamento e devastar todos os esforços para bloquear a pandemia
O “grande medo do futuro incerto”, na época, era a revolução socialista e as expropriações. E os inimigos eram definidos pela sua posição, em cada confronto particular: os ocupantes das fábricas defendiam sua gestão pelos operários, os desempregados as queriam abertas para gerar novos empregos, os banqueiros queriam receber seus créditos, os soldados desmobilizados pediam respeito e trabalho, as classes médias, segurança nas escolas e consumo normalizado.
Os camponeses exaustos pediam terra e jornadas melhor remuneradas, tratamento humano dos grandes proprietários, apoio técnico as suas cooperativas e financiamento subsidiado. Parece que, quanto mais a anomia vencia, mais distante ficava a nova ordem, embora já despedaçasse a ordem atual, com seus meteoros de medo e incerteza.
A democracia -no contexto- pouco seduz, sem pão, salário, produção, onde o grande medo do futuro incerto encontra as certezas fáceis do fascismo: redenção pela guerra, romantização do passado, violência como catarse da humilhação que todos carregam nos lugares remotos da alma e cuja
superação exige armas, massacres e sacrifícios.
O nosso medo do futuro incerto não é a revolução, as ocupações de fábricas, a ira camponesa ou a fome endêmica, que gera mobilizações políticas, nem o desmantelamento das instituições do Estado a serem engendradas para por uma nova ordem. O medo que nos assola se chama Pandemia, este conceito nobre da peste pós-moderna, cujas ameaças desmantelam a culta e superficial solidariedade das categorias políticas modernas.
No vácuo da sua dissolução se esvaem as opções democráticas para a política e as condições mínimas
para as revoluções, que, se ontem já não se apresentavam -segundo a ótica de cada um- nem desejáveis nem convincentes, hoje criam o caldo de cultura onde prolifera o fascismo. É a necrofilia deitada sobre contingentes inteiros de descartáveis, a morte do Estado de Direito pela vontade da demência organizada no poder, a entrega do destino do Estado -não à força da virtude- mas à vontade despida de razão e moralidade pública.
Arrisco-me a apontar dois significativos pilares culturais da situação atual da ordem política: o primeiro é a revelação feita pelo “pensador” do Presidente Bolsonaro, o dito filósofo Olavo de Carvalho, quando revelou num tweet do dia 19 de junho o seguinte: “Desde o início do seu mandato aconselhei o presidente que desarmasse os seus inimigos, antes de tentar resolver qualquer ‘problema nacional’ (e) ele fez o oposto. Deu ouvidos a generais ‘isentistas’, dando tempo que seus inimigos se fortalecessem…”.
Ora, armados no Brasil, estão os militares e as milícias, o que nos faz concluir que os generais “isentões” –referidos pelo “filósofo”– são aqueles que defendem de dentro das suas corporações as soluções políticas no interior do Estado de Direito, visão que revela -por si só- a que veio e o que é o Governo Bolsonaro.
O segundo pilar ideológico está expresso nas manifestações de diversas origens sobre a relação entre
a “vida” e a “produção”, o “comércio” e o “isolamento”, através das quais a irracionalidade olavista começa a tomar proporções de massa. Nesta dimensão gera aquele estado “natural”, onde a morte de alguém (sempre dos “outros”) é um detalhe, e o que “vale” é a preservação do objetivo final, que hoje encontra resistência em grupos que deveriam estar “desarmados” e que, para Olavo de Carvalho, não estão: os militares “isentões” que, independentemente das suas preferências ideológicas não são fascistas, não desistiram de um projeto de nação e não compactuam com a demência no poder.
Tratado como “conspiração chinesa” ou “histeria da imprensa”, o posicionamento científico da OMS, em defesa do isolamento, vem sendo paulatinamente tornado irrelevante pelas redes bolsonaristas, associadas de forma criminosa a burocratas e empresários, que levam o seu egoismo de classe ao seu momento mais elevado: o da simplificação aterradora, que pode nos custar milhares de mortes e uma crise econômica ainda mais brutal, do que aquela que já nos espera. O voluntarismo egocentrado do Presidente é o grande motor político da ideologia olavista, que transforma a instrumentalização da vida num episódio de curto prazo para o mercado.
A modernidade tardia fendida pelas religiões do fanatismo e do dinheiro geraram um Jim Jones, num mundo isolado que funcionava analogicamente. Tudo indica que a falência -ou pelo menos a suspensão das utopias da igualdade real e da solidariedade humana irrestrita (na época das redes e das relações globais comutativas), estão gerando monstros bem mais cruéis.
Jim Jones pelo menos pedia a morte e o suicídio para o encontro com Deus, mas os monstros de hoje consideram os mesmos caminhos apenas para salvar seus negócios e seus mercados atuais, mesmo que isso signifique -à médio prazo- a sua ruína final. Esquecem que a barbárie tem um vírus que atravessa fronteira de todas as classes, não é ideológica nem necessariamente seletiva.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
O “grande medo do futuro incerto” toma conta da Itália industrial e rural, no ano de 1920. As disputas agrícolas no Vale do Rio Pó e os choques nas fábricas modernas de Milão e Turim, põem por terra o Governo do Primeiro Ministro Francesco Nitti, do Partido Radical.
Antifascista, cercado pela fome endêmica do campo, instabilizado pelos acampamentos de ocupação das fábricas de Milão -assediado pela violência fascista- em julho de 1920 o Governo Nitti se desmancha. É de novo a vez do liberal Giovanni Giolitti, para estabilizar, impor o respeito e revalorizar a democracia. A nossa crise atual não é a mesma e aqui, quem poderiam ser os Giolitti do momento, adotaram a isenção entre os “dois extremos” e acalentaram o fascismo.
O homem “da arte da mediação do possível”, Giolitti -cinco vezes Primeiro Ministro da Itália- é o político de Estado mais famoso e competente, desde o início do Século XX. Cabe a ele restaurar -entre a revolução proletária abortada e as instituições do Estado em frangalhos- o sonho da democracia ideal. Aquela que, se não cedesse à revolução socialista, também não cederia ao fascismo de Mussolini, líder pela raiva sem projeto, assentada na frustração dos deserdados, gerados tanto pela Guerra como pela Revolução em recuo.
Este novo e breve Governo Giolitti dura um ano. Negando-se a reprimir os operários pelas armas, o Governo também não consegue reprimir o fascismo, que amplia a sua ascensão entre os próprios trabalhadores, mormente entre os desempregados. A potente sociedade industrial, que se ergue dominante -a partir das grandes fábricas da Pirelli, Benedetti, Agnelli (Fiat), Alfa Romeo, vive a luta de classes como laceração social, antes de carregar no seu ventre a utopia política da democracia ou a ruptura histórica da igualdade.
Nas fábricas se sucedem greves e locautes, num mar revolto de diálogos e confrontos intermináveis. Numa reunião com industriais -na qual se debate o uso imediato da violência armada para acabar com as ocupações- Giovanni Agnelli como porta-voz da “linha violenta” dos industriais solicita uma ação armada ao novo Primeiro Ministro. Giolitti lhe responde com ironia: “Muito bem, Senador, tenho justamente um batalhão de artilharia aquartelado em Turim. Vou colocá-lo diante dos portões da Fiat e ordenar que abra fogo contra a sua Fábrica”. Abrir fogo contra a Fábrica de Agnelli, hoje, significa abrir as portas do isolamento e devastar todos os esforços para bloquear a pandemia
O “grande medo do futuro incerto”, na época, era a revolução socialista e as expropriações. E os inimigos eram definidos pela sua posição, em cada confronto particular: os ocupantes das fábricas defendiam sua gestão pelos operários, os desempregados as queriam abertas para gerar novos empregos, os banqueiros queriam receber seus créditos, os soldados desmobilizados pediam respeito e trabalho, as classes médias, segurança nas escolas e consumo normalizado.
Os camponeses exaustos pediam terra e jornadas melhor remuneradas, tratamento humano dos grandes proprietários, apoio técnico as suas cooperativas e financiamento subsidiado. Parece que, quanto mais a anomia vencia, mais distante ficava a nova ordem, embora já despedaçasse a ordem atual, com seus meteoros de medo e incerteza.
A democracia -no contexto- pouco seduz, sem pão, salário, produção, onde o grande medo do futuro incerto encontra as certezas fáceis do fascismo: redenção pela guerra, romantização do passado, violência como catarse da humilhação que todos carregam nos lugares remotos da alma e cuja
superação exige armas, massacres e sacrifícios.
O nosso medo do futuro incerto não é a revolução, as ocupações de fábricas, a ira camponesa ou a fome endêmica, que gera mobilizações políticas, nem o desmantelamento das instituições do Estado a serem engendradas para por uma nova ordem. O medo que nos assola se chama Pandemia, este conceito nobre da peste pós-moderna, cujas ameaças desmantelam a culta e superficial solidariedade das categorias políticas modernas.
No vácuo da sua dissolução se esvaem as opções democráticas para a política e as condições mínimas
para as revoluções, que, se ontem já não se apresentavam -segundo a ótica de cada um- nem desejáveis nem convincentes, hoje criam o caldo de cultura onde prolifera o fascismo. É a necrofilia deitada sobre contingentes inteiros de descartáveis, a morte do Estado de Direito pela vontade da demência organizada no poder, a entrega do destino do Estado -não à força da virtude- mas à vontade despida de razão e moralidade pública.
Arrisco-me a apontar dois significativos pilares culturais da situação atual da ordem política: o primeiro é a revelação feita pelo “pensador” do Presidente Bolsonaro, o dito filósofo Olavo de Carvalho, quando revelou num tweet do dia 19 de junho o seguinte: “Desde o início do seu mandato aconselhei o presidente que desarmasse os seus inimigos, antes de tentar resolver qualquer ‘problema nacional’ (e) ele fez o oposto. Deu ouvidos a generais ‘isentistas’, dando tempo que seus inimigos se fortalecessem…”.
Ora, armados no Brasil, estão os militares e as milícias, o que nos faz concluir que os generais “isentões” –referidos pelo “filósofo”– são aqueles que defendem de dentro das suas corporações as soluções políticas no interior do Estado de Direito, visão que revela -por si só- a que veio e o que é o Governo Bolsonaro.
O segundo pilar ideológico está expresso nas manifestações de diversas origens sobre a relação entre
a “vida” e a “produção”, o “comércio” e o “isolamento”, através das quais a irracionalidade olavista começa a tomar proporções de massa. Nesta dimensão gera aquele estado “natural”, onde a morte de alguém (sempre dos “outros”) é um detalhe, e o que “vale” é a preservação do objetivo final, que hoje encontra resistência em grupos que deveriam estar “desarmados” e que, para Olavo de Carvalho, não estão: os militares “isentões” que, independentemente das suas preferências ideológicas não são fascistas, não desistiram de um projeto de nação e não compactuam com a demência no poder.
Tratado como “conspiração chinesa” ou “histeria da imprensa”, o posicionamento científico da OMS, em defesa do isolamento, vem sendo paulatinamente tornado irrelevante pelas redes bolsonaristas, associadas de forma criminosa a burocratas e empresários, que levam o seu egoismo de classe ao seu momento mais elevado: o da simplificação aterradora, que pode nos custar milhares de mortes e uma crise econômica ainda mais brutal, do que aquela que já nos espera. O voluntarismo egocentrado do Presidente é o grande motor político da ideologia olavista, que transforma a instrumentalização da vida num episódio de curto prazo para o mercado.
A modernidade tardia fendida pelas religiões do fanatismo e do dinheiro geraram um Jim Jones, num mundo isolado que funcionava analogicamente. Tudo indica que a falência -ou pelo menos a suspensão das utopias da igualdade real e da solidariedade humana irrestrita (na época das redes e das relações globais comutativas), estão gerando monstros bem mais cruéis.
Jim Jones pelo menos pedia a morte e o suicídio para o encontro com Deus, mas os monstros de hoje consideram os mesmos caminhos apenas para salvar seus negócios e seus mercados atuais, mesmo que isso signifique -à médio prazo- a sua ruína final. Esquecem que a barbárie tem um vírus que atravessa fronteira de todas as classes, não é ideológica nem necessariamente seletiva.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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